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"Jovens entregadores voltam com suas bikes, cansados. Pedalaram o dia todo e quem ganhou com isso foram as empresas de aplicativos. Parece um refrão. Corpos cansados, empresas lucrando. Cada vez mais. Até quando? Tudo está tão caro... Alguém se aproxima do guichê (...)." Crônica escrita por um trabalhador ferroviário.

segunda-feira 8 de novembro de 2021 | Edição do dia

Dois amigos se aproximam. Dinheiro na mão de um deles. Olá, boa noite, duas passagens, por favor. Educado. Faço seu troco. Se olham. Amigos, não. O olhar denuncia o que eles tentam esconder. Cumplicidade, desejo, amor. Medo. A essa hora, eles disfarçam para sobreviver. A fila segue. Próximo, por favor, quantos bilhetes? Um. É sempre um. É aquela trabalhadora. Negra. A mesma de ontem. Sua patroa só dá o dinheiro da condução do dia. Se não trabalhar não recebe. Não come. Não vive. Por isso a vejo, todos os dias. Com os mesmos cinco reais na mão. Nunca tem moedas. Ela já me disse. Guarda o troco num cofre. Cofre é forma de dizer. É uma lata de óleo. Nem sabia que ainda existia lata de óleo. No final da semana essas pequenas sobras viram um pequeno agrado para seus netos. Pequeno, mas de coração. Hoje ela foi embora sem dizer obrigada. Estranho, mas não me incomodo, ela deve estar cansada. Embrutecida pelo cansaço. Cansaço do dia? Cansaço da vida, assim como tantos que passam. A fila segue. Próximo, por favor, quantos bilhetes? Um jovem, apressado. Precisa chegar logo no trabalho. De manhã é sempre assim. Ninguém pode se atrasar para trabalhar. E para viver, quando vamos ter tempo? Outro, mais outro, e ainda mais um. Horário de pico é correria, ninguém tem tempo de falar bom dia, é assim mesmo. Agora um que está indo procurar emprego. Não tem o dinheiro da passagem. Que crueldade é essa que faz alguém precisar sair tão cedo, carregando somente uma pasta com currículos impressos e a incerteza de como vai voltar? Ele precisa conseguir um bilhete, porque as câmeras da empresa protegem o lucro. Essa sociedade existe somente para o lucro. Alguém se solidariza, compra um bilhete a mais para ele. Boa sorte, espero que a volta pra casa hoje seja com boas notícias. E a fila segue. Próximo, por favor, quantos bilhetes? Final de semana. Jovens aproveitando seu tempo de descanso. Vão ao parque. Uma das últimas coisas que podem fazer de graça. Até quando? Tudo está tão caro... Uma família inteira vem. Toda família é inteira. Em toda família falta alguém. Essa é composta de mãe e filhas. As maiores cuidam das menores, enquanto a mãe traz um saco cheio de moedas. Elas pedem no farol, aqui pertinho. Sem elas, a estação ficaria sem troco para dar. A empresa não fornece o suficiente. Mas este relato não é sobre a minha condição de trabalho. É sobre a vida delas. De cada uma das pessoas que passa por aqui. Que me transforma em testemunha de alguns de seus preciosos instantes. Segundos de suas vidas, que eu absorvo entre um bilhete e outro. Quantos bilhetes? O próximo, por favor. Segue a fila. As moedas estão acabando, preciso pedir para cada um que vem comprar. Esse veio com o uniforme completo do palmeiras. Para ele nem adianta pedir, eu já sei, mas é a força do hábito. Ele também nunca traz. Aliás, os palmeirenses nunca têm moedas. Será que para ter moedas precisa ter mundial? Ele se zanga com a pergunta, mesmo que só tenha ficado na minha mente. Ou talvez se zangue por qualquer outro motivo. Sua vida como carregador de carrinhos, carregando as cargas dos caminhões (de verduras, vendidas no varejo por vultosos valores) é corrida e carregada de calos. Nas mãos e na alma. Embrutecido, mais um. Não adianta ficar irritado com ele. Ele não é obrigado a trazer as moedas, quem deveria fornecer é a empresa. Aqui está seu bilhete e seu troco, boa tarde. Será que hoje mais tarde vem alguém trocar moedas de novo? E de novo estou falando da minha situação. Voltemos a eles. Os protagonistas dessa história. Aqueles que são, mesmo sem saber, e que quando souberem serão com ainda mais ímpeto, os protagonistas da História, essa com o agá maiúsculo. Noite outra vez. Quantas filas, por favor, segue o próximo bilhete? Jovens entregadores voltam com suas bikes, cansados. Pedalaram o dia todo e quem ganhou com isso foram as empresas de aplicativos. Parece um refrão. Corpos cansados, empresas lucrando. Cada vez mais. Até quando? Tudo está tão caro... Alguém se aproxima do guichê. Dessa vez não é para comprar, é um problema no bilhete novo. Desde que modernizaram o bilhete, os problemas aumentaram. Que modernização foi essa? Eu que trabalho aqui não fui consultado sobre a mudança. Quem compra e usa os bilhetes também não. Ficou pior pra mim, pior pra eles também. Quem tomou a decisão, deu a canetada, e saiu ganhando nem circula por esses lados. Gente de poder. Cargos indicados, amizades com as pessoas certas. Com as pessoas erradas. Pessoas cujas dívidas, diferente das nossas, não são com o banco ou o cartão de crédito. São dívidas com toda a humanidade, por tudo que eles sugam sem dar nada em troca. O dia da cobrança vai chegar. Exatamente no dia em que toda essa massa embrutecida e cansada descobrir que é ela quem move o mundo, e que a única coisa que tem a perder são suas amarras. E é preciso se movimentar para senti-las. Só nos libertando delas poderemos ver toda a beleza da vida em sua plenitude. Enquanto isso a gente espera? Não, a gente trabalha. Aqui na bilheteria, mas também em todos os lugares. Construímos um caminho, como quem tece uma rede. Cada nó é um ponto de apoio para o próximo. Outras pessoas estão tecendo outras redes também. Não é a mesma rede, porque temos convicções diferentes sobre como deve ser feita cada amarra. Mas muitos são sinceros. No momento certo, conseguiremos costurar as melhores partes dos nossos retalhos em um só partido revolucionário, que supere as vacilações teóricas das direções que não levam a nossa luta até o final, para dirigir o processo que vai finalmente emancipar a humanidade. Esse momento precisa também ser construído, trabalhado. Os processos de luta, por menores que sejam, são momentos de despertar, mas precisam ser aproveitados conscientemente. Precisamos lembrar das lições que foram deixadas para nós. A solidariedade de classe. A consciência de classe. Qual vem primeiro? Antes da galinha veio o ovo. Agora é sempre só ovo mesmo. Até quando? Tudo está tão caro... Mas a fila segue. O próximo, por favor, quantos bilhetes?




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