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Crônica de Maria

Letícia Parks

Crônica de Maria

Letícia Parks

Na última quinta feira (30) ocorreu uma mesa Virtual chamada pela Editora Boitempo, no IV Salão do Livro Político, da qual Letícia Parks participou abrindo com uma crônica que trazemos para essa edição do Carcará. Ao final, veja vídeo de toda a mesa.

"(...) Por todos os lados vemos ataques misóginos e machistas atingindo as mulheres de todas as classes sociais, mas quero aqui contar OUTRA HISTÓRIA, uma história sobre como a misoginia, o patriarcado e a exploração de classe atacam as mulheres trabalhadoras.

A história de hoje é da Maria, e eu escrevi ela especialmente para esse encontro de hoje. Nas faxinas como diarista, a mãe de Maria trabalhava no dia o que ia comer no outro. Com 18 anos Maria assumiu as faxinas da mãe. Não foi aposentadoria. Esgotamento e morte precoce. Pra Maria, várias mortes que viu na família podiam ser explicadas assim: um corpo não aguentava mais. 40 anos era a idade da mãe. A avó também. Parece que Maria já estava indo mais longe. 5 anos a mais que a mãe, 3 filhos a menos para alimentar. Começou a sonhar que poderia se aposentar.

O esforço para manter o pagamento das parcelas do INSS é enorme, porque o sonho começou a virar fixação. E assim mais uma parcela do INSS é paga como autônoma, mas vai entender o que significa isso. O filho mais velho, o Tom, também é “autônomo”... Um dia ela conversava com uma colega no ônibus, no caminho comprido da periferia pro centro, e a colega explicava que autônomo é quem tem a própria empresa. Maria riu alto. Então a empresa do Tom é a bicicleta, a bag, o celular que já caiu e tomou chuva? A empresa dela é o par de pernas e mãos que operam a faxina?

Deram nome chique, mas a verdade é que a gente é trabalhador sem direitos, pensou a Maria. No celular quase quebrado, o mesmo no qual ela recebe chamado de faxinas pelo aplicativo, ela sempre dá uma olhadinha pra ver quanto tem acumulado de tempo de contribuição. Pouco mais de 6 anos, calcula o governo. Maria risca, apaga, risca de novo, faz contas no caderninho, mas é isso mesmo. Com 30 anos de trabalho, ela conseguiu pagar só 6 pra aposentadoria. Ela acompanhou mais do que atenta as notícias na televisão e no rádio sobre a nova previdência. Parecia até que era bom quando ela ouvia a forma como os políticos tavam defendendo, mas quando leu com atenção, percebeu que a aposentadoria entrou numa guerra contra ela: aumentaram 5 anos do que precisava pagar e agora precisa conseguir completar 60 anos.

Quantas pessoas a Maria conhece com 60 anos?

Demorou pra vir um nome na cabeça. Aquele vizinho de cabeça bem branquinha deve ter uns 65, mas ele é homem, nessa regra nova aposentadoria só agora… A Cleide, do mercadinho, tem 55, já teve até derrame. A Maria não gosta de pensar na morte… Vem histórias tristes na cabeça. Depois da pandemia mais ainda. Ela passou firme e forte pela doença, mas no bairro morreu gente demais. Também tem aquela meninada que a polícia matou enquanto pulavam carnaval. Que tristeza. Será que algum de nós vive tudo isso? Se for pela vontade do presidente acho que não, pensa Maria. Os pensamentos são mais terríveis ainda quando ela viaja no pensamento até Brasília. Que podridão… Fez piada da pandemia, fez piada da fome, fez piada de tudo esse presidente… E enquanto a gente caminha em passos doloridos pra poder ter direito ao mínimo, o dele tá tudo garantido, e ainda com apoio de militares… parece que se a gente disser que não aceita essas coisas todas, eles tão prontos pra fazer a gente aceitar à força.

Maria tem esse coração solidário de quem sabe que se não der pra ela, talvez fique melhor pros filhos, mas aí também tá cheio de notícia ruim. O Tom já tá na bike desde os 13 anos… Usou o RG do primo pra fazer o cadastro e tá lá… Parece que tá vindo uma lei aí pra regulamentar que pode esse tipo de trabalho sem registro em carteira, sem vínculo com a empresa, sem direito a nada… Tem político que é muito picareta mesmo… Dizem que tão fazendo pra ajudar, mas se é pra ajudar porque não perguntam pra gente como a gente quer? Ela queria mesmo que o Tom pudesse desde o primeiro emprego ter todas as garantias que ela ouviu dizer que essa classe dela, a classe trabalhadora, lutou pra ter. Às vezes assim dentro do ônibus a Maria pensa nessas lutas que a professora de história do EJA contava pra ela... e pensa em preto e branco, em imagem distorcida como se tivesse aparecendo dentro de uma TV de tubo. Imagina que é gente falando português, mas também outras línguas. Imagina essas pessoas juntas, braços dados, cheias de coragem, lutando pelas coisas que a gente tem hoje."


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