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Do CAD ao DAD: a luta contra a ditadura, o golpe e as transformações no teatro da UFRGS

Giovana Pozzi

Julia Terra

Do CAD ao DAD: a luta contra a ditadura, o golpe e as transformações no teatro da UFRGS

Giovana Pozzi

Julia Terra

A história não é estática, tampouco objeto de simples contemplação. Para nós, a história é viva e é matéria de estudo da onde buscamos tirar lições para compreender o presente e lutar por um futuro. É com essa perspectiva que traçamos a história do Departamento de Arte Dramática da UFRGS, uma potente trajetória na qual queremos nos inspirar para enfrentar os desafios atuais, onde a arte e a Universidade Pública são atacadas sistematicamente por Bolsonaro, Mourão, militares e o conjunto do regime golpista. Chamamos todos estudantes do DAD e das artes a se apropriarem dessa história e serem seus fios de continuidade no tempo presente.

“Queremos ser os herdeiros e os conservadores de uma tradição, e ao mesmo tempo queremos nos libertar da obrigação de dependermos unicamente dessa tradição. Queremos ressalvar nosso direito de escolhermos livremente, sobretudo dentro das formas novas [...] A nossa época é uma época de inquietações, de provações, mas sobretudo, uma época de procura. Estamos procurando, com a mesma ansiedade, um estilo de representação que convenha ao nosso tipo de homem histórico, e uma categoria de situação, isto é, um drama, um repertório capaz de identificar-nos [...] A única atitude respeitável para o teatro de hoje consiste em pôr a prova, até o extremo limite de nossas energias, tudo o que sentimos vibrar de vida humana, de protesto, de revolta. Qualquer tentativa de acorrentar essa exigência de liberdade a teses e programas rígidos deve ser considerada uma ameaça grave. Até mesmo a ambiguidade é importante e necessária.” Ruggero Jacobbi, primeiro diretor do DAD

Qualquer artista poderá lhe contar que o fazer artístico pode carregar em si uma atitude de enfrentamentoE as pessoas que colocam suas vidas a serviço de produzir uma arte crítica e de enfrentamento com a lógica da indústria cultural, sentem na pele o quanto incomodam a classe dominante (em alguns governos mais do que em outros, mas sempre acabam sentindo). Talvez por esse motivo, sejam um dos grupos mais proporcionalmente presentes em manifestações políticas, sejam virtuais ou nas ruas.

Essa concepção não é exatamente nova, como vemos na tese de mestrado de Juliana Wolkmer, que mapeou a história da origem do Departamento de Arte Dramática da UFRGS. O espírito de rebeldia desse espaço aberto ao fazer teatral segue forte até as manifestações atuais, que acontecem em situações terrivelmente parecidas às de 1957, data da criação da primeira formação em teatro da capital.

A criação do Departamento de Arte Dramática da UFRGS (pros íntimos, DAD)

Segundo Wolkmer, a reivindicação por um curso profissionalizante em teatro surge de diferentes grupos teatrais da região, que continham alunos da UFRGS. Se destaca o curso de Filosofia, cujos alunos foram grande parte do coro que fazia este pedido. Junto das instâncias competentes, o pedido era frequente. Para surpresa de todos, que não esperavam resposta, o pedido foi acatado pela instituição, e, assim, surge o Curso de Arte Dramática, ligado à faculdade de Filosofia.

Apesar do curso ser fundado em 1957, somente em 1958 ele começa a funcionar. Por um curto período, a sede provisória do curso se deu nas dependências da faculdade de Filosofia. Porém, já em 1959, foi movido para um casarão na rua Venâncio Aires - o que não resolveu o problema de espaço, mas resolveu a questão dos figurinos, pois a moradora do segundo andar do casarão era dona Chiquinha, figurinista de peças do curso e de outros grupos de Porto Alegre.

Já no primeiro ano de funcionamento, muitas atividades consagram o novo curso como um espaço dedicado à arte teatral, como uma conferência sobre interpretação com o ator e diretor polonês Ziembinsky. Fora isso, foi inaugurada a biblioteca de teatro (ainda que, nessa época, quase exclusivamente branca e masculina), foi criado um programa de rádio-teatro para a universidade, e são montadas três peças, ainda em 1958.

Em 1961, o CAD já se vê obrigado a mostrar suas facetas políticas, e, junto a grande parte da categoria artística da época, alguns estudantes e professores participam da Campanha da Legalidade. Após a renúncia de Jânio Quadros, as forças armadas pretendiam vetar a posse de seu vice, João Goulart, e o movimento, liderado por Brizola, protestava tal veto. A crise da Legalidade é um precedente (se não, um “ensaio geral”) ao golpe de 1964, que atinge diretamente o funcionamento do CAD.

Em 1967, já na ditadura militar, o Curso de Arte Dramática torna-se Centro de Arte Dramática, atendendo à lei de Castello Branco, que regulamenta as profissões teatrais e suas funções (como diretor, ator, cenógrafo, professor, sonoplasta, etc.). Passam a ser oferecidas formações em curso superior para direção e licenciatura, além de interpretação a nível técnico, que era previamente oferecida.

Essa mudança é facilmente disfarçada de valorização das profissões artísticas, mas trazia limites burocráticos ao fazer teatral e coibia ações subversivas por parte destes profissionais.

Em 1969, o CAD é transferido para o casarão da Salgado Filho (onde é até hoje), no qual ocorriam as aulas práticas. As aulas teóricas ocorriam, então, no prédio do Instituto de Artes. Haviam quatro salas, uma das quais era usada como guarda-roupa de figurinos.

1969 foi um ano muito movimentado. Ocorreu ainda a montagem de “A Ópera dos Três Vinténs”, de Brecht. Um fato interessante é que a ópera reuniu 28 estudantes dos Cursos de Interpretação e Direção do CAD, e foi apresentada numa temporada de três meses de duração, de sextas-feiras a domingos, com sessões lotadas, tornando-se o maior sucesso de público da história do CAD até então, e configurando-se como marco importante para a profissionalização do teatro gaúcho, que não estava acostumado a longas temporadas. A montagem foi um grande sucesso, e trouxe ainda mais os olhos da censura até o departamento. Com o endurecimento da ditadura que se deu no final de 1968 com o decreto do AI-5, em 1969 o diretor do curso, Gerd Bornheim e diversos professores foram expurgados.

Diante dessa situação, os estudantes se unem e dão um forte exemplo de organização para impedir o fechamento do CAD pelo governo ditatorial. Os alunos mantiveram o curso funcionando, com aulas durante o dia e apresentações de peças à noite, de modo que o espaço nunca ficasse vazio, e não pudesse ser fechado. Alguns professores cassados foram para a Europa, e só voltaram após a anistia.

Em 1970, o CAD (que ainda era ligado à faculdade de filosofia) se desliga da faculdade de filosofia e se torna, finalmente, DAD – Departamento de Arte Dramática, parte do Instituto de Artes.

Durante esse mesmo ano, infelizmente, as atas de reuniões de professores do DAD passam a estar quase em branco. Pouco se falava, a censura assustava muito. As peças estudantis do curso, embora fossem exames acadêmicos, precisavam passar pela censura, pois suas apresentações eram abertas ao público. Pelos relatos, ao menos um aluno – entrevistado pela Juliana Wolkmer - foi preso duas vezes, passando 40 dias na solitária, sem ter cometido crime algum.

O DAD nas lutas atuais

O desenvolvimento do surgimento do DAD e a resistência dos estudantes e professores à época dos anos de chumbo demonstram por si só que nem o departamento nem o teatro estão por fora dos acontecimentos políticos, econômicos e sociais de determinada época. Imaginem então o que tem sido o DAD e suas produções artísticas nos últimos atribulados anos no país. Faremos um recorte do ano de 2016 para cá, por enxergar no golpe institucional daquele ano uma reorganização no regime político com uma mudança qualitativa nos ataques, que já vinham acontecendo nos governos do PT e se aprofundam com a entrada de Temer.

Com o estourar do golpe, uma das primeiras medidas de Temer foi a extinção do Ministério da Cultura, transformando-o em uma pasta do Ministério da Educação. Essa extinção fez se espalhar pelo país diversas ocupações de prédios ligados ao então Ministério da Cultura, incluindo em Porto Alegre, onde a ocupação contou com a presença ativa dos estudantes do DAD. Foi também pelas mãos vampirescas de Temer que aconteceu a aprovação de uma série de reformas precarizantes da vida da juventude e do trabalhador, entre elas a reforma trabalhista e a brutal lei de terceirização irrestrita.

Ainda em 2016, além da ocupação do MinC, ocupações estudantis se espalharam como rastilho de pólvora pelas escolas, em primeiro lugar, e depois pelas Universidades. Os estudantes secundaristas se levantavam e davam exemplo de organização e luta, inspirando os universitários a não aceitarem os ataques à educação. E com o anúncio da PEC do Teto de Gastos ou, como era chamada, PEC do Fim do Mundo, ocupações explodiram também nas Universidades e Institutos Federais. Foram mais de mil instituições ocupadas contra o Teto de Gastos, a Reforma do Ensino Médio e o projeto reacionário Escola Sem Partido.

Nem a UFRGS, nem o Instituto de Artes e o DAD passaram por fora da revolta estudantil. Os estudantes do DAD ocuparam conjuntamente o prédio do Instituto de Artes com os demais estudantes dos cursos de artes visuais, música e história da arte. Uma tremenda experiência para que os estudantes se sentissem realmente em controle de um espaço que deveria pertencê-los e, particularmente na ocupação das artes, uma troca artística imprescindível, recheada de muito debate político. Até mesmo oficina de teatro foi oferecida aos ocupantes secundaristas! Infelizmente sabemos como essa história termina, com o enfraquecimento do movimento - muito por conta da direção burocrática da UNE, dirigida pelo PT e UJS - e a aprovação do Teto de Gastos, congelando gastos públicos com saúde e educação por 20 anos. Hoje já cobra seu preço.

Outro momento efervescente de debate político e ação artística conjunta nos corredores dadianos, foi o ano de 2018 frente ao crescimento do bolsonarismo. Assembleias eram frequentes, a criação de performances e produções audiovisuais também. Atuamos em performance tanto nos atos do “Ele Não” quanto pelos campi da UFRGS. Até mesmo a ferramenta do teatro invisível, de Augusto Boal, foi utilizada pelos estudantes de teatro, através da qual debates anti-Bolsonaro e tudo que ele representa eram instaurados pelas paradas de ônibus da cidade. Em um dos atos, a faixa levantada pelos estudantes foi a seguinte:

Um registro fotográfico do quão profundos eram os debates feitos pelos dadianos naquele momento. O ódio encarniçado de Bolsonaro nos alimentava para querer ir até a raiz do problema e lutar para extinguir as condições materiais que fizeram uma figura como essa e suas ideias surgirem. Trazemos Brecht e sua ironia anticapitalista inconfundível para expressar em palavras os debates feitos na época:

"Os que são contra o fascismo, sem tomar posição contra o capitalismo, os que lastimam a barbárie como resultado da barbárie, parecem pessoas que querem comer sua porção de vitela sem abatê-la. Querem comer a vitela mas não querem ver o sangue. Contentam-se em saber que o açougueiro lava as mãos antes de trazer a carne. Não são contra as relações de propriedade que produzem a barbárie. São apenas contra a barbárie."

Por fim, o ano de 2019 inicia com o DAD paralisado por justiça à Marielle, no dia em que se completou 1 ano do seu assassinato. Paralisamos, exigimos justiça e uma investigação independente das instituições estatais, que fazem de tudo até os dias de hoje para não responder quem mandou matar Marielle Franco. Seguimos lutando por justiça.

Foi em maio desse mesmo ano que o movimento estudantil protagonizou o tsunami da educação contra os cortes nas Universidades e IFs anunciado pelo então Ministro da Educação, o lunático e reacionário Weintraub. No DAD, votamos pela total paralisação das aulas tanto no dia 15M quanto no 30M, dias em que nos organizamos em assembleias e preparamos faixas e performances, com as quais estivemos na linha de frente das manifestações em Porto Alegre.

Defendíamos nas ruas a unidade entre a juventude e os trabalhadores para lutar de maneira conjunta contra os cortes e a reforma da previdência, que também estava sendo pautada naquele momento. Levantamos essa política contra o divisionismo imposto pelas direções burocráticas do PT e UJS que através de suas entidades estudantis, como a UNE, e as entidades de trabalhadores, como as Centrais Sindicais CUT e CTB, atuaram conscientemente para dividir a luta dos estudantes e trabalhadores, separando a luta contra os cortes e contra a reforma da previdência. Sendo que a UNE diretamente aceitou a chantagem feita pelo governo federal de que os cortes seriam revertidos caso a reforma da previdência fosse aprovada. O fim dessa história foi a aprovação da reforma da previdência e também dos cortes, ainda que em menor quantidade do anunciado anteriormente, mas que de lá até aqui só vem se aprofundando, chegando aos cortes bilionários que hoje ameaçam de fechamento nossas universidades. E foi nessa perspectiva também que os estudantes do DAD e IA estiveram juntos aos trabalhadores rodoviários no dia 14 de junho, na greve geral chamada pelas centrais sindicais e que foi traída por essas mesmas centrais, a começar pela UGT e a Força Sindical, que junto da CUT e CTB, utilizaram a força de nossa mobilização para negociar com Maia e o centrão uma proposta alternativa de reforma da previdência e um acordo para salvaguardar seus interesses, negociando nosso futuro e presente junto dos capitalistas.

Esses foram alguns dos processos de luta de classes dos últimos anos que moldaram o que é hoje o corpo discente e docente do DAD, suas produções artísticas e reflexões de conjunto.

Fios de continuidade de uma trajetória marcada pela resistência, arte crítica e unidade com trabalhadores

Como já dissemos, trazemos esse resgate pontual de lutas nas quais os dadianes intervieram, desde a criação do departamento, para que possamos refletir nossos desafios hoje. Tirar lições das experiências passadas nos deixa melhor preparados atualmente para enfrentar Bolsonaro, Mourão e o conjunto dos atores desse regime político que sistematicamente retira verba da educação pública, direitos dos trabalhadores, avançam em privatizações, destroem nossa história cultural e a transforma em cinzas e por aí vai…

Das lições a serem tiradas, a primeira delas é a importância do Centro Acadêmico enquanto uma ferramenta de organização e luta dos estudantes. O Centro Acadêmico Dionísio, CADi, esteve presente em cada uma dessas lutas, convocando e construindo as assembleias, campanhas em defesa dos cotistas, em defesa das terceirizadas e apostando nos estudantes como aqueles que são capazes de levar a frente suas demandas, impulsionando e fomentando o debate crítico.

Depois, vemos que para lutar consequentemente em defesa da Universidade Pública e de uma arte livre precisaremos confiar apenas nas nossas próprias forças, dos estudantes aliados à classe trabalhadora. Das instituições desse regime golpista, como o Congresso e o STF, nada virá em nosso benefício, uma vez que historicamente estiveram do outro lado da trincheira, sempre em defesa do lucro. Nesse sentido, nossa luta precisa ir na raiz do problema e lutar não somente contra Bolsonaro (como a política do Impeachment oferece, um abre-alas ao racista e reacionário militar Mourão) mas também contra Mourão e todos atores desse regime.

A arte que produzimos e o teatro que encenamos e refletimos não passa por fora de cada uma dessas batalhas (e muitas outras!). E hoje, para defender uma arte livre das amarras da indústria cultural, das grandes empresas e da lógica do lucro, é preciso levantar uma luta anticapitalista consequente, que se enfrente com a lógica predatória desse sistema.

E chamamos cada dadiano a se apropriar dessa história de luta. E é com a moral dos estudantes que mantiveram o DAD funcionando em meio a ditadura, que ocuparam o prédio no qual temos aula hoje para exigir um espaço de ensino decente perante a UFRGS, que estiveram na linha de frente dos atos contra o Bolsonaro e defendendo a aliança com a classe trabalhadora que vocês estão convocados a serem os fios de continuidade dessa trajetória. Sejam os sujeitos que transformam a história hoje para podermos contá-la no futuro.

Referências:

Wolkmer, Juliana Ribeiro. 2017. Formação em Teatro na UFRGS (1960-1973): Memórias de Tempos de Ousadia e Paixão


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Giovana Pozzi

Estudante de história na UFRGS
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Julia Terra

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