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DIÁRIO DE UMA PRECARIZADA | Diário de Uma Precarizada #5: “a gente lutou pra que todos, sem exceção, fossem vacinados”

O "Diário de Uma Precarizada" é uma iniciativa do Esquerda Diário e do grupo de mulheres Pão e Rosas, reproduzindo uma série de páginas de diários de mulheres precarizadas dos nossos tempos, com relatos de suas reflexões, suas histórias e cotidianos vivendo a combinação da opressão e exploração. É fundamental olhar a realidade do mundo pelos olhos das mulheres, que são metade da classe trabalhadora hoje, e no Brasil majoritariamente negras, que vivem em duras condições de vida, trabalhadoras precarizadas, terceirizadas, muitas delas moradoras de favelas e periferias. Esse diário busca dar voz a essas mulheres e contribuir para despertar, através de uma perspectiva revolucionária, para que a força cotidiana dessas mulheres se transforme em organização e luta, e estejam na linha de frente nos combates contra a opressão e exploração capitalista, sendo protagonistas da transformação do mundo com a nossa classe.

Pão e Rosas@Pao_e_Rosas

terça-feira 8 de junho de 2021 | Edição do dia

Imagem: Macaco do Sul

O relato no diário de hoje é da Marília Lacerda, trabalhadora do Hospital Universitário (HU) da Universidade de São Paulo (USP), que mostra a força mulheres que mesmo diante de toda a miséria cotidiana da dupla e tripla jornada, são linha de frente de lutas que garantiram vacinas para todos. Ela esteve com outras trabalhadoras e trabalhadores do HU da USP protagonizando uma greve em fevereiro desse ano, que contou com amplo apoio interno para garantir que todos fossem vacinados mostrando a força da unidade dos trabalhadores do hospital, se enfrentando com a superintendência racista que excluía as terceirizadas ao direito à vacinação e contra o governo Dória que fazia demagogia ao se opor ao Bolsonaro. Para também saber mais dessa greve leia aqui.

Tem sido dias difíceis de viver sendo mulher numa sociedade onde a gente é inferiorizada diariamente desde a infância. Aos 3 anos de idade eu fui vítima de abuso por uma pessoa muito próxima da família e que ao longo da vida foi acarretando em vários traumas mas que hoje percebo que não me afeta mais tão profundamente.

Minha mãe criou quatro filhos sozinha passando muitas necessidades, fome, moradia precária, e por mais que ela se esforçasse para ser pai e mãe ao mesmo tempo, ainda lhe faltava tempo para suprir todas as necessidades que a gente tinha de carinho, afeto e atenção. O que tivemos foi um irmão mais velho cuidando do mais novo como vemos em tantas famílias.

Mas a minha guerreira ensinou para gente o mais importante de tudo, o valor das coisas, o valor da vida, o valor da esperança, o valor da gente mesmo! E com ela aprendemos ser homens e mulheres dignos, honestos, que lutam por um mundo melhor!

Fico imaginando como ela se sentia cada vez que tinha que dizer não para um de nós e hoje me sinto muito gratificada por ter oportunidade de criar os meus filhos sozinha, assim como a minha mãe, mas no conforto de um lar, sem nenhuma necessidade, com cômodos grandes, espaço, bairro bom, tudo aquilo que a gente nunca pode ter quando criança.

Engraçado que a gente como mãe tem que mostrar para o filho um mundo que a gente não teve, a gente quer que ele estude para não sofrer as coisas que a gente sofreu quando jovem e criança, tenta passar valores que achamos dignos e importantes de ter na vida.

Percebo como minha mãe foi uma guerreira por ter apenas a 4ª série e conseguir trazer o sustento para seus filhos em casa, pagar aluguel e tentar dar o mínimo necessário para se viver. E com toda certeza falo por mim e pelos meus irmãos que somos extremamente gratos por termos saído de seu ventre pois ela é um exemplo de mulher e assim como ela existem e já existiram milhares de outras "Marias" pelo mundo! Mas essa foi a que me criou e me tornou quem sou hoje.

Em casa sempre foi muito importante os estudos, eu era preguiçosa, mas não deixei de estudar, aos poucos fui percebendo que se não estudasse não teria nada nessa vida. Sempre foi muito difícil ir pra escola, ou pegava ônibus ou iria a pé, mas consegui me formar com uma boa base. Mas pobre não pode só estudar, ainda no ensino médio comecei a trabalhar pra ajudar em casa, porque o salário da minha mãe era muito baixo e pagando aluguel mal dava pra comprar um chocolate, coisa que todo adolescente adora. Meu primeiro salário comprei tantas besteiras no mercado, parecia uma criança boba, mas com esse salário, mesmo baixinho eu ajudava pagar as contas em casa.

Veio meu primeiro filho, um momento difícil onde decidi tê-lo sozinha já que o pai não quis saber. A ideologia capitalista patriarcal faz com que os homens da nossa sociedade não se acham parte da gestação e da vida do filho que eles fazem, tudo acaba nas nossas costas! Tive muita ajuda da minha mãe e de familiares que nunca deixaram faltar nada, além do meu próprio trabalho, que nesta época já tinha um salário melhor por entrar num concurso.

Anos depois casada tive minha filha, felicidade completa por ter um casal, mas ela veio no final da faculdade, até pensei em parar, mas com muito apoio da família e dos professores eu me formei, com nota máxima na apresentação do TCC (trabalho de conclusão de curso)! Me orgulho muito de ser graduada.

Hoje divorciada e criando meus filhos no meio dessa pandemia, tento mostrar pra eles o tempo todo como a vida muda, como podemos sempre buscar ser melhores, ter uma vida melhor, um mundo melhor! Porque nessa sociedade onde tudo tem seu preço ($) e a gente nem sempre tem condições para bancar, temos que ser minimamente sensíveis e esclarecidos do nosso papel nessa sociedade, de sermos protagonistas da nossa própria história, da história da nossa classe, já que os governantes, ricos e poderosos só estão preocupados com seus lucros, cada vez mais nos explorando!! Cadê o dever do Estado?? A gente só sente o peso do trabalho diariamente.

E por falar em pandemia e direitos, é bom lembrar aqui de toda luta que nós, trabalhadoras da saúde tivemos que travar nesse último ano no HU. No hospital que trabalho logo no começo da pandemia tivemos que paralisar para receber EPI´s (equipamento de proteção individual) como máscara e álcool gel, e foi um caos nacional em toda saúde, vários hospitais se mobilizando, quase impossível de se trabalhar. Depois recebemos a ordem de liberação dos trabalhadores pertencentes ao grupo de risco, mais uma briga; o tempo todo expondo nossa saúde e da nossa família e ninguém além de nós mesmos para nos defender e ajudar. Até o ponto de termos que protagonizar uma paralisação de uma semana para que todos os funcionários recebessem as doses de vacina que o hospital recebeu, foi uma semana intensa, porque a gente lutou pra que todos, sem exceção fossem vacinados, efetivos e terceirizados, temporários, residentes e estudantes da saúde, também denunciando a falta de vacina para toda a população. Fizemos uma paralisação em que a decisões eram tomadas em assembleias pelas próprias trabalhadoras e trabalhadores e lutamos contra o tratamento diferenciado que a administração dava em relação aos terceirizados, por isso defendemos vacina para todos.

Chega um momento que a gente percebe que se ficar quieto e sozinho nada vai mudar, e sempre temos esses exemplos no nosso dia a dia, como durante essa pandemia temos visto isso! Unificados conseguimos uma resposta positiva minimamente por melhores condições.

Quando fizemos uma greve muito forte no trabalho de 119 dias em 2014 na USP, e tive o prazer de conhecer o grupo de mulheres Pão e Rosas, entendi que eu precisava estar com essas tantas mulheres que não se rebaixam nem baixam suas cabeças, mas são as que lutam por nossos direitos! Entendi que precisava me organizar não apenas pelos direitos das mulheres, mas unida da toda nossa classe contra o sistema capitalista. E passo tudo que aprendi para que meus filhos avaliem e tenham suas próprias experiências com o mundo! Sem se perder nas injustiças, no consumismo, no valor material, mas que saibam dar valor naquilo que realmente importa! Que possam desejar um mundo sem exploração, sem fome, sem as amarras do capitalismo!! Sempre lembrando que juntos somos mais fortes e podemos muito!




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