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Debate Teórico | Lógica dialética e os limites do pensamento científico no capitalismo

quinta-feira 7 de maio de 2015 | 01:00

No dia 2 de maio Gilson Dantas publicou interessante artigo nas "páginas" desse esquerda diário sobre a dialética e os limites do pensamento científico no capitalismo, num debate com o grande filósofo marxista húngaro Georg Lukács. Apesar da importância da discussão aberta por Gilson e de elementos muito interessantes que trazem seu artigo fiquei com dúvidas e talvez críticas em relação a concepção expressa sobre dialética, sobre a relação entre relativo e absoluto, contingente e necessário, como categorias lógico/gnosiológicas que refletem a realidade material; outro elemento ainda que talvez possa ser uma diferença de concepção sobre a dialética materialista é sobre sua importância: é a dialética materialista apenas uma ferramenta a ser utilizada para pensarmos a realidade política e os movimentos que temos que ter na luta de classes, com toda sua complexidade e contradições, ou ela é algo mais, base para a criação de uma nova visão sobre a realidade, um novo sentimento de mundo, uma nova Weltanschauung, atéia e materialista, da qual o proletariado é o portador e que busca acabar com todos os preconceitos, superstições e crendices causadas pelas diferentes religiões e formas de misticismo?

Quando apresento essas diferenças que talvez possam existir como dúvidas isso se deve ao fato de que num pequeno artigo é quase impossível tratar todas as nuances que existem em questão tão complexa; talvez o que vejo como um equívoco na concepção do camarada seja apenas expressão de um debate ainda inicial em que as posições sobre o tema ainda não se tornaram claras. Penso que ainda sim seria interessante levar esse debate a frente, de forma aberta e fraterna, para tentar retomarmos uma tradição própria do movimento operário, de ser propulsor dos grandes debates teóricos, tradição tão ausente na esquerda brasileira hoje.

As classes subalternas, o proletariado sendo seu grande exemplo na história moderna, não são educadas em geral para debater os rumos de sua história, as grandes questões que se colocam para a construção da realidade social; quando essas classes inrompem, como nesse momento volta a acontecer, e tomam a história em suas mãos querem debater todas as questões, se apropriar de todo o conhecimento. Se os revolucionários não tomam a tarefa de debater e aprofundar essas questões nesse momento que ainda é de preparação a classe operária que se levanta estará a mercê da influência da ideologia burguesa, que tem uma muito maior capacidade de difusão nos marcos do capitalismo.

Como esse é um pequeno artigo para o jornal me aterei a dois pontos que vejo como capitais no artigo de Gilson. Iniciemos o debate, portanto:

No parágrafo final de seu artigo Gilson faz a seguinte afirmação:

"Consideramos da maior importância que cada revolucionário desenvolva constantemente o exercício do pensamento dialético sobre sua área de atuação; como faz o pianista no treino dos dedos; é uma forma também de treinar o pensamento para se conseguir chegar a trabalhar a tática estrategicamente e para conceber cada pequena luta política ou sindical nos marcos da grande política, nos marcos do pensamento dialético de conjunto, onde múltiplas determinações, grandes e pequenas, visam elevar o proletariado a sujeito político da sociedade."

Muito importante a reivindicação que faz o camarada da importância do pensamento dialético como ferramenta para os revolucionários relacionarem seus movimentos táticos a uma perspectiva estratégica, ainda mais em momentos em que não vivemos uma situação revolucionária e onde a tática, os movimentos parciais, aparecem como desligados da luta direta pela tomada do poder (nossa estratégia).

Mas da maneira como está formulado o parágrafo a concepção da dialética materialista parece reducionista, puramente pragmática, utilitarista. Certamente a dialética é fundamental para pensarmos a polítca dentro de uma realidade contraditória e complexa. Em períodos revolucionários, de grandes confrontos e conflitos sociais, para os quais nos preparamos, essa verdade ganha ainda mais peso, ainda maior importância. As transformações deixam de ser lentas e graduais, passando a ser abruptas e profundas, os movimentos a serem feitos pelos revolucionários e pelo conjunto de nossa classe não mais são vagarosos, arrastados, e sim grandes rupturas.

Mas uma concepção materialista dialética e histórica (os três conceitos dentro dessa concepção só podem ser entendidos como uma unidade) é para o proletariado mais que uma ferramenta na luta direta contra os capitalistas pela tomada do poder, mas uma efetiva nova visão de mundo, uma nova cosmovisão, uma nova Weltanschauung.Em sua luta para criar uma nova sociedade, uma nova relação social, a classe operária deve propor um novo sentimento de mundo que rompa e avance em relação a cosmovisão herdada da sociedade capitalista em particular e da sociedade de classes em geral.

Nas sociedades divididas em classe a cosmovisão predominante sempre foi religiosa (não debaterei aqui as sociedades sem classes pois penso ser evidente que o misticismo existente nelas e o misticismo próprio a uma sociedade classista tem grandes diferenças). Sendo um pouco reducionista visto os limites de um pequeno artigo para jornal penso que devemos partir da posição de que a religião, a crença em uma força superior e independente dos seres humanos, dotada de inteligência e vontade e que com a qual podemos nos comunicar por meio de ritos e que interfere diretamente na natureza e na história, teve papel ideológico fundamental para as classes dominantes como forma de exercer sua hegemonia; pois se a história não é fruto da ação, da inteligência e da vontade humana, se as condições atuais são expressão de uma vontade e inteligência superior e onipotente, é evidente que é impossível tranformá-la.

Com toda sua ladainha sobre outros mundos, aléns, onde os últimos seriam os primeiros, onde os sofredores seriam recompensados, as diferentes religiões sempre foram altamente funcionais para as classes dominantes ao longo da história para conseguir um consentimento relativo das classes subalternas, pela resignação e renúncia a uma vida efetiva nesse mundo (o único) pois haveria uma recompensa em outro mundo imaginário.

Assim, a luta por uma concepção materialista da realidade é elemento fundamental da luta da classe operária para criar os elementos basilares de uma nova cultura humana (só possível numa sociedade sem classes), onde os seres humanos se vejam e se reconheçam como sujeitos de sua história, sem que nenhuma força mística interfira nessa construção.

As lutas teóricas que deram Engels no final do século XIX, Lenin no começo do século XX e Lukács na segunda metáde do século XX são expressão dessa busca pela construção de uma nova visão de mundo, materialista e atéia, capaz de combater a supertição e o misticismo predominate na visão de mundo burguesa (mesmo entre a maioria de seus grandes pensadores) e mostrar que antes de negar uma concepção materialista da natureza as novas descobertas científicas feitas nesses diferentes períodos a confirmavam.

Com uma concepção ontológica superficial, ou que negava a própria possibilidade de uma ontologia, de um discurso sobre o ser, muitos cientistas negaram a existência da matéria a partir da ruptura dos antigos paradigmas científicos sobre ela.

Lenin, em seu ’Materialismo e Empiriocritiscismo’ e posteriormente em seus Cadernos Filosóficos’ irá mostrar que o que se rompe com as novas descobertas são os antigos modelos científicos para o que é a matéria, mas não sua concepção filosófica, que se reafirma, a de que matéria é a realidade que existe de forma anterior, exterior e independente da consciência.

Frente a todos os avanços científicos do último século qualquer concepção idealista, que vê a realidade natural, material, como dependente da consciência humana cai em total ridículo.

Mas aqui entramos no outro ponto em que vejo uma divergência possível com Gilson; em um momento de seu artigo ele nos diz:

"O conhecimento tem, sim, seu momento relativo; mas com isso, não se perde nem desaparece seu momento absoluto, isto é, a validade de determinações necessárias, de níveis alcançados do conhecimento. Se não fosse assim – ou seja, se o conhecimento fosse arbitrário, ultrarrelativo - não faríamos um avião voar e nem jamais se consolidaria a técnica de uma operação cirúrgica de precisão".

Aparecem em outros momentos do texto uma crítica a um pretenso "ultrarelativismo" existente na filosofia da ciência burguesa, uma sobre-valorização que me parece equivocada das categorias lógico-gnosiológicas de absoluto e necessário, frente as categorias de contingente e relativo. Na relação contraditória entre relativo e absoluto, entre contingente e necessário, é preciso entender qual o momento predominante, qual a dupla de categorias que tem maior peso. E dentro de uma concepção dialética não podemos deixar de entender que o momento predominante é o relativo, o contingente, sendo o absoluto e o necessário formas fenomênicas, parciais, relativas (apesar da aparente contradição) de expressão do primeiro par de categorias.

A lógica dialética é a lógica do relativo, do contingente, do mutável, do devir. A dialética moderna é herdeira legítima do aforismo de Heráclito de Efeso (filósofo pré-socrático) de que não podemos nos banhar duas vezes no mesmo rio, pois tanto o rio quanto nós mesmo estamos sujeitos a constantes mudanças.

Uma concepção materialista de dialética radicaliza esse elemento de devir, de contingente, de relativo, existente nessa forma nova de pensar o mundo. No idealismo absoluto ou objetivo de Hegel (o fundador da lógica dialética moderna) em um determinado momento a dialética, compreendida como dialética do espírito que se aliena na busca por auto-conhecimento, se trai, o movimento deixa de existir, tem um ápice, um fim, um telos, que é o momento em que o espírito reconhece a realidade como fruto e expressão de sua auto-alienação.

Na concepção materialista de dialética não existem nem um primeiro motor imóvel nem uma finalidade, um telos, para o movimento; a realidade é entendida como um infinito devir, uma constante e incansável transformação. Uma concepção dialética de matéria rompe com sua visão mecânica, de matéria como algo corpóreo, estável, fixo, para entender a matéria como movimento, energia, fluxo e devir.

Assim, nossa diferença em relação a filosofia da ciência burguesa não é quantitativa, de quão relativo entendemos ser o conhecimento, somos nós aqueles que afirmamos de maneira mais profunda sua relatividade.

Não só porque entendemos a natureza como constante transformação, mutação e devir, vendo assim que qualquer afirmação sobre ela é limitada e relativa, mas porque entendemos que nossa própria relação com o ambiente natural é relativa e histórica, em constante transformação, e que portanto nosso conhecimento sobre a materia, reflexo e projeção da relação concreta e histórica que temos com ela, é relativo.

A direfença que temos na questão do relativo como categoria frente ao pensamento burguês é que seus diferentes intelectuais que partem de uma perspectiva relativista(tanto na filosofia das ciências quanto nas ciências sociais) entendem o relativo como em relação a um indivíduo destacado da sociedade em que ele está inserido, em relação a pura consciência, a pura subjetividade, enquanto dentro de uma perspectiva marxista o relativo é entendido como relação concreta, objetiva, material entre um sujeito que só pode ser social e o ambiente que o circunda.

Portanto nossa diferença central com a filosofia da ciência burguesa que primou durante o século XX não é em questão ao entendimento do conhecimento como algo relativo não importanto qual o grau de intensidade de relatividade que vemos aqui (se é apenas relativo, hiper ou ultra-relativo) mas com o fato de que essa passa a negar a possibilidade de o conhecimento, a razão, a ciência, falarem efetivamente, concretamente, sobre o mundo.

Ou seja, o pensamento burguês moderno predominate passa a negar a possibilidade de que a razão, a ciência, tenham uma relação objetiva com o realidade. Qualquer teoria científica nesse sentido é mera construção mental, subjetiva, não estabelecendo nenhuma relação objetiva e concreta com a realidade circundante.

Esse movimento feito pela filosofia burguesa no século XX se dá como uma volta aos filósofos que fundaram o pensamento capitalista moderno. No caso dos mais radicais entre aqueles que negam a possibilidade de o pensamento falar sobre o mundo, que chegam a voltar a teorias em que a realidade é um reflexo do pensamento, como no caso do empiriocriticismo de Mach, a volta se dá em relação ao filosofo empirista inglês George Berkeley, no caso daqueles que são menos radicais e não chegam a negar a existência de uma realidade em si, independente do pensamento, o retorno é ao filosofo alemão Emanuel Kant.

A superioridade de uma concepção materialista/dialética/histórica da natureza e da sociedade não está portanto em que vemos no absoluto uma categoria superior ou mesmo com a mesma importância que o relativo, mas sim que reconhecemos o relativo como categoria concreta, forma de ser, determinação da existência e por isso podemos construir uma forma de mediação concreta entre o pensamento, a razão, a ciência e a realidade material: a práxis humana, a relação objetiva entre o ser humano e seu ambiente.

A verdade e realidade de uma afirmação científica sobre a matéria (apesar de essa afirmação ser sempre relativa) é expressão de que ela reflete uma relação objetiva, concreta, entre a humanidade como sujeito social e o ambiente. O aprofundamento extensivo e intensivo da relação entre o ser humano e seu ambiente transforma paradigmas, muda de forma radical a maneira como concebíamos a natureza. Portanto uma característica fundamental do pensamento científico é a sua constante crítica e o entendimento de sua historicidade.

O reconhecimento da historicidade profunda e portanto relatividade da ciência nem de longe apaga sua objetividade, pois ela é objetiva na medida que permite a humanidade dentro de uma configuração concreta de sua relação com o ambiente se apropriar dele e transformá-lo.




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