Logo Ideias de Esquerda

Logo La Izquierda Diario

SEMANÁRIO

Diálogos com Dossiê da Unicamp diante do PL da Uberização: A maioria dos motofretistas de app trabalha todos dias e mais de 60 horas

Weckson Vinicius

Diálogos com Dossiê da Unicamp diante do PL da Uberização: A maioria dos motofretistas de app trabalha todos dias e mais de 60 horas

Weckson Vinicius

Na última semana, foi publicado o “Dossiê das Violações dos Direitos Humanos no Trabalho Uberizado”, obra que traz os primeiros resultados de uma pesquisa da Diretoria Executiva de Direitos Humanos (DEDH) da Unicamp empreendida em 2023 com 200 motofretistas de Campinas. Em meio ao debate acerca do PL da Uberização, as pesquisadoras Ludmila Abílio e Silvia Santiago, coautoras do Dossiê, trazem à tona dados chocantes que reforçam a gravidade da regulamentação do trabalho uberizado proposta pelo governo de Frente Ampla Lula-Alckmin. Divulgamos aqui alguns dos resultados deste importante Dossiê buscando contribuir para o debate sobre a uberização do trabalho.

Em uma mesa realizada na quinta-feira pelo Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas - IFCH/UNICAMP, denominada de “O futuro do trabalho plataformizado - Mobilização e Regulamentação”, Ludmila Abílio parte de uma definição que, concordando com a autora, é fundamental para a caracterização do trabalhador por aplicativo, mas também se constitui como uma característica primordial que define a reconfiguração mundial do trabalho, a saber: o trabalho sob demanda.

“Quando você é um trabalhador sob demanda você passa a ser um cara disponível para o trabalho que só é recrutado apenas quando necessário. E junto com isso vem o que está nesse PL [PL dos Apps, 12/2024] de remunerar o trabalhador pelo o que Tábata Amaral já falava de tempo efetivo de produção. Quando você legaliza isso, você reduz o trabalhador a pura força de trabalho. Ele (o trabalhador) passa a arcar com o que Marx chamava de ‘poros do trabalho’, arcando com todos os riscos e custos da atividade dele e a empresa só remunera quando ele efetivamente produz.”

O PL da Uberização do governo Lula-Alckmin se constitui como um marco legal da uberização do trabalho na medida em que legaliza o trabalho sob demanda e, com isso, institui um novo segmento profissional que define a relação entre o trabalhador e a empresa como um regime sem vínculo empregatício, ou seja, o status de “trabalhador autônomo por plataforma” e a empresa de mera fornecedora ou mediadora da plataforma. Em outras palavras, utilizando a categoria marxista do trabalho por peça, só é contado como tempo de trabalho o momento em que o motorista aceita uma corrida - o tempo de espera que passa disponível para o trabalho não é contabilizado nas 12 horas como jornada que o PL pretende institucionalizar. Os professores também chamam atenção para o fato de que essas 12 horas limitam a jornada em um único aplicativo, o que significa que ainda legaliza que o motorista uberizado termine suas 12 horas de corridas efetivamente realizadas e passe a trabalhar para outro aplicativo. Nas palavras de Ludmila Abílio, trata-se de um PL “assustador”.

Como enfatiza o Dossiê: “Assim, é preciso sempre destacar que: qualquer forma de regulação que venha a ser aprovada, e que abranja apenas entregadores e/ou motoristas, servirá como uma referência legal para todas as ocupações que já estão se uberizando. Ou seja, está em jogo a constituição do que pode ser um veículo legal da promoção da uberização para outros setores (...)"

Veja mais: Ato contra o PL da Uberização na Faculdade de Direito da USP

Essa reconfiguração internacional do trabalho, que pode ser considerada uma nova reestruturação produtiva, vem como forma de espremer o trabalhador até seu limite humano para arrancar de cada corpo o máximo de lucro. E essa pesquisa transforma em dados gráficos esse moedor de gente chamado uberização do trabalho.

Foram entrevistados 200 trabalhadores da região de Campinas, em que 90% eram do sexo masculino, sendo 40,5% brancos e 59,5% negros.

Além do fato de que os negros são maioria dos trabalhos mais precários e degradantes, a pesquisa traz um dado que remonta às piores condições de trabalho de séculos passados: 51,9%, ou seja, a maioria absoluta dos entregadores de app trabalham todos os dias da semana. Para aqueles que não trabalham em aplicativos, o dado também é escandaloso, 32,8% não possuem descanso semanal.

A jornada de 44 horas semanais também já se constitui como uma realidade extremamente distante, dado que 52,6%, ou seja também a maioria absoluta daqueles que entregam por aplicativo, trabalham mais do que 60 horas por semana. 37,6%, mais de um terço, se arriscam nas ruas por mais de 70 horas semanais; e ⅕ desses trabalhadores fazem 80 horas, quase o dobro permitido por lei. Se fosse uma situação hipotética de escala semanal 5/2 isso daria absurdas 16 horas por dia de trabalho.

Em relação à renda, o ganho por hora dos “NÃO APP” foi de R$ 15,62, e a dos “APP” R$ 12,50. Considerando que os aplicativos fazem gerenciamento algorítmico do trabalho, ou seja, a combinação da maior cientificidade no gerenciamento e controle do trabalhador por meio de dados (enquanto para o trabalhador o cenário é de aleatoriedade e imprevisibilidade, não tendo nenhum controle sobre o que receberá) e o modelo de trabalho sob demanda, necessariamente obriga os entregadores a trabalharem cada vez mais em tempo e distância, para que assim aumentem o “ranqueamento” e consigam mais corridas. Sua sobrevivência depende de cada vez mais trabalho. Além disso, como chamou a atenção o professor Dari Krein, do Instituto de Economia, debate-se que a proposta de remuneração proposta pelo PL da Uberização, além de institucionalizar a lógica do trabalho sob demanda, como é o cerne da proposta, pode transformar a remuneração acordada em um teto, e não um piso, como discursa o governo.

É importante ressaltar aqui a noção que o Dossiê reitera da “oligopolização e centralização do controle sobre o trabalho e sua distribuição no tempo e no espaço”, onde empresas como Ifood, Uber, 99 gerenciam centenas de milhares de trabalhadores disponíveis, que são utilizados por elas sob demanda, sem qualquer responsabilização sobre extensão da jornada de trabalho, remuneração justa, saúde e segurança do trabalhador.

E para trabalhar mais logo os trabalhadores dormem menos e pior, sendo que 1/4 dos respondentes dorme no máximo 5 horas por dia, em uma atividade que necessita de atenção constante e um nível de saúdes física e mental minimamente adequado. Quase 70% deles dormem no máximo 7 horas por dia.

Isso implica diretamente no índice de acidentes que o dossiê qualifica como “brutal”:

“Dos 198 trabalhadores que responderam essa questão, 65,7% disseram já ter sofrido acidente de trânsito com a motocicleta durante o trabalho, sendo que 42% dos respondentes já tiveram de se afastar por acidente de trabalho. Dos 83 respondentes que tiveram de se afastar, 45% ficaram mais de três meses afastados das atividades. Quase 1/4 dos que se afastaram, 24%, o fizeram por mais de seis meses.”

“Privação de sono, alimentação irregular, hidratação precária, condições climáticas extremas, episódios de níveis pressóricos alterados combinam-se de forma perversa com condições de trabalho cada vez mais degradadas e degradantes, e resultam hoje nesse cenário de mortos e feridos que não pode ser aceito nem normalizado.”

Sobre a hidratação dos entregadores, os pesquisadores foram surpreendidos, pois nem ao menos conseguiam fazer a coleta de sangue na quantidade necessária por conta da desidratação causada pela exposição ao sol, com constante demanda física e mental e pela ausência de postos de apoio para ida ao banheiro e para beber água. Os pesquisadores afirmam relatos de trabalhadores que acabam não bebendo água porque não têm banheiros para usar durante a extensa jornada.

Todos estes dados promovem o quadro absurdo da uberização no Brasil e do papel nefasto que busca cumprir o governo Lula-Alckmin com a sua legalização. O aumento e generalização da informalização e uberização do trabalho para diversas categorias, com a transferências de todos os riscos e custos da atividade para o trabalhador, além do controle cada vez maior e despótico das empresas sobre os trabalhadores com o gerenciamento algorítmico e o consequente enfraquecimento da organização dos trabalhadores com sua atomização e pulverização, o aumento da monopolização, entre outras consequências degradantes da uberização do trabalho.

Na Unicamp, que tem o iFood como empresa-filha, a precarização do trabalho é sentida por meio da terceirização, que nas últimas semanas recebeu denúncias escandalosas, como esta. A reitoria da Unicamp também é responsável por essa situação.

A terceirização, instituída a partir da década de 90 no Brasil, aprofundou-se enormemente nos governos petistas anteriores. Após o golpe de 2016, o STF, que nega o vínculo empregatício dos entregadores, aprovou a Lei de Terceirização Irrestrita. Agora, enquanto Lula promoveu um Primeiro de Maio pautado pela conciliação de classes, quer com seu PL dar bases legais à uberização que já atinge uma parte expressiva da classe trabalhadora.

Em diálogo com essa intelectualidade que rechaça o PL da Uberização e contra as expressões de extrema direita que rechaçam o PL por defender a lógica mais selvagem da farsa do empreendedorismo, viemos levantando a necessidade de um programa que passe pelo reconhecimento do vínculo empregatício e de todos os direitos para os entregadores, assim como pela revogação da Reforma Trabalhista e de todas as reformas dos últimos anos, com a efetivação de todos os terceirizados sem a necessidade de concurso público nos serviços públicos.

Assine o Manifesto contra a Terceirização e a Precarização do Trabalho.


veja todos os artigos desta edição
CATEGORÍAS

[Precarização do trabalho]   /   [Uberização]   /   [Pesquisa]   /   [Unicamp]

Weckson Vinicius

Comentários