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SEMANÁRIO

Crítica às categorias de Ruy Mauro Marini (Parte 3 – final)

Seiji Seron

Ilustração: Alexandre Miguez

Crítica às categorias de Ruy Mauro Marini (Parte 3 – final)

Seiji Seron

A corrente “radical” ou “marxista” da dependência proporcionou uma salutar contribuição à crítica da economia política ao conceber o subdesenvolvimento não como mero atraso ou falta de desenvolvimento, falta de capitalismo, mas sim como uma forma particular de desenvolvimento capitalista e consequência necessária do próprio desenvolvimento dos países centrais e da economia mundial como um todo. Contudo, as categorias que Ruy Mauro Marini criou a fim de “determinar a legalidade específica” que rege este capitalismo periférico incorrem em algumas inconsistências teóricas.

Leia também: Crítica às categorias de Ruy Mauro Marini (Parte 1) e Crítica às categorias de Ruy Mauro Marini (Parte 2).

Uma formulação da “troca desigual” mais satisfatória que a de Marini encontra-se em O capitalismo tardio, de Ernest Mandel, economista e dirigente trotskista belga. Um balanço exaustivo da trajetória de Mandel, de seu papel na história do marxismo revolucionário e de seus acertos e erros teóricos e políticos excederia muito o escopo deste artigo. Porém, acontecimentos recentes tornaram imprescindível uma digressão a esse respeito.

Mandel entendeu como poucos o método de O capital, compreensão esta que se beneficiou de sua relação pessoal com Roman Rosdolsky, autor do célebre Gênese e estrutura de O Capital de Karl Marx. Lamentavelmente, esta fidelidade de Mandel ao método de Marx é comprometida por seu impressionismo, que o fez exagerar as eventuais diferenças entre variantes nacionais do stalinismo do pós-guerra, como o maoísmo, o titoísmo e o castrismo, por um lado, e o próprio stalinismo russo ou “soviético”, por outro, considerando tais variantes como centristas [1] ou até, em alguns casos, como direções genuinamente marxistas e revolucionárias. Por causa desse mesmo impressionismo, Mandel tentou explicar o boom do pós-guerra através da suposta existência de “ondas longas”, ou ciclos de cerca de 50 anos de duração, teorizada por um economista russo não-marxista, Nikolai Kondratiev. Esta análise eclética de Mandel efetivamente rejeitava a definição leninista do imperialismo como uma época de decadência histórico-civilizatória do capitalismo [2]. Até que a realidade o desmentisse, Mandel teve a ingenuidade de acreditar que a Perestroika seria um processo de autorreforma da burocracia soviética e de restauração, não do capitalismo, mas da democracia operária.

No último mês, os herdeiros políticos de Mandel expulsaram do NPA (Nouveau Parti Anticapitaliste, Novo Partido Anticapitalista) francês quase 300 ativistas que se opunham à política de acordos eleitorais com a LFI (La France Insoumise, A França Insubmissa), formação neo-reformista de Jean-Luc Mélenchon, e até com a centro-esquerda. A expulsão impediu que a direção histórica do NPA, mandelista, se tornasse minoritária em um futuro congresso do partido, adiado indefinidamente. Muitos desses 300 ativistas são trabalhadores da nova geração da vanguarda operária francesa, forjada pelos processos da luta de classes que se sucederam desde 2016, e que se organizaram junto à CCR (Courant Communiste Révolutionnaire, Corrente Comunista Revolucionária) e em torno do portal Révolution Permanente, a seção francesa da Rede Internacional Esquerda Diário. Agora, esses ativistas lutam pela construção de um novo partido, classista e revolucionário, capaz de se apropriar criticamente do melhor da tradição trotskista francesa e fundi-la a essa nova vanguarda operária. Evidentemente, os erros dos atuais mandelistas relacionam-se às antinomias do velho Mandel, mas seria uma injustiça imputar a este último toda a política liquidacionista de seus herdeiros.

Concorrência e lucro extraordinário

Mandel ressalta que, para Marx, a tendência ao nivelamento das taxas de lucro e a consequente transformação dos valores em preços de produção restringem-se à esfera nacional [3]. Lê-se no capítulo XX do livro I d’O capital, sobre a diversidade nacional dos salários:

“Em cada país vale certa intensidade média do trabalho, abaixo da qual o trabalho para a produção de uma mercadoria consome mais tempo que o socialmente necessário, e por isso não conta como trabalho de qualidade normal. Apenas um grau de intensidade que se eleva acima da média nacional, num país dado, muda a medida do valor pela mera duração do tempo de trabalho.” [4]

Como esta intensidade média do trabalho se estabelece? Através da concorrência, isto é, do movimento dos capitais entre os distintos ramos e setores da economia nacional. O capital visa não só lucrar, mas lucrar extraordinariamente, lucrar mais que a média, e não só porque os capitalistas são gananciosos, mas porque este é o único modo de evitarem a própria ruína, ou seja, porque a lei do valor os compele a agir assim, sob pena de falência.

Na parte 2 deste artigo, assinalamos que um capitalista se apropria de lucros extraordinários implementando uma inovação técnica que torne o valor individual de suas mercadorias menor que o valor social. Este capitalista poderá, então, vender as mercadorias que produziu a um preço menor que os dos concorrentes. Para não acumularem prejuízos e perderem fatias de mercado, estes últimos terão de assimilar a mesma técnica de produção daquele primeiro capitalista, contraindo empréstimos, se necessário. Ademais, a possibilidade de auferir lucros extraordinários irá atrair capitalistas de outros ramos que não estejam lucrando tanto e que irão emprestar seu dinheiro ou adquirir ações de empresas do ramo que está gerando lucros extraordinários, ou até mudar de ramo e tentar se apropriar diretamente destes ganhos. Em suma, é o sistema financeiro que permite os capitais se movimentarem de um ramo para o outro.

Conforme a técnica inovadora é assimilada por outros capitais do ramo e se generaliza, o valor social da mercadoria se reduz e, consequentemente, desaparece o lucro extraordinário, isto é, aquela diferença entre o valor individual e o valor social, ou socialmente necessário, das mercadorias. Logo, capitais que tinham afluído para este ramo irão refluir de volta aos seus setores de origem. Mas, neste processo de retorno dos capitais, algo daquela inovação é transferido para estes setores, ou seja, os capitalistas tentam aplicar, tanto quanto possível, a nova técnica aos demais ramos da economia. O efeito é o mesmo se o lucro extraordinário for obtido por meio de uma exploração maior do trabalho, ao invés de um aumento da produtividade. É assim que a equalização das taxas de lucro tende a homogeneizar as condições de produção, estabelecendo um padrão tecnológico e uma média nacional de produtividade e intensidade do trabalho. Ao obstaculizar essa livre movimentação dos capitais, os monopólios e oligopólios podem prolongar a existência dos lucros extraordinários de que se apropriam [5]. Mandel nota, entretanto, que é difícil prolongar esta apropriação por muito tempo, até mesmo nos setores mais oligopolizados, já que os capitais oligopolistas ainda competem uns com os outros.

Troca desigual de que?

Se a concorrência estabelece uma média nacional de intensidade do trabalho, Marx acrescenta, todavia:

“Não ocorre o mesmo no mercado mundial, cujas partes integrantes são os vários países. A intensidade média do trabalho muda de país para país; é aqui maior, lá menor. Essas médias nacionais constituem assim uma escala, cuja unidade de medida é a unidade média do trabalho universal. Comparado com o menos intensivo, o trabalho nacional mais intensivo produz pois, em tempo igual, mais valor, que se expressa em mais dinheiro.

Porém a lei do valor é modificada ainda mais em sua aplicação internacional pelo fato de que no mercado mundial o trabalho nacional mais produtivo conta também como mais intensivo, sempre que a nação mais produtiva não seja obrigada pela concorrência a reduzir o preço de venda de sua mercadoria a seu valor.” [6]

Segundo Mandel, a troca é desigual não porque são trocadas quantidades desiguais de valor, e sim porque os tempos necessários para se produzir esta quantidade de valor são desiguais. Por exemplo, a produtividade e a intensidade média do trabalho de um país hipotético, A, é três vezes maior que a de outro país hipotético, B. Cada país importa do outro a mesma quantidade de valor que exporta para o outro. Se as exportações do país A foram produzidas em 1000 horas de trabalho, estas 1000 horas de trabalho serão trocadas por 3000 horas de trabalho de B. Como a hora de trabalho de B conta como apenas 1/3 da hora de trabalho de A, as quantidades de valor trocadas serão iguais, mas a nação B terá de trabalhar três vezes mais para produzir o mesmo quantum de valor que A, e este tempo de trabalho adicional da nação B será apropriado por A, de maneira que a acumulação interna de B será prejudicada por uma transferência de recursos para o exterior. Logo, a desigualdade entre economias centrais e periféricas tenderá a se reproduzir e a se ampliar, mas não por causa da tendência ao nivelamento da taxa de lucro, e sim dos obstáculos e contra-tendências a este nivelamento.

Ademais, os países importam aqueles bens que, de modo geral, não produzem internamente, ou só conseguem produzir a um custo muito elevado. O comércio internacional se torna, portanto, uma fonte de lucros extraordinários à medida que os capitalistas do centro podem vender para a periferia produtos a um preço maior do que nos países centrais, porém, menor do que se estas mercadorias tivessem de ser produzidos por capitais da periferia [7].

Considerações finais

A Dialética da Dependência assinala como a divisão internacional do trabalho engendrou, na América Latina, uma forma particular de capitalismo que trunca a estrutura produtiva das economias latino-americanas, restringindo a difusão do progresso técnico e o aumento da produtividade, de modo que a extração de mais-valia se torna comparativamente mais dependente do prolongamento das jornadas, da intensificação do trabalho e da limitação das necessidades histórico-morais dos trabalhadores. Ao contrário dos desenvolvimentistas e de todo o resto do pensamento econômico não-marxista, os teóricos da dependência concebem a economia mundial como uma totalidade, e o subdesenvolvimento da periferia como consequência e condição necessária do desenvolvimento do centro.

Não negamos que o desenvolvimentismo tenha descrito aspectos importantes da realidade, embora seu caráter de classe, burguês, impeça-o de apreender as leis que regem verdadeiramente tais fenômenos. O erro de Marini não foi tentar apreender a mesma realidade que os desenvolvimentistas, e sim ter criado, para esta finalidade, categorias inconsistentes com a teoria do valor de Marx, inconsistências estas que evidenciam a incapacidade da teoria da dependência de superar a problemática desenvolvimentista. Por fim, o subimperialismo não se relaciona às constatações dos desenvolvimentistas de maneira tão direta quanto as outras categorias de Dialética..., mas a definição deste nega a si mesma, na medida em que o aspecto econômico do subimperialismo implica um aumento da subordinação do país dependente ao imperialismo, por efeito da maior imbricação internacional dos capitais, enquanto o aspecto geopolítico presume, em contrapartida, uma relativa autonomia do país subimperialista e até uma relação de antagonismo entre este país e o imperialismo [8].


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FOOTNOTES

[1O “centrismo” caracteriza as correntes políticas vacilantes, que oscilam inconsequentemente entre a reforma e a revolução, usando de fraseologia revolucionária para esconder uma política oportunista e conciliadora.

[2Acerca das “ondas longas” e da análise de Mandel do capitalismo do pós-guerra, cf. as críticas de Christian Castillo e Paula Bach, respectivamente.

[3Nos tempos de Marx, o grau de mobilidade internacional do capital era muito baixo. Mas, na época imperialista, a insistência de Mandel em negar que haja uma tendência mundial à equalização das taxas de lucro não se justifica. Em nossa opinião, seria mais acertado dizer que as exportações de capital acarretam, sim, uma tendência à equalização das taxas de lucro, mas esta é obstaculizada por distintos fatores, tanto econômicos quanto de outra ordem, dos quais o mais importante são as fronteiras nacionais, como esclarece a parte 2 deste artigo. Para Mandel, outro obstáculo à equalização mundial da taxa de lucro são as relações de produção pré-capitalistas e semi-capitalistas que se estendem sobre vastas áreas do “Terceiro Mundo”. No século XXI, a importância deste obstáculo diminuiu consideravelmente, pois a população urbana e assalariada do mundo se tornou, pela primeira vez, maior que a população rural, embora isto não signifique a completa desaparição de todos os resquícios coloniais e pré-capitalistas da periferia. Tais ressalvas não invalidam, contudo, o cerne da argumentação de Mandel acerca da “troca desigual”, que achamos correto.

[4Marx, O capital, livro I, cap. XX. São Paulo: Nova Cultural, 1996 (Col. “Os Economistas”); v. 2, p. 189-90.

[5Na periferia, a heterogeneidade industrial propicia lucros extraordinários sistemáticos, persistentes, às multinacionais estrangeiras, que empregam técnicas produtivas características das economias centrais. cf. El ciclo del capital en la economía dependiente.

[6O capital, edição citada; p. 190.

[7De fato, Mandel ressalta que a compulsão do capital pelo lucro extraordinário ocasiona tanto o desenvolvimento quanto o subdesenvolvimento ao estabelecer um novo padrão tecnológico e de produtividade, o que rebaixa o padrão tecnológico e de produtividade vigente e, ao mesmo tempo, compele todos os capitais a assimilarem como puderem o novo padrão. Esta justaposição de desenvolvimento e subdesenvolvimento ocorre não só entre as partes constitutivas da economia mundial, como também em cada uma destas partes, ou seja, dentro de cada país.

[8Angelita Matos Souza afirma que a “noção” de subimperialismo não merece status teórico-categorial, pois tende a uma “diferenciação por graus”: em todos os países dependentes, a superexploração deprime o consumo de massas de modo que o consumo suntuário e os gastos estatais se tornam fontes de demanda comparativamente mais importantes do que nas economias centrais, mas nem todos os países atingem uma composição orgânica média do capital suficiente para que possam exercer uma “política expansionista relativamente autônoma” e, assim, compensar externamente a deficiência de demanda doméstica. “O nível de abstração é inoperável à compreensão de realidades sociais e o expansionismo de empresas latino-americanas não se restringe ao Brasil, hoje como a época em que foram produzidos os textos de Marini. Atualmente, empresas chilenas, argentinas, mexicanas atuam no Brasil e noutros países latino-americanos; seria o caso então de se introduzir outras gradações: composição orgânica média de tipo 1, 2, 3... e respectivos graus de autonomia relativa. E talvez também de distinguir no interior do mundo periférico um centro dependente subimperialista [...] e uma periferia superdependente, vítima de imperialistas e subimperialistas. Efetivamente, muitas tipologias e classificações seriam possíveis, mas politicamente pouco produtivas, servindo à descentralização do domínio dos países imperialistas de fato.” (p. 149) Concordamos com esta crítica à Marini, em que pese serem problemáticos outros aspectos do artigo de Souza, em especial, sua negação do caráter do Estado de “comitê gestor dos negócios comuns de toda a burguesia”, segundo a famosa expressão de Marx e Engels.
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Seiji Seron

Bacharel em Ciências Econômicas (PUC-SP), mestrando em Desenvolvimento Econômico (Unicamp)
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