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TEORIA | Debate com Ernest Mandel: Ciclos de Kondratieff ou regimes de acumulação

sexta-feira 11 de março de 2016 | 00:00

Com todas as diferenças políticas que possam existir com o dirigente trotskysta belga Ernest Mandel (e existem e são muitas) é impossível não reconhecer sua grande contribuição para o desenvolvimento teórico do marxismo, principalmente no campo da economia. Obras suas como ’Tratado de Economia Marxista’, ’O Capitalismo Tardio’, ’As Ondas Longas do Desenvolvimento Capitalista’, são parte do arcabouço teórico para a compreensão da economia capitalista do pós-guerra que não podem ser negligenciados pelos militantes que buscam pensar a atuação revolucionária em nosso tempo.

Nessas obras Mandel irá buscar se apropriar das novas descobertas etnográficas, históricas, antropológicas, etc, para mostrar a correção da teoria econômica de Marx, como no ’Tratado de Economia Marxista’, ou buscar compreender os elementos que levaram ao boom do pós-guerra, talvez o momento de maior crescimento ininterrupto da economia capitalista em sua história, conhecido como os "30 gloriosos", e o posterior debacle desse momento de crescimento vertiginoso.

Reconhecer, no entanto, a importância do belga para o desenvolvimento criativo e não dogmático do pensamento econômico marxista não deve significar uma apropriação acrítica de sua contribuição.

Um dos elementos mais contestáveis, e contraditoriamente um dos mais originais e capazes de suscitar debates importantes, do pensamento econômico de Mandel será seu restabelecimento e apropriação critica das teorias do economistas russo Nikolai Kondratieff.

Kondratieff foi um economista russo nascido em 1892 que sob o impacto da revolução russa se aproximou do poder soviético, ocupando cargos importantes, fazendo parte inclusive da organização do primeiro plano quinquenal. Morreu na prisão stalinista em 1938.

A grosso modo sua teoria das ondas longas do desenvolvimento capitalista afirma que além dos ciclos em média decenais de reprodução do capital analisados por Marx n’O Capital’, que teriam como elemento determinante o tempo de rotação médio do capital fixo (maquinário, instalações, etc) existiriam ciclos mais longos de desenvolvimento, com por volta em média de 50 anos, dentro dos quais esses ciclos menores se desenvolveriam. Dentro desses ciclos maiores existiriam principalmente duas fases uma ascendente e uma descendente. Esses ciclos seriam determinados pelas grandes transformações técnicas na história do capitalismo (descoberta da energia elétrica ou a automação, por exemplo), por seu descobrimento e utilização cada vez mais expandida, na fase ascendente do ciclo, e pelos limites de sua utilização, na fase descendente. Por conta de seu autor, na história do pensamento econômico se convencionou chamar esses ciclos longos de desenvolvimento capitalista ciclos de Kondratieff.

Já na época em que publicou sua teoria dos ciclos Kondratieff foi criticado pelos economistas soviéticos do período. Trotsky será um dos críticos das teorias do economista, buscando mostrar como sua interpretação das ondas longas de desenvolvimento capitalista faziam uma analogia por demais mecânica com a teoria dos ciclos econômicos determinados pelo tempo de rotação do capital fixo de Marx.

Compreendendo que certamente existem ciclos longos do desenvolvimento capitalista Trotsky mostrará que tais ciclos não são determinados diretamente pelos elementos técnicos, como pensa Kondratieff, apesar de esses terem óbvia influência, mas por uma relação muito mais complexa entre economia, luta de classes e relações interestatais. Assim, para Trotsky se num primeiro momento de seu desenvolvimento o capitalismo se comportava como um sistema saudável em que os momentos de crescimento econômico eram duradouros e os momentos de crise menores, em seu momento de decadência o capitalismo passa a se comportar como um organismo doente em que os momentos de crise são mais duradouros e profundos, enquanto os momentos de crescimento são mais rápidos e menos dinâmicos.

A apropriação por Mandel da teoria de Kondratieff

A apropriação por Mandel da teoria dos ciclos de Kondratieff se dá principalmente a partir de sua obra ’O Capitalismo Tardio’ publicada em 1972. Nessa obra uma das buscas fundamentais do economista belga será explicar o ciclo de crescimento do capitalismo no pós-guerra e seus limites e crise no final da década de 60 e começo de 70.

Em vários sentidos, penso, Mandel tenta combater a visão dogmática que tinha se formado na IV internacional a partir da introdução de Trotsky ao programa de transição no qual o revolucionário russo afirma que as forças produtivas sob o capitalismo pararam de se desenvolver e se tornaram forças diretamente destrutivas.

Trotsky escreveu esse parágrafo do programa de transição as portas da segunda guerra mundial, num momento em que concretamente as forças produtivas entravam em contradição profunda com o modo de produção capitalista. O entendimento dogmático desse trecho do programa era um equívoco que certamente devia ser superado. A destruição das forças produtivas durante a guerra, o fim da hegemonia britânica e ascenso estadunidense, a constituição de novos organismo financeiros e comerciais internacionais (FMI, acordos de Breton Woods) eram os elementos que davam base para esse inegável novo momento de expansão capitalista.

Mandel, no entanto, ao se apropriar da teoria dos ciclos de Kondratieff, irá buscar essa explicação primeiramente nas transformações tecnológicas que aconteceram durante e logo após a guerra (a automação, os primeiros elementos da informática, energia nuclear) e que se difundiram durante todo período de expansão econômica dos "anos dourados".

Ondas longas do desenvolvimento capitalista: elementos endógenos e exógenos

Em obra posterior, ’As Ondas Longas do Desenvolvimento Capitalista’, publicada pela primeira vez em 1980, Mandel irá se afastar dos elementos mais mecânicos da teoria dos ciclos de Kondratieff para desenvolver uma teoria dos ciclos longos em que os elementos propriamente econômicos estabelecem uma relação mais dinâmica e dialética com a luta de classes e as relações interestatais.

Grande parte dessa obra se desenvolve a partir do debate sobre os elementos endógenos e exógenos para a acumulação capitalista e para os ciclos longos de seu desenvolvimento. Os elementos endógenos para o desenvolvimento capitalista seriam os propriamente econômicos, a composição orgânica do capital, seu tempo de rotação, a demanda efetiva para a realização da mais-valia, a queda tendencial da taxa de lucro, etc. Os elementos exógenos a luta de classes, a capacidade de a patronal impor perdas salariais aos trabalhadores que permitam a recomposição da taxa de lucro, por exemplo, as relações interestatais, como guerras, etc.

No entanto, apesar de não poder-se certamente colocar um sinal de igual entre economia, luta de classes e relações estatais uma separação estanque entre esses elementos também tende a produzir uma concepção errada sobre a dialética de sua interação.

Pensar a reprodução ampliada das relações capitalistas é entender que essa não é principalmente a produção de coisas, de valores de uso, de aço ou ferro, por exemplo (apesar de os valores de uso a serem produzidos terem um efetivo peso econômico e serem a base do modo de produção. Não por acaso as relações de produção capitalista são as que por excelência até hoje se basearam na produção industrial) mas sim a reprodução ampliada de uma relação social específica, de uma forma determinada de exploração do trabalho.

Por exemplo, na mais simples e imediata relação econômica propriamente capitalista, a aquisição de força de trabalho pelo empregador, já existe luta de classes, com o comprador, o capitalista, buscando exercer seu direito e comprar o mais barato e utilizar sua mercadoria o maior tempo e com maior intensidade possível, enquanto o vendedor, o trabalhador, busca poupar sua mercadoria para futuras revendas, portanto a utilizando o menor tempo e com o maior preço possível.

Assim, uma separação marcada entre elementos endógenos e exógenos na economia capitalista seria um equívoco. A reforma da previdência que busca impor a burguesia brasileira como uma das formas de recompor sua taxa de lucro seria dessa forma um elemento endógeno, propriamente econômico, ou exógeno? A conquista pelo imperialismo estadunidense de novos mercados fornecedores de matérias primas baratas, como o petróleo no oriente médio, é elemento endógeno ou exógeno à economia? Vemos assim que a relação entre esses 3 elementos que constituem conjuntamente a totalidade do modo de produção capitalista (economia, luta de classes e relações interestatais) é muita mais interativa e dinâmica, com muito mais pontos de contato e complexidade do que a que pode ser apreendida por conceitos como momentos endógenos e exógenos a reprodução do capital.

Ciclos de Kondratieff ou regimes de acumulação?

É nesse sentido que uma apropriação crítica da teoria de Mandel das ondas longas é necessária. Uma apropriação que permita apreender aquilo que é válido e legítimo em sua teoria e criticar e superar aquilo que é mecânico e morto.

As ondas longas de desenvolvimento capitalista assim não devem ser entendidas como expressão mecânica da descoberta de novas tecnologias ou mesmo de novas matrizes energéticas que revolucionariam o modo de produção capitalista, seja em seu momento ascendente, seja em seu momento de crise. A relação entre as transformações técnicas ou a descoberta de novas matrizes energéticas tem uma relação muito mais complexa com esses grandes ciclos de expansão ou retração da economia capitalista, ciclos longos esses que encerram vários ciclos menores.

O que determina esses ciclos longos de acumulação capitalista, dessa forma, não são apenas os elementos técnicos ou energéticos, esses sendo apenas um dos fatores dentro de uma relação mais complexa. Esses ciclos longos de desenvolvimento capitalista se configuram como regimes de acumulação do capital, formas através das quais a burguesia estrutura e organiza o processo de reprodução ampliada do capital.

Ou seja, um determinado regime de acumulação capitalista é a síntese entre as formas através das quais a burguesia organiza a exploração do trabalho dentro dos complexos produtivos (fordismo, toyotismo, por exemplo), as instituições econômicas e financeiras construídas pelos capitalistas para regular e organizar as relações entre os agentes econômicos (Banco Mundial, FMI, OMC, etc) uma determinada capacidade de os capitalistas imporem formas de exploração do trabalho capazes de garantir uma taxa de lucro adequada (a terceirização, por exemplo), uma determinada correlação de forças na luta de classes através da qual a burguesia consegue impor sua hegemonia social garantindo o consentimento e estabilidade política necessária para a manutenção da exploração sobre determinadas regras e um “bom ambiente de negócios” (a extensão mundial da democracia capitalista desde a queda do muro de Berlin) ou a capacidade de a burguesia de organizar um regime que consiga suprimir todas as formas de democracia e resistência operária que tinham se constituído sob o regime anterior (o fascismo ou as ditaduras militares na América Latina, por exemplo). A expansão do espaço econômico capitalista para novas áreas até então não exploradas pelo imperialismo (o surgimento do imperialismo e sua expansão para África e Ásia no final do século XIX e começo do XX) ou a retomada de áreas que tinham sido subtraídas do espaço econômico capitalista por revoluções (a restauração capitalista nos antigos estados operários, por exemplo) que se tornam fornecedores tanto de matéria-prima quanto de mão de obra barata e/ou qualificada. Só na relação com todos esses elementos é que podemos adicionar as transformações técnicas ou de matrizes tecnológicas como elementos também determinantes de uma forma particular de regime de acumulação.

Assim, um regime de acumulação é a forma através da qual a burguesia estrutura no sentido mais amplo a reprodução ampliada do capital, a exploração da classe trabalhadora, a produção e reprodução ampliada dessa forma particular de produção e exploração do trabalho que é o capitalismo.

As crises estruturais como crises de determinados regimes de acumulação

Ao reconhecermos a existência de ondas longas de acumulação capitalista temos que estabelecer sua relação com as crises cíclicas que enfrenta esse sistema. Ao estabelecer essa relação temos que reconhecer, ou pelo menos é o que se defende nos marcos desse artigo, que existem dois "tipos" principais em que podemos agrupar as diversas crises capitalistas particulares, as crises conjunturais, cíclicas, ligadas ao tempo de rotação médio do capital fixo, tal qual analisadas por Marx, e as crises estruturais, mais profundas e marcantes na história do capitalismo. As crises estruturais marcam uma onda longa depressiva no desenvolvimento capitalista, que não exclui momentos conjunturais de retomada econômica, mas onde essa retomada é de pouco folêgo e o sinal geral do período é marcado por um débil crescimento, por estagnação ou diretamente um período recessivo.

Um exemplo de crise estrutural, de uma onda longa depressiva, é a própria crise econômica que vivemos, que com momentos de retomada conjuntural do crescimento é marcada pela estagnação, baixo crescimento e recessão. A grande crise capitalista do final do século XIX (do começo da década de 70 até a década de 90 daquele século) e a crise de 29 e seus reflexos durante toda a década de 30 são outros dois grande exemplos históricos de ondas longas depressivas ou estagnantes na história do capitalismo.

Assim como não explicamos a onda longa expansiva partindo da teoria dos ciclos de Kondratieff também devemos afastar essa explicação para os ciclos longos de crise capitalista. Mas o que explica esse momento mais profundo e estrutural de crise capitalista?

Longe de ser a fase depressiva do ciclo de Kondratieff as ondas longas depressivas ou estagnantes estão ligadas de maneira direta ao regime de acumulação anterior que era base da onda longa expansiva.

Esses momentos longos de depressão ou estagnação da economia capitalista são expressão direta da crise do regime de acumulação anterior, da impossibilidade de os capitalistas conseguirem continuar o processo de acumulação ampliada do capital sobre as mesmas bases e com a mesma configuração. Ou seja, a onda longa de estagnação ou recessão é expressão da crise das antiga formas através das quais o capital garantia sua reprodução ampliada, a crise das antigas formas de organização do trabalho, das relações interestatais, a ruptura do antigo equilíbrio entre as classes, a crise de suas instituições financeiras e comerciais internacionais, a queda da taxa de lucro pela absorção dos desenvolvimentos tecnológicos por todos os ramos industriais, etc.

A única forma de superação das crises estruturais, nesse sentido, é que os capitalistas instituam um novo regime de acumulação, uma nova configuração das formas de reprodução ampliada do capital, que permita a recomposição da taxa de lucro, uma exploração mais profunda do proletariado, a capacidade de se encontrarem fontes mais baratas e abundantes de matérias-primas.

Foi assim que o pressuposto para a superação da grande crise capitalista do final do século XIX foi o desenvolvimento e aprofundamento da política imperialista, que através da expansão do espaço econômico capitalista pode colocar a disposição do capital uma imensa massa de matéria prima e mão de obra barata pronta a ser explorada. A resolução da crise de 29 passou pela segunda guerra mundial e o estabelecimento de um novo regime de acumulação após essa que baseado nos acordos de Yalta e Postdam e nos acordos de Breton-Woods, com hegemonia estadunidense, permitiu um crescimento vertiginoso da economia capitalista.

A atualidade do debate: a crise atual como crise do regime de acumulação que se construiu após a queda dos antigos estados operários deformados, possibilidades de sua superação do ponto de vista capitalista e possibilidades revolucionárias

Ao final da onda longa expansiva do pós II guerra mundial se constituiu uma nova onda longa depressiva que atravessou toda a década de 70 e o começo da década de 80. A superação dessa onda longa depressiva só foi possível com o estabelecimento de um novo regime de acumulação, baseado tanto no estabelecimento de novas relações entre capital e trabalho (desfavoráveis para nossa classe) quanto na abertura de um novo espaço econômico para o capitalismo, com a queda do muto de Berlim e a consequente queda dos estados operários. Com isso se abriu para a dominação capitalista todo um reservatório de matérias primas e mão de obra barata e qualificada que permitiu um novo fôlego à sua expansão. Somam-se a esses fatores o desenvolvimento na automação e nas comunicações, que permitiram um desenvolvimento espetacular do capital financeiro e uma sua muito maior mobilidade.

Esse regime de acumulação enfrenta uma primeira grande crise no final da década de 90 (crise brasileira, russa, tigres asiáticos, crise da Nasdaq). A forma da superação dessa primeira grande crise desse regime de acumulação pelo capital financeiro imperialista foi o aprofundamento de algumas de suas características mais marcantes, principalmente uma pronunciadamente maior financeirização da economia e uma maior exploração intensiva e extensiva da mão de obra barata fornecida pela China. O marco dessa nova configuração da acumulação capitalista, sem ser uma quebra radical com o regime de acumulação anterior mas sim seu aprofundamento, será a entrada da China na OMC em 2001.

A presente crise é, portanto, a crise do regime de acumulação que se constituiu nesse último período. A duração e profundidade da crise se explicam, assim, pela incapacidade que tiveram os capitalista até aqui de construir um novo regime de acumulação, uma nova configuração das relações capitalistas internacionais, que possa substituir o anterior.

Mas quais as possibilidades da constituição de um novo regime de acumulação capitalista? Para pensar-se isso tem que se levar em consideração que esse novo regime de acumulação tem que responder a um problema central para a continuação da reprodução ampliada do capital, a queda tendencial da taxa de lucro. Assim, para responder essa tendência a queda da taxa de lucro o capital financeiro imperialista tem que garantir novos mercados fornecedores de matérias primas e mão de obra barata ou garantir uma exploração mais intensiva dos antigos.

Com a presente configuração do capitalismo, com essa relação de produção se estendendo a todo o globo terrestre a única forma de o imperialismo aprofundar a exploração da matéria prima e mão de obra de forma mais intensiva é eliminando as mediações e independência relativa dos estados nacionais por ele explorados. São essas as bases que explicam as cada vez maiores rusgas e conflitos entre as potências imperialistas e China e Rússia no último período.

Avançar na semi-colonização desses dois grandes estados, detentores tanto de matérias primas quanto de mão de obra barata e qualificada é a principal via para o estabelecimento de um novo regime de acumulação que permita uma nova onda longa de desenvolvimento capitalista.

No entanto, o estabelecimento de uma nova configuração nesse sentido, favorável aos interesses imperialistas, é impensável sem maiores conflitos. Essas maiores contradições entre os capitalistas e blocos que possam se formar ou se desfazer entre eles, maiores fissuras entre os dominantes, dessa forma, podem ser fatores que aumentem a instabilidade e criem uma cada vez maior crise orgânica na dominação imperialista que permita cada vez mais que a classe operária se coloque em cena como sujeito político/social independente.


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