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Debate sobre o novo sindicalismo nos EUA a partir do livro de Joe Burns

Jason Koslowski

Debate sobre o novo sindicalismo nos EUA a partir do livro de Joe Burns

Jason Koslowski

Apresentamos a tradução de um artigo de Jason Kolowski, publicado em ingles na Left Voice Magazine e traduzido para o espanhol no suplemento teórico Ideas de Izquierda, sobre o livro de Joe Burns Class Struggle Unionism (“Sindicalismo de luta de classes”). Este livro surge em um momento chave, onde o movimento sindical estadunidense, adormecido durante muito tempo, começa a se agitar novamente.

Quase 70% da população estadunidense aprova os sindicatos. É a cifra mais alta em mais de 50 anos. Uma onda de sindicalização está varrendo o país. No ano passado, produziu-se um aumento de 57% no número de petições enviadas à National Labor Relations Board (NLRB, o equivalente à um Ministério do Trabalho) para formar novos sindicatos: o nível mais alto em uma década. O sindicato Amazon Labor Union (ALU) obteve uma vitória histórica no depósito de Staten Island. Os trabalhadores estão sindicalizando-se no Starbucks; mais de 150 lojas já se agremiaram e mais de 300 apresentaram solicitação. A luta é liderada por organizadores jovens, frequentemente da comunidade LGBT+, conhecidos como “Geração U”. O Labor Notes – um evento onde os ativistas sindicais se reúnem para debater ideias e estratégias – teve sua maior conferência da história no verão passado.

Porém, o movimento sindical enfrenta grandes perigos.

Em primeiro lugar, as patronais estão redobrando seus esforços para acabar com os sindicatos. Estão despedindo organizadores no Starbucks e na Amazon. Em segundo lugar, o Partido Democrata olha para os novos sindicatos e esfrega as mãos. Traíram os trabalhadores durante décadas: mantiveram suas lutas dentro de limites legais, seguros e convenientes para o regime, além de terem convencido e pressionado líderes sindicais a abandonarem as greves que afetariam os benefícios dos empresários.

Agora, entretanto, os democratas querem tirar fotos com os dirigentes para ficar bem com os sindicatos, para canalizar nossa energia e poder para as urnas no lugar de lutar por nós mesmos nos locais de trabalho e nas ruas. Estão agora especialmente desesperados, pois enfrentarão em novembro as difíceis eleições de meio de mandato em um cenário em que a administração Biden pode perder a maioria em uma ou em ambas as câmaras do Congresso.

O livro é um lembrete urgente: sim, definitivamente necessitamos de mais sindicatos, mas necessitamos que sejam firmes e poderosos, sem ter medo de fazer greve – uma das armas mais fortes que possuem – e que rechacem seus falsos “aliados” do Partido Democrata.

O livro de Burns também tem alguns limites importantes. Não chega ao ponto de exigir que nossos sindicatos rompam todos os laços com o Partido Democrata pela independência política que necessitamos, embora mostre o quão traidor esse partido é. Além disso, o livro ignora importantes mudanças dentro do movimento operário que devemos levar em consideração se queremos construir uma verdadeira democracia em nossas organizações.

Ainda assim, serve enormemente para levarmos em conta que é possível ter melhores sindicatos e que sejam combativos. Os trabalhadores construíram esses tipos de organizações no passado e nós podemos voltar a construí-las hoje. Temos apenas que levar as ideias de Burns além do que ele levou.

O que é o sindicalismo combativo?

A primeira coisa que é preciso ter em conta é a diferença desse livro da grande maioria dos que foram publicados sobre o mesmo tema, ao menos nos últimos 25 anos. O capítulo 1 apresenta uma ideia que é totalmente ignorada por um autor do mainstream como Jane McAleevey. Trata-se de algo tão básico como isso: a fonte de todas os lucros dos empresários somos nós, a classe trabalhadora.

Burns o explica em termos de matemática simples. Suponhamos que um patrão me contrata por 20 dólares a hora. Em um turno de oito horas, ganho 160 dólares. O patrão também põe algum dinheiro para as máquinas, aluguel etc. e talvez alguns benefícios como um seguro de saúde para o empregado (ainda que seja provável que não o faça). Isso faz com que a quantidade total que o patrão gasta durante meu turno seja de uns 500 dólares.

Porém, quando estou trabalhando, seja fazendo cafés ou atendendo pedidos em um armazém da Amazon, estou gerando muito mais dinheiro que isso para o patrão. Este gasta 500 dólares em mim, mas em meu turno sirvo suficientemente cafés ou empacoto suficientemente caixas para que o patrão ganhe 800, 1000 dólares ou mais. Quando trabalhava em uma linha de produção na cidade de Reading, na Pensilvânia, há alguns anos, movia centenas de milhares de dólares em produtos de pastelaria em um turno e me pagavam 58 dólares. Essa diferença é a razão pela qual se contratam trabalhadores.

Para onde vai esse valor extra, o valor que nós trabalhadores criamos com nosso trabalho? “Os multimilionários chamam isso de lucro”, escreve Burns. “Os sindicalistas da luta de classes o chamam de roubo”. [1] Em outras palavras, todo o funcionamento do trabalho é essa exploração: trabalhamos para que os patrões não precisem trabalhar e possam enriquecer. E sempre buscam uma maneira de aumentar a exploração que nos submetem e a amputar o poder dos trabalhadores.

Tudo isso significa várias coisas. Em primeiro lugar, necessitamos de sindicatos para que os trabalhadores possam se proteger e se defender. Para isso existem essas organizações, e a batalha fundamental entre “eles” e “nós” significa que nenhum compromisso de nossos sindicatos com os empresários pode superar esse conflito; não existe nenhuma cooperação que possa fazer com que os empresários sejam nossos amigos. Também significa que uma das armas mais fortes que temos como trabalhadores é recusar a servir, fazer greve para lutar, para derrotar os ataques da patronal, para conseguir mais poder sobre nosso trabalho e arrancar mais concessões dos patrões. Desse modo, o ponto de partida de “eles e nós” dever ser a base da luta sindical.

E por que não o é?

Nos primeiros capítulos do livro, Burns explica por que os dirigentes sindicais rejeitam esmagadoramente essa ideia, abandonando em sua maioria, junto com ela, o uso real da greve como um meio de combate para obter concessões tangíveis dos empresários.

A principal forma de dirigir os sindicatos nos Estados Unidos durante muitas décadas, aponta acertadamente, foi o sindicalismo empresarial. [2] Esse modelo domina a maior parte da AFL-CIO, a maior federação sindical do país. A AFL-CIO é muito burocrática e vertical. Portanto, não tem muita necessidade de que as bases lutem nem que exista democracia: essas coisas seriam muito perturbadoras para o poder da cúpula. Burns mostra como a raiz deste enfoque está ligada aos vínculos dos dirigentes sindicais com o Partido Democrata. Esses se negam, em sua maioria, a utilizar a arma mais importante dos trabalhadores – a greve – para pressionar os empresários. Não fazem nada porque contam com os democratas para melhorara as leis e se ocupam de fazer campanhas políticas para o partido. Os burocratas e os democratas, em outras palavras, trabalham juntos para manter os trabalhadores sob controle.

Essa abordagem tem fracassado por conta de duas coisas que ocorrem quando os trabalhadores não constroem poder para fazer greve e interromper o fluxo de lucros: os patrões e os políticos passam por cima dos sindicatos, e os trabalhadores perdem sua fé neles. Isso é exatamente o que tem ocorrido. Entre 1980 e hoje – o apogeu do “sindicalismo empresarial” – as greves despencaram; a classe dominante desmantelou os sindicatos; os números de sindicalização caíram de 20-30% para 11% atualmente.

Mas uma das ideias mais interessantes e importantes de Burns sobre os sindicatos de hoje é a relativa “ala esquerda” que se desenvolveu dentro das burocracias sindicais, e a forma com que fracassaram também.

Burns aponta que, nos anos 90, os dirigentes sindicais desenvolveram outra estratégia que também fracassou. Chama de liberalismo trabalhista. Nasceu dos fracassos do sindicalismo empresarial e é o modelo que vemos, por exemplo no Service Employees International Union (SEIU, o sindicato de empregados de serviços). O liberalismo trabalhista tenta lutar contra o declínio dos sindicatos apontando problemas mais amplos, como o antirracismo e a igualdade de gênero. Em outras palavras, o objetivo é ampliar o movimento como forma de reforçar os sindicatos.

É crucial que os sindicatos defendam essas questões, mas essa corrente as utiliza como uma forma de evitar as lutas reais com a classe dominante. Em seu lugar, apelam a um poder comunitário abstrato, se baseiam em ações simbólicas, se associam com organizações sem fins lucrativos (ONGs) que não podem interromper realmente o fluxo de lucros etc., deixando de lado as lutas no local de trabalho, de onde se produz a exploração dos trabalhadores, o racismo e o sexismo dos empresários. Desse modo, o liberalismo trabalhista tampouco necessita construir lutas partindo do lugar de trabalho, ou um verdadeiro controle democrático das decisões sindicais por parte da base. Da mesma forma que o sindicalismo empresarial, também não luta contra a patronal através de greves combativas.

Nenhuma dessas estratégias burocráticas pode nos ajudar hoje, disse Burns com toda a razão. Vemos a prova, por exemplo, do fracasso da Retail, Wholesale and Department Store Union (RWDSU, sindicato dos trabalhadores de depósitos) na organização de um armazém da Amazon em Bessemer, Alabama. Os dirigentes do RWDSU parecem um exemplo clássico de “liberais trabalhistas”. Denunciam o racismo e defendem a solidariedade contra a discriminação; até aqui, tudo bem. Porém, o que se viu no Alabama foi uma estratégia organizativa liberal que não conseguiu vencer os patrões. Pelos informes obtidos do Alabama na época, é possível ter uma visão bem vertical do método de atuação, sem conexões profundas com a luta em grande escala e sobre o terreno dos trabalhadores de lá.

Burns nos lembra que existe outras formas de organizar um sindicato. Sua época dourada foi durante as violentas greves massivas dos anos 30 que aterrorizaram a classe dominante; chama-o de Sindicalismo de luta de classes. É baseado na ideia de “nós e eles” de que falávamos antes; o local de trabalho é o lugar onde a luta de classes se desenvolve, de patrões que tentam aumentar a taxa de exploração dos trabalhadores, e de trabalhadores que buscam contra-atacar. O sindicalismo de luta de classes constrói o poder de suas organizações desde baixo até em cima, porque se baseia nas próprias batalhas diárias dos trabalhadores com os patrões no local de trabalho. Diz ainda que é um tipo de sindicalismo que tem que ser politicamente independente; quando nos ajoelhamos diante dos democratas e esperamos que nos salvem, renunciamos nosso poder para lutar por nós mesmos nas empresas e nas ruas.

Como muito bem aponta Burns, a greve tem que estar no centro do sindicalismo de luta de classes. Isso se deve por conta que os trabalhadores estão no ponto de chave de congestão do capitalismo: nós produzimos os lucros. Portanto, a greve – recusando produzir lucros para a patronal – deve ser a arma central de nossos sindicatos (embora as organizações burocráticas a tenham abandonado em sua maioria). Porém, o autor nos recorda que levar adiante movimentos grevistas poderosos implica fazer o que os sindicatos têm evitado durante décadas: violar a lei. A legislação trabalhista é desenhada para evitar que triunfemos. Por exemplo: leis estaduais como a Lei Taylor de Nova York proíbe as greves do setor público. A legislação trabalhista nacional proíbe as greves em solidariedade, as que um sindicato entra em greve para apoiar outro. Proíbe ainda as ações para evitar que os fura-greves ocupem nossos postos de trabalho durante as greves. Todas essas leis têm como objetivo reduzir o poder dos sindicatos para lutar e ganhar. Por isso, ganhar significa violar essas leis.

Burns mostra que construir esse tipo de poder de greve significa unir os trabalhadores acima de nossas diferenças, dentro e fora dos locais de trabalho. Em outras palavras, necessitamos de um tipo de sindicalismo antirracista, que também lute ferozmente contra a opressão de gênero, a opressão racial, e qualquer outra forma de opressão, pois o racismo, o sexismo e a homofobia dividem os trabalhadores e minam seu poder coletivo. Se os liberais trabalhistas dizem que estão a favor de construir esse tipo de poder, o objetivo do sindicalismo de luta de classes é torná-lo realidade: nos unir em nossos locais de trabalho para lutar contra todo tipo de opressão através da greve. Essa é a chave para construir poder tanto nas empresas onde trabalhamos como nas lutas de nossa diversa classe por fora das unidades produtivas.

As propostas de Burns tornaram-se mais urgentes nas últimas semanas. Sabemos que a classe dominante está intensificando seus ataques à classe trabalhadora e aos oprimidos; não apenas está em pleno andamento a repressão aos sindicatos no Starbucks, na Amazon, e em outros lugares, mas também a anulação de Roe v. Wade (decisão jurídica que garantia o direito ao aborto). É a classe trabalhadora, as minorias raciais e os pobres os que mais sofrerão com a proibição do aborto. O direito de decidir sobre nossos corpos está no centro dos direitos dxs trabalhadorxs. Burns tem toda a razão ao afirmar que hoje nós enfrentamos a urgente tarefa de fazer que nossas organizações superem o sindicalismo burocrático e rígido, que não move um dedo para combater realmente a opressão. No sentido contrário, temos que construir sindicatos combativos, dispostos a ir para a luta nas ruas e nos locais de trabalho onde nós trabalhamos. Nosso poder como trabalhadores e nos sindicatos vem do fato de que os lucros provêm de nosso trabalho. Utilizamos esse poder quando, por meio da greve, fechamos a válvula de onde fluem os dividendos.

O problema do Partido Democrata

Porém, o livro de Burns também está atravessado por uma contradição chave. Por um lado, aponta – de forma implacável e detalhada – o papel que desempenhou o Partido Democrata no debilitamento e traição do movimento operário. Também nesse aspecto, Class Struggle Unionism é um livro muito diferente (não existe nada sequer parecido a essa crítica em outros livros importantes como State of the Union de Lichtenstein, de vários anos atras, ou qualquer um dos livros de Jane McAlevey. As obras de Kim Moody são uma exceção chave).

Por exemplo, Burns aponta que os dirigentes sindicais dos Estados Unidos converteram a prática dos sindicatos de implorarem aos democratas para que melhorem as leis em eixo central de sua estratégia em troca de apoio e doações aos candidatos. Demonstra repetidamente o completo desastre que dessa estratégia para os sindicatos. Para citar apenas alguns exemplos desde a Segunda Guerra Mundial, os democratas foram fundamentais para que fossem aprovadas leis trabalhistas prejudiciais como a Taft Hartley em 1947, que restringiu severamente quando e como os sindicatos podiam fazer greve). Os democratas lutaram ferozmente contra os sindicatos em greve, como contra o sindicato de professores de Chicago em 2012 e 2021. Foram os democratas que encabeçaram a brutal repressão do levantamento antirracista do verão de 2020. Os democratas se negaram a tomar medidas reais para legalizar o direito ao aborto nos últimos 50 anos e agora se negam a lutar para restabelecê-lo. A lista segue.

Talvez em sua crítica mais aguda ao Partido Democrata no livro, Burns escreve:

"Agora, pode-se argumentar que investir milhões de dólares e inumeráveis horas de voluntariado em um partido que trai constantemente os interesses dos trabalhadores é um desperdício, e se pode-se argumentar também que se isso fosse tudo, ainda que seja algo ruim, os trabalhadores poderiam lidar com isso – afinal, desperdiçamos dinheiro em todo tipo de coisa. Mas não é só isso; a estreita dependência do Partido Democrata permite que as ideias da classe multimilionária entrem no movimento operário. No lugar das ideias da luta de classes discutidas no capítulo 2, a aliança com o Partido Democrata fomenta a moderação, o apoio a política exterior das corporações estadunidenses e a cooperação e confiança no mesmo governo criado para proteger a classe multimilionária. É uma força conservadora e se coloca como um recurso alternativa a luta operária. Isso é muito pior que o mero desperdício de recursos nas eleições, pois marca uma direção equivocada para os trabalhadores." [3]

Continua:

"Porém, apesar de todas as provas contrarias, a direção dos sindicatos segue mantendo a esperança de que algum dia possam eleger os democratas e reformar a legislação trabalhista. Embora isso nunca aconteça, é uma forma de evitar crises trabalhistas ... Pior ainda, essa aliança com os democratas é utilizada como uma espécie de válvula de escape. Quando irrompe uma luta intensa, os sindicalistas empresariais geralmente estão desprevenidos e não possuem o controle. Normalmente, tentam desviar as lutas ao refúgio seguro da política eleitoral." [4]

Class Struggle Unionism mostra exatamente porque essa situação não é um acidente ou um erro por parte do Partido Democrata. É um partido da e para a elite dominante; realiza seu trabalho da melhor maneira possível quando consegue nos convencer a “sair para votar” em lugar de lutar contra nossos patrões nas empresas e marchar nas ruas. Porém, é aqui que entra a contradição. Todo o livro aponta uma lição clara para construir verdadeiros sindicatos de luta de classes: temos que quebrar o controle dos democratas sobre nossas organizações.

Ainda que todo o livro aponte nesse sentido, o autor evita essa conclusão, por exemplo, quando Burns enumera quatro táticas que os sindicatos necessitam para ser mais combativos, a luta pela independência política do Partido Democrata não aparece - ainda que diga que “essas táticas se oporiam aos juízes e políticos democratas e republicanos por igual”. [5] Inserido em meio de suas agudas críticas aos democratas, Burns cita Bernie Sanders como autoridade no sindicalismo de luta de Classes. Termina o livro com uma declaração de apoio a Alexandría Ocasio- Cortez e Sanders, ambos representantes do partido que critica. De fato, parece dizer constantemente que os democratas poderiam nos ajudar a construir sindicatos combativos. Em vários pontos, o livro parece tentar realmente sustentar a confiança no partido que acaba de mostrar ser tão prejudicial.

É definitivamente certo que Sanders e AOC influenciaram uma ala esquerda de trabalhadores nos EUA. A aparição de Bernie Sanders no Labor Notes este ano, por exemplo, mostra que é admirado por muitos dos militantes comprometidos que lutam na ala esquerda do movimento sindical, que o veem como um defensor do movimento operário. Mas essa situação também esta cheia de contradições, e é crucial que não fechemos os olhos para elas.

Gostem ou não, Bernie e AOC estão desempenando um papel crucial no Partido Democrata. Estão organizando a ala esquerda dos movimentos sindicais e sociais e levando-os de volta ao partido, entregando-os de bandeja a dirigentes como Biden. Ajudam a dissimular o papel do Partido Democrata como o cemitério dos movimentos sociais, o eterno traidor dos sindicatos.

Um exemplo ajuda a mostrar quão profundo é esse problema. Foi o Partido Democrata na Filadelfia, em Nova York, em Minneapolis e outros lugares que reprimiu os protestos antirracistas em 2020, um movimento liderado por jovens negros e latinos, em sua grande maioria da classe trabalhadora. É um partido que durante muito tempo defendeu a polícia racista e assassina. Mas em meio a tudo isso, em 2020, Bernie Sanders foi um polo de atração para muitos ativistas – nos sindicatos e fora deles - que queriam uma mudança radical nos Estados Unidos. Reunindo seu apoio, cumpriu então o seu dever: sustentou Biden e chamou todos a votar nele para resolver nossos problemas (quando perdeu a interna para a indicação presidencial democrata). Isso ajudou a cooptar a energia das massas nas ruas e nos locais de trabalho, entregando-a a um político que se opõe a cada uma das principais demandas do levantamento, e que não fez mais que trair os sindicatos. Biden então se virou e pediu mais policia e mais exército. Isso se aproxima do tipo de sindicalismo antirracista, internacionalista e de luta de classes que reivindica Burns?

Então por que existe essa contradição no livro? Parte do motivo deve ser a própria posição contraditória de Burns. É parte da direção de um sindicato: é “diretor de negociação coletiva” no sindicato de auxiliares de bordo CWA-AFA (dirigido por Sarah Nelson). É um dos sindicatos mais combativos e inspiradores dos Estados Unidos. Mas também é um sindicato vinculado ao Partido Democrata. Por exemplo, apoiou Bernie Sanders em 2015, e depois Biden em 2020. O livro de Burns encarna essa dualidade.

Entretanto, parece existir algo maior e mais importante nisso tudo. A contradição desse livro parece registrar uma espécie de descontentamento ou desenvolvimento dentro do movimento operário organizado, entre as bases, nos últimos anos. Por exemplo, na massiva conferência de 2022 do Labor Notes, um membro do Left Voice, parte da Rede Internacional La Izquierda Diario, levantou a questão diretamente a própria Sarah Nelson – chefe de Burns no CWA-AFA-, que também escreveu o breve texto que abre o livro, elogiando-o. O camarada do Left Voice argumentou que nossas organizações precisavam de uma verdadeira independência dos democratas e foi recebido com um aplauso enlouquecido em uma sala enorme e abarrotada de ativistas sindicais. Porém, a resposta de Nelson foi reveladora. Não defendeu os democratas; de fato, em sua intervenção nesse painel, criticou seu histórico sindical à maneira de Burns. Mas se recusou a romper com eles.

Parece ser um sinal de que algo grande está se desenvolvendo nas bases, provocando uma espécie de mudança na cúpula do próprio sindicato – uma mudança que se expressa como no caso dessa contradição. Significa que agora, mais do que nunca, é o momento de lutar para acabar com todos os laços políticos entre nossas organizações e qualquer partido capitalista. A construção de verdadeiros sindicatos de classe o exige.

Transformar nossos sindicatos

O livro de Burns também é crucial pela sua defesa da democracia sindical. Aqui também temos que levar a ideias além do próprio livro. Class Struggle Unionism aponta repetidamente a hostilidade dos sindicatos atuais à uma verdadeira democracia sindical. A democracia sindical é algo de que podem prescindir tanto o modelo do “sindicalismo empresarial” como o do “liberalismo trabalhista”. Isso se deve ao perigo que o poder real da base representa para esses modelos. O objetivo de ambas as estratégias é sobretudo evitar as batalhas cotidianas das bases, que poderiam sair rapidamente de seu controle. Em seu lugar, buscam canalizar esse tipo de energia para as urnas e para as ações legais dos próprios sindicatos, tratando o conflito nos estreitos limites da legislação. Esses tipos de organizações estão sendo dirigidas, não por trabalhadores, mas por um exército de burocratas.

Burns aponta, com razão, que o resultado da construção de sindicatos combativos implica sua própria transformação – tornando-os muito mais democráticos – com a finalidade de dar poder às bases.

Uma das ferramentas fundamentais para melhorar a democracia sindical é a apresentação de chapas pró-reforma com a intenção de eleger melhores dirigentes:

"Em seu estado debilitado, o movimento sindical inclui milhões de trabalhadores, e os sindicatos locais e nacionais possuem recursos que poderiam ser utilizados para enfrentar os empresários. Obter o controle dos recursos do sindicato daria a base para implementar políticas de luta de classes, eleger novos dirigentes é um passo necessário para a luta avançar." [6]

No entanto, esse tipo de desafio aos dirigentes sindicais mais burocráticos deve ser acompanhado de fortes organismos de base militantes e de luta. Burns aponta com perspicácia os limites das intenções de reforma: “Ainda que a reforma sindical pareça radical, na realidade é bem conservadora, pois em sua essência diz que o problema são os dirigentes maus”. [7] O problema, entretanto, é mais profundo: consiste na centralização da ação dos sindicatos no apoio aos democratas e manter-se “dentro dos limites” das leis trabalhistas da classe dominante, em lugar de lutar para mudar o equilíbrio de poder entre empresários e trabalhadores. O centro de gravidade na construção de sindicatos combativos deve estar na organização da luta contra a patronal desde o nível da base.

Quando a luta das bases se converte no fundamento, podemos “pegar os burocratas sindicais no meio”. [8] Em outras palavras, é a organização no nível das batalhas das bases com os patrões que aproveita a energia e a raiva dos trabalhadores explorados diariamente, e que pode empurrar os dirigentes sindicais a ajudar a mobilizar em uma escala ampla e militante, e se preparar para a greve, para quebrar a lei trabalhista que tira nosso poder etc.

Neste apelo por sindicatos baseados na democracia sindical real e na luta de baixo para cima, o livro de Burns é uma intervenção extremamente importante nos dias de hoje. Temos visto nos últimos meses um aumento das tentativas de sindicalização na Amazon, Starbucks e outros lugares. Não se pode subestimar a necessidade de um sólido controle de nossos sindicatos pelos trabalhadores, para resistir as tendencias burocráticas da cúpula.

Ao mesmo tempo, entretanto, o livro de Burns não aborda suficientemente a questão da democracia sindical.

Em particular, o livro não aborda as principais mudanças na burocracia sindical nos últimos quarenta anos e como elas minam a democracia sindical. Em um momento do livro, Burns diz: “com uma taxa de sindicalização de 6% no setor privado, não temos uma direção poderosa para criticar”. [9] Mas isso deixa passar um ponto crucial: nos últimos anos, as burocracias sindicais mudaram fundamentalmente a forma que minam e destroem o poder dos organismos de base dos sindicatos.

Desde aproximadamente 1980, à medida que os sindicatos se debilitavam sob os golpes da ofensiva neoliberal, os efetivos das burocracias sindicais aumentavam. Inclusive seu crescimento acelerou de forma espetacular. Centralizaram e concentraram seu poder na cúpula, contra os trabalhadores de base, em um grau que provavelmente nunca foi visto na história. Em parte, os líderes sindicais fizeram isso utilizando técnicas de “gestão de recursos humanos” que as corporações utilizam.

Essa é uma grande parte do motivo pelo qual vimos não apenas um colapso na filiação sindical e das greves desde os 80 (apontado por Burns), mas também um colapso no número e tamanho das ações das bases. Em outras palavras, a burocracia ficou muito melhor para cooptar a “minoria militante”, se assegurando que as bases se mantivessem dentro dos estritos limites legais estabelecidos pelos democratas e republicanos, como os limites que proíbem algumas greves do setor público, que proíbem as greves de solidariedade e as greves durante a vigência de um contrato, que proíbem deter os fura-greves; etc.

Não apenas tiveram menos conflitos, mas a nova burocracia surgida na década de 1980 também se aperfeiçoou na arte da greve altamente “profissionalizada”. As greves, como aponta Kim Moody, se tornaram mais sóbrias e de bons modos depois das agitadas lutas da década de 1940. Porém, se voltaram ainda mais previsíveis e “seguras” graças a nova burocracia. Isso é muito visível nas ideias da organizadora profissional Jane MacAlevey.

MacAlevey é porta voz de uma nova camada de sindicalistas profissionais que cresceram desde 1980 aproximadamente. É uma camada que reconhece que os sindicatos realmente precisam fazer greve de vez em quando. Oferecem um modelo de como fazê-lo mantendo-se dentro dos limites da lei capitalista: nunca enquanto houver um acordo coletivo; nada de greves de solidariedade; nada de impedir que os pelegos rompam os piquetes etc. Seus influentes livros deixam claro que se trata de um modelo que faz todo o possível para não perturbar os democratas, inclusive quando luta contra eles (seus livros No Shortcuts e A Collective Bargain, por exemplo, são realmente claros: vê os sindicatos como meios para os apoiar e lhes assegurar uma maioria no Congresso). Ao se manter dentro da legislação trabalhista, essas greves “profissionalizadas” apenas perturbam minimamente um prefeito, governador ou presidente democrata.

Porém, essa nova burocracia não apenas é melhor para deter ou canalizar a energia da greve e manter os trabalhadores de base dentro dos limites da lei trabalhista, que tira nosso poder. Os sindicatos são também uma ferramenta chave que vincula o movimento operário ao Partido Democrata (como deixa claro McAlevey). São eles que impulsionam as campanhas eleitorais, pressionam os democratas, e assim sucessivamente. São o principal vínculo entre os sindicatos e o Partido Democrata; são a polícia política dentro dos sindicatos que tenta nos obrigar a seguir essa linha.

A luz dessas mudanças, não basta pedir mais democracia sindical. Precisamos de uma estratégia mais profunda: não se trata apenas de lutar pela democracia, mas que essa seja radical. Isso implica, por exemplo, não apenas limitar radicalmente o valor que se paga aos burocratas e a duração de seus mandatos. Também significa lutar para que o principal organismo de tomada de decisões do sindicato sejam as assembleias massivas de trabalhadores, pondo realmente o poder nas mãos da base. Isso, por sua vez, significa não só lutar contar a burocracia de nossos sindicatos. Construir sindicatos combativos provavelmente implicará lutar pelo desmantelamento da burocracia que nos limita, substituindo-a na medida do possível pelas decisões democráticas das massas dos próprios trabalhadores.

Nossa estratégia para construir sindicatos combativos, por tanto, tem que ter um plano sobre como fazer frente a essas mudanças na burocracia. Para isso, será importante adotar uma perspectiva internacional. É certo que temos que aprender com os sindicatos radicais dos anos 30, durante o apogeu do CIO (Congress of Industrial Organizatios, que, para Burns, é uma fonte constante de inspiração). Mas, recentemente, também, na Argentina temos visto poderosos experimentos na construção de sindicatos de luta de classes dos quais podemos aprender.

Desde o final da década de 1990, os trabalhadores da fábrica de cerâmica Zanon, na Argentina, começaram uma batalha contra sua burocracia sindical, onde militantes trotskistas como Raúl Godoy cumpriram um importante papel. Nessa batalha, os trabalhadores começaram a desmantelar a própria burocracia, instalando assembleias de trabalhadores como organismo máximo de decisão do sindicato em lugar dos funcionários sindicais, assegurando que todos os dirigentes eleitos pudessem ser revogados em qualquer momento, e estabelecendo limites de mandato para eles. Uma parte fundamental dos estatutos do sindicato que surgiu dessa batalha foi a independência política do sindicato de todos os partidos do capitalismo. Como aponta Godoy, a assembleia dos trabalhadores desempenhou um papel fundamental nas convulsões que ocorreram na Argentina nos anos seguintes. Em 2001, no meio de uma crise social e econômica, os trabalhadores de Zanon ocuparam a fábrica, colocando-a sob seu controle, e a batizaram como “Fábrica sem Patrões -FASINPAT”. Nessa experiencia vemos a possiblidade de um sindicalismo combativo que tanto precisamos nos Estados Unidos.

Que fazer?

Burns tem toda a razão: precisamos de um sindicalismo de luta de classes, e seu livro é um convite inspirador a construir sindicatos mais firmes e fortes, dispostos a lutar contra a classe dominante.

Entretanto, temos que levar as ideias de Burns além dele mesmo. Para isso, teremos que lutar pelo rompimento dos laços de nossos sindicatos com o Partido Democrata e com qualquer partido capitalista, e superar e desmantelar a burocracia sindical que serve aos democratas – tudo para uma verdadeira luta de classes internacionalista. É ainda mais crucial ter uma estratégia para construir esse polo de poder, já que o Partido Democrata tenta cooptar o nosso movimento sindical como o independente Sindicato de Trabalhadores da Amazon (ALU).

Porém, tampouco basta rechaçar os democratas. Necessitamos urgentemente de um grito de guerra, uma visão diferente de mundo; para construir sindicatos diferentes, não apenas uma mensagem negativa (contra os democratas e os burocratas), mas uma positiva para uma política diferente, libertadora e revolucionária.

Essa é uma das principais razões pelas quais necessitamos nosso próprio partido político para a classe trabalhadora e para os oprimidos. Seria um lugar para ajudar a coordenar nossas próprias habilidades organizativas, compartilhá-las e ajudar a construir grupos ou núcleo de organizadores sindicais. Seria um centro de gravidade, um polo de atração distante dos partidos dos ricos, como o Partido Democrata.

O livro de Burns é inspirador e poderoso. A tarefa agora é lutar por um movimento operário militante e radicalmente democrático, que rompa todos os laços com qualquer partido capitalista, que lute contra a classe dominante em nome da classe trabalhadora e dos oprimidos.


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FOOTNOTES

[1Burns, Joe. Class Struggle Unionism. Chicago, IL: Haymarket Books, 2022, pp. 9-10.

[2Uma corrente que diz que os sindicatos devem se dirigir como se fossem uma empresa, com uma burocracia imposta desde cima e por fora do controle dos membros da base.

[3Ibid. 79-80.

[4Ibid. 81.

[5Ibid. 89.

[6Ibid. 114.

[7Ibid. 115.

[8Ibid. 115.

[9Ibid. 102.
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