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REBELIÃO NO CHILE | Dois meses de luta, o cinismo de Piñera e as perspectivas da esquerda revolucionária

Ainda que a brutal repressão e a traição com a armadilha “constituinte” tenham apaziguado as ruas, não há derrota no imediato e sim uma nova experiência onde o “Chile acordou”. Nada será o mesmo após milhões que se despertaram e se mobilizaram, com a juventude à frente, e uma “crise dos de cima” que pode abrir novos processos de mobilização.

sábado 28 de dezembro de 2019 | Edição do dia

Dois meses se passaram desde o início da rebelião no Chile que começou com os pulos das catracas do metrô de Santiago e se extendeu com rastilho de pólvora até chegar ao seu ponto mais alto em 12 de novembro, com a greve geral mais importante em quatro décadas, desde a ditadura.

O governo e a oposição tentaram de tudo para acabar com essa luta que trouxe a tona o verdadeiro Chile, o que está por detrás das estatísticas digitadas, o Chile onde se morre nas filas de espera dos hospitais, onde a educação é um privilégio, o emprego é precário, a terceirização se impõe e as jornadas de trabalho são intermináveis.

Primeiro foi a repressão a juventude, o estado de exceção e o toque de recolher, com Piñera dizendo que “estamos em guerra”. Também terminaram o ano letivo nas escolas e faculdades para que a juventude não se organize. Nada disso conseguiu frear nas primeiras semanas o ascenso do movimento até que, em 12 novembro, o governo perdeu o chão, quando o país foi paralisado e os trabalhadores colocaram sua marca, em conjunto com os estudantes e a população. O Chile tinha acordado em 18 de outubro e fez tremer no 12 de novembro.

A partir daquele momento o governo e a oposição fizeram de tudo para desarmar o movimento. O ódio gerado por 30 anos de maus-tratos e discriminações, por humilhações e superexploração, não vai ser solucionado com as medidas que tomaram, nem pelo terror que custou pelo menos 25 vidas, 2 mil prisões, cerca de 350 pessoas com danos oculares e inúmeros casos de violência sexual e tortura. Essa mesma repressão brutal é a que resultou em uma tentativa de homicídio contra um jovem manifestante na Praça Dignidad por parte da polícia e que permanece completamente impune, incluindo a responsabilidade direta do intendente da polícia em Santiago, Felipe Guevara, que aplicou uma política de “tolerância zero” de forma criminosa. Deve ser retirado de seu cargo já!

Embora o governo tente “recuperar” a Praça Dignidad sem manifestações, por enquanto não tem tido resultado. Devemos impulsionar com força essa luta contra a repressão e a impunidade, pelo julgamento e prisão dos responsáveis políticos e dos responsáveis materiais pela repressão, pelo direito de manifestação e pela liberdade dos presos políticos. Campanha que o PTR (Partido de Trabalhadores Revolucionários, partido-irmão do MRT no Chile) tem levado adiante, enfrentando também a perseguição ao nosso companheiro Dauno Totoro, perseguido pelo governo assassino por dizer o que milhões expressaram nas ruas: Fora Piñera.

Ainda que sua brutal repressão e sua traição com a armadilha “constituinte” tenham apaziguado as ruas, não há derrota no imediato e sim uma nova experiência onde o “Chile acordou”. Nada será o mesmo, com milhões de pessoas que se mobilizaram e que despertaram, com a juventude a frente, e uma “crise dos de cima”, expressa na ruptura no Chile Vamos entre a UDI e seus sócios, que pode abrir novos processos de mobilização. O processo no Chile é parte de uma onda de lutas que corre o mundo nesse momento, como mostra a França com a classe trabalhadora ao centro e as rebeliões no Equador, Colombia, Hong Kong e vários outros países, onde a juventude está a frente. A partir do PTR e da rede internacional La Izquierda Diario, nós temos estado na primeira linha nesses mais de dois meses de luta, ombro a ombro com milhões contra Piñera, e apresentamos um balanço que nos permita triunfar.

Por que Piñera não caiu?

O papel da burocracia sindical sem dúvida é o mais pérfido. Após a greve do 12N, não deram continuidade com um plano de luta, nem assembleias nem comitês de greve, e realizou a melhor desorganização de uma greve já vista até o 26N, primeiro convocando a greve para o dia 21, depois chamando para uma greve de 3 dias, depois de 2 e finalmente de apenas um. Uma desorientação consciente para que a dinâmica do 12N não seguisse crescendo, apenas para desandar esse caminho. O bloco sindical da Mesa de Unidade Social chegou a tomar parte em uma reunião com o governo para discutir uma agenda social que não foi debatida e acabou com um acampamento fora do congresso, que não faz nem cócegas a Piñera.

Não temos dúvida de que se a classe trabalhadora seguisse e aprofundasse o caminho do 12 de novembro, hoje Piñera não estava ali sentado. Uma luta crescente que culminasse em uma greve geral teria mudado tudo. Porque com isso paralisa-se a própria administração do Estado, as fábricas, as minas, os portos, tudo aquilo que faz com que os verdadeiros donos do país sigam acumulando milhões graças a exploração. Essa perspectiva é a que escapou aos dirigentes do Partido Comunista que dirigem a CUT.

O medo profundo da burguesia a essa perspectiva que podia abrir-se a partir do caminho do 12N fez com que eles combinassem uma política de embuste com um aprofundamento da repressão contra os setores mais combativos que incui uma agenda legislativa anti-protestos.

Aí apareceu a “cozinha” parlamentar para votar um roteiro para um “processo constituinte” cheio de armadilhas, onde cada artigo precisa de dois terços para ser aprovado, ou seja, uma convenção constituinte onde a direita terá poder de veto se obtiver um terço dos votos (e o sistema eleitoral privilegia os partidos do regime, está armado para isso). A Frente Ampla cumpriu seu papel sendo um ingrediente dessa cozinha que deu um prato de comida estragada para o povo faminto por dignidade. Um plebiscito em abril para distrair, se tanto, e dar a ideia de que “estamos escutando e queremos escutar-los” quando, na realidade, tudo já estará pré-combinado.

Leis repressivas votadas até pela FA, como a lei “anti-protesto”, com a repudiável abstenção da maioria parlamentar do PC, que cinicamente critica a FA por ser parte da “cozinha” e da votação de leis que não poderiam nem se pensar em votar sem sua inestimável colaboração. Campanhas ferozes nos meios de comunicação contra os saqueadores, ainda que se descobriu casos onde personagens da direita os organizavam. Depois de causar a fome de um setor da população, com uma burocracia sindical que deixou sem resposta aqueles que perderam seus empregos, com um Estado que não lhes garante nada, os saqueadores passaram a ser os culpados por tudo, inclusive pela crise econômica que os capitalistas geraram e da perda de cem mil postos de trabalho.

“O saque é violência, a violência está nas ruas e nas barricadas, nas passeatas existem barricadas, tudo isso interfere na economia, então, “logicamente” vamos proibir as passeatas e poderemos voltar ao caminho da paz e do crescimento”. Assim pensam os empresários e seus políticos. Colocar no mesmo saco os saques, tanto os provocados pela fome como os organizados pelo narcotráfico e mesmo pela direita para criminalizar as passeatas e todo o tipo de resistência foi a linha política lançada a partir dos grandes meios de mídia. Um setor da classe média comprou esse discurso mas, apesar de todo o arsenal midiático, mais de 60% da população apoia as mobilizações da juventude e a valente primeira linha de combate dos protestos.

Junto a isso, o embuste foi colocado em marcha, dando lugar a uma consulta popular em muitos municípios, não vinculantes, com perguntas parciais e imprecisas, mas onde chegaram a participar dois milhões de pessoas. Em alguns lugares como Valparaíso, votaram mais pessoas na consulta do que nas eleições para prefeito. Os maiores de 14 anos podiam votar e a TV mostrava alguns deles para dar conta do avanço da democracia porque, se agora podiam ser presos ou torturados, também podiam ser parte de uma eleição onde nada vai ser resolvido.

Nessa mesma linha o presidente Piñera usou como meio de comunicação o New York Times. Valendo-se de um discurso amigável, fazendo alarde das “medidas sociais” e falando de uma “segunda transição”. Uma nota que deveria ganhar um Nobel de cinismo e que nos conta que a “explosão social” foi algo bom, para que os políticos se dessem conta que precisavam construir um Chile mais justo. Não tinham se dado conta antes. Então deram-se conta e nos informam das medidas sociais.

É proposto um aumento do salário mínimo para 300 pesos, aumento na aposentadorias mais baixas, descontos em remédios e pedágios etc. São remendos para deixar o essencial das heranças da ditadura, da estrutura do país neoliberal em pé. Para passar uma imagem de imparcialidade, o congresso sacrificou o ex-ministro do interior de Pinẽra, Andŕes Chadwick, debilitando o governo mas tratando de mostrar que não havia tantos privilégios do seu lado.

Nas periferias de alguns lugares como Antofagasta já no dia 26 o governo usou a tática de provocar a repressão e enfrentamentos até a madrugada. Dessa forma evitaram que a população pobre voltasse a cortar as rotas de acesso como em 12 de novembro, onde graças as barricadas, os mineiros não chegaram a seus trabalhos, saíram dos micro-ônibus e marcharam juntos até o centro de santiago, confluindo em um ato com mais de 20 mil pessoas. Essa tática de provocar batalhas permanentes nas periferias para separá-los das passeatas estudantis enquanto a burocracia se encarregava de neutralizar a classe trabalhadora dura até hoje.

Mudar alguma coisa para que nada da herança da ditadura mude realmente. Terror e ameaças por um lado, “participação cidadã” e remendos sociais por outro, e além disso não passa nada. Inclusive, se necessário, o governo está disposto a levar para a prisão algum policial que tenha “se excedido”, como eles chamam a brutal repressão. Castigo para os dois lados, ainda que desigual. 26 mortos de um lado, algum policial do outro terá um “julgamento justo”.

Sem embargo, a ação das direções sindicais e essa combinação de políticas dos partidos do regime conseguiu apaziguar a mobilização nesse momento, fazer retroceder os elementos que podiam abrir uma situação com características mais revolucionárias.

O papel das direções sindicais

Isso não é só obra do governo e dos partidos tradicionais do regime. As direções sindicais, a CUT dirigida pelo Partido Comunista são responsáveis pelo fato de Piñera siga em seu trono, ainda que repudiado e apesar de toda a disposição de luta demonstrada pelo povo. Fez isso ao estabelecer uma trégua de fato com o governo desde 12 de novembro até hoje, enquanto os parlamentares da FA entravam na cozinha e votavam leis repressivas e o PC se abstinha.

Apesar disto, para centenas nada será igual. O desprezo ao regime e seus partidos, o ódio aos policiais e, sobretudo, a consciência da força da luta, de tudo que somos capazes de fazer, da perda do medo.

É necessário que entre em cena a classe trabalhadora

É nessa vontade de seguir lutando que nos apoiamos para defender que sem superar a burocracia sindical e os partidos do regime não será possível sair dessa situação, porque aqueles que mostraram a força gigantesca que pode acabar com a herança da ditadura, os trabalhadores e trabalhadoras que controlam as fontes de lucro dos verdadeiros donos do país, não puderam dar mais do que uma pequena demonstração de suas forças. E são eles que vivem as piores injustiças. Não apenas saúde, educação e aposentadorias, mas também a terceirização, a precarização, a super-exploração, as jornadas de trabalho intermináveis, a ditadura e o despotismo nos lugares de trabalho que se sustenta pelo papel da burocracia, pela atomização da organização sindical.

Hoje, após esses 60 dias de luta, em alguns lugares de trabalho começa a colocar-se essa questão, com lutas como a dos micreros de antofagasta, das trabalhadoras da limpeza da USACH, com os trabalhadores do comércio organizando-se, para colocar alguns exemplos. A aposta que fazemos não tem nada a ver com a passividade fatalista: impulsionamos ativamente o desenvolvimento dessas lutas e sua coordenação com outros setores, como impulsionam os trabalhadores do Barro Luco e o Comitê de abrigo de Antofagasta que busca unir todos os sindicatos e agrupações da região para a luta comum e estabelecer-se como um lugar de organização para todos que queiram lutar por seus direitos.

Difundimos cada luta, cada passo adiante, buscamos as formas de voltar a unir os sindicatos com o povo pobre e a juventude na escala que seja possível. Fazemos isso porque somos conscientes que se essa força é desbloqueada e se propõe a acabar com as condições de trabalho da ditadura, unindo-se ao povo e a juventude, policiais, burocratas e políticos corruptos não serão nada, não funcionarão seus embustes nem terá sucesso a repressão.

Não à constituinte cheia de armadilhas, por uma assembléia constituínte realmente livre e soberana

O governo impulsiona a partir da cozinha uma AC cheia de armadilhas. Com a exigência dos dois terços e o sistema de votação baseado no poder dos partidos, as necessidades da grande maioria não poderão ser satisfeitas. O sistema de partidos atual garante que a direita rechaçada chegue ao terço da representação e a cozinha irá garantir-lhes vetar tudo o que os filhos da ditadura não querem que se imponha. Assim não se votarão o fim das aposentadorias de fome, nem a saúde e a educação de mercado, nem se mexerá nas condições de trabalho ou de organização da classe operária, nem nos direitos do povo Mapuche ou das mulheres trabalhadoras e pobres que sofrem as piores condições.

Por isso nós lutamos por um governo dos trabalhadores, chamamos a lutar nas ruas para derrotar essa política e impor uma Assembléia Constituinte Livre e Soberana. Ou seja, sem nenhuma restrição, que possa discutir e tomar todas as medidas que considere necessárias, onde todos acima de 14 anos possam participar. Uma AC que convoque eleições onde sejam eleitos representantes a cada 10 mil eleitores, que sejam revogáveis, que ganhem o mesmo que uma professora e que possam ser eleitos de forma democrática dirigentes sindicais e de organizações operárias, estudantis e sociais e que não tenha nenhuma limitação de nenhum outro poder e nenhum veto a respeito dos temas que serão discutidos e sobra as medidas que serão tomadas em benefício do povo trabalhador.

Para conseguir isso é necessário voltar ao caminho das greves gerais e acabar com a trégua que a CUT impôs. Uma assembléia desse tipo só poderá ser imposta com uma greve geral e derrotando ao governo de Piñera e o regime da cozinha.

Vamos construir um partido revolucionário da classe trabalhadora

Para conseguir esse objetivo falta uma organização que conscientemente se proponha a consegui-lo. Um partido. Um partido que não seja como os outros mas que seja um partido dos trabalhadores e revolucionários, para lutar para voltar as ruas até impor a greve geral que acabe com esse governo e esse regime e imponha uma Assembléia Constituinte Livre e Soberana onde se ponha fim a toda a herança pinochetista, às aposentadorias privatizadas, a saúde e educação de mercado e que nacionalize os recursos naturais para que inguém passe mais a miníma necessidade no país.

Vamos construir juntos um partido desse tipo, ajudemos a por em pé a poderosa classe trabalhadora chilena, a que tem a tradição dos cordões industriais e da luta mais heroica e que não levará nada da herança da ditadura mais horrenda que sofremos. Damos essa luta para refundar a esquerda no Chile, por uma esquerda dos trabalhadores independente dos empresários e seus partidos, que não molde ao regime como fez a FA votando leis repressivas e como fez o PC que busca alianças com a velha direita.

Te convidamos a lutar junto para acabar com esse Chile dos empresários e abrir caminho para um governo dos trabalhadores que acabe com toda a opressão e exploração. Essa luta é feita não só no Chile mas, a partir da Fração Trotskista e da Rede de Diários que publicamos em 12 países e 8 idiomas, lutando ombro a ombro com os jovens bolivianos da cidade de El Alto contra o golpe militar ou com os grevistas franceses.




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