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Crítica às categorias de Ruy Mauro Marini (Parte 2)

Seiji Seron

Crítica às categorias de Ruy Mauro Marini (Parte 2)

Seiji Seron

A corrente “radical” ou “marxista” da dependência proporcionou uma salutar contribuição à crítica da economia política ao conceber o subdesenvolvimento não como mero atraso ou falta de desenvolvimento, falta de capitalismo, mas sim como uma forma particular de desenvolvimento capitalista e consequência necessária do próprio desenvolvimento dos países centrais e da economia mundial como um todo. Contudo, as categorias que Ruy Mauro Marini criou a fim de “determinar a legalidade específica” que rege este capitalismo periférico incorrem em algumas inconsistências teóricas.

O mais importante economista-chefe da CEPAL, o argentino Raul Prebisch, e o desenvolvimentista Hans Singer, alemão radicado na Grã-Bretanha, analisaram a tendência à deterioração dos termos de troca entre países que exportam produtos primários e industrializados. A longo prazo, os preços internacionais se comportam de tal modo que, para poder importar a mesma quantidade de bens industrializados que antes, é preciso exportar uma quantidade maior de bens primários, ou seja, estes se desvalorizam em relação àqueles, lesando os países que se especializam na primário-exportação. Esta deterioração não acontece de maneira linear, e sim cíclica, atenuando-se ou até se revertendo, nas fases de crescimento da economia mundial, e se agravando, nas fases de desaceleração ou recessão [1].

Entretanto, a deterioração dos termos de troca é a apenas a manifestação aparente de um fenômeno cuja essência não pode ser entendida a não ser por meio da teoria do valor de Marx. Não só os termos de troca tendem a se deteriorar como a troca em si é desigual, pois o comércio entre países centrais e periféricos transfere para os primeiros uma parcela do valor que estes últimos produziram, de modo que se trocam, a preços iguais, valores desiguais, segundo Marini. A superexploração seria o mecanismo de compensação destas transferências, às quais se somam outras, como as remessas dos lucros das multinacionais às suas matrizes, o pagamento de empréstimos estrangeiros, etc. Para o leitor que não é versado em economia, esta segunda parte do artigo e a subsequente poderão ser de difícil compreensão, mas peço encarecidamente que não desanime depois de ter lido a primeira. A seguir, tentarei explicar o mais didaticamente que puder o que é a “troca desigual” e porque a maneira como Marini a formula é problemática. Uma formulação alternativa desta categoria será apresentada na parte 3, que encerrará o artigo.

Sobre preços e valores

Para este fim, será preciso revisitar a análise de Marx sobre a concorrência capitalista. Tal análise divide-se entre a concorrência dentro de um único setor e a concorrência entre setores. No plano intrassetorial, supõe-se que, a princípio, as mercadorias são trocadas segundo seus valores, ou a quantidade de trabalho socialmente necessário para produzi-las. Mas o valor individual, ou a quantidade de trabalho realmente dispendida para produzir uma mercadoria, pode divergir do valor social desta mercadoria, já que alguns produtores são mais eficientes do que a maioria de seus concorrentes, e outros são menos eficientes. Se um fabricante qualquer é mais produtivo que a maioria, é porque este fabricante é capaz de produzir uma mercadoria tão boa quanto a dos seus concorrentes em um tempo menor do que o socialmente necessário. O valor individual desta mercadoria será menor que o seu valor social, e o fabricante poderá se apropriar, então, de um lucro extraordinário, isto é, da diferença entre os valores individual e social da mercadoria.

Já no plano intersetorial, ocorre o processo de transformação dos valores naquilo que Marx chamou de “preços de produção”. O valor de uma mercadoria ou de um conjunto de mercadorias é igual ao valor do capital constante e do capital variável [2] usado para produzi-las, acrescidos de uma mais-valia, ou c+v+m. Mas, se as mercadorias fossem trocadas segundo seus valores, o mais rentável seria empregar a menor quantidade possível de capital variável, e a menor de capital constante, já que somente o trabalho vivo produz mais-valia. Na prática, é a participação do capital constante que tende a crescer e, a longo prazo, a rentabilidade média do capital tende a ser semelhante, seja qual for o setor em que foi investido ou a proporção em que tais setores empregam capital constante e variável [3]. Por que isto acontece?

Os capitais se movimentam entre os ramos e setores da economia, sendo atraídos para os de maior lucratividade e repelidos dos de menor. Este movimento tende a igualar todas as taxas de lucro setoriais, e a diminuir a oferta de mercadorias nos ramos menos lucrativos, e a aumentá-la, nos mais lucrativos. Estas mudanças, por sua vez, provocam um desvio dos preços médios em relação aos valores. Em vez de c+v+m, as mercadorias tenderão a ser trocadas por c+v+p, sendo “p” uma margem de lucro equivalente à taxa média. Nos setores que usam mais capital constante do que variável, “p” será maior que “m”, já que estes setores produzem menos mais-valia [4]. Os preços médios, ou preços de produção, das mercadorias que estes setores produzem serão maiores que os seus respectivos valores. Nos setores que usam mais capital variável do que constante, “p” será menor que “m”, e os preços de produção serão, portanto, menores que os valores. Assim, os setores que empregam mais capital variável transferem uma parte da mais-valia que extraíram, igual à diferença entre “p” e “m”, para os setores que empregam mais capital constante.

Concorrência, troca desigual e exportação de capitais

Para Marini, é a concorrência intersetorial, sobretudo, que esclarece o fenômeno da troca desigual. Os países periféricos exportam mercadorias cuja produção emprega uma proporção de capital constante menor do que as exportações dos países centrais, de modo que há uma transferência líquida de valor da periferia para o centro. Para que haja tal transferência, não é preciso que o país dependente exporte produtos primários e importe industrializados, mas simplesmente que a produção dos bens que o país exporta utilize uma proporção de capital constante menor que a dos bens que este país importa.

Contudo, essa transposição do processo de nivelamento das taxas setoriais de lucro e da transformação dos valores em preços de produção para o plano internacional não explica o subdesenvolvimento, pois tal processo só ocorre à medida que os capitais puderem se mover livremente dos setores de menor para os de maior rentabilidade. A transformação acontece porque, enquanto ainda são os valores que regem as trocas de mercadorias, a lucratividade dos setores que empregam uma proporção maior de capital variável também é maior e, por conseguinte, tais setores atraem capitais para si. Conforme os capitais deslocam-se para estes setores, a oferta de mercadorias aumenta e a concorrência se acirra. Logo, os preços dos produtos destes setores caem, assim como a taxa setorial de lucro, e o inverso ocorre nos setores que empregam uma proporção maior de capital constante. Esse deslocamento dos capitais continuará até que as variações dos preços das mercadorias resultem em uma equalização das taxas de lucro dos distintos setores. O que Marx denomina “preços de produção” são justamente aqueles que igualam todas as taxas setoriais de lucro.

Se a mesma coisa acontecesse entre as economias do centro e da periferia, a desigualdade entre umas e outras iria diminuir, e não aumentar. Por quê? Suponhamos um mundo no qual existem apenas dois países, A e B. Em A, usa-se proporcionalmente mais capital constante e, em B, mais capital variável. A taxa média de lucro de B será maior que a de A e, portanto, haverá um fluxo de capitais de A para B. Mas, conforme os capitais de A se deslocarem para B, a concorrência entre estes capitais irá aumentar e, consequentemente, a taxa de lucro de B irá cair, enquanto o inverso ocorrerá em A. Só haverá troca desigual à medida que houver também este movimento dos capitais de A para B, o que irá, entretanto, acelerar o crescimento econômico de B, e diminuir o de A. Em outras palavras, a concorrência e a transformação dos valores em preços de produção implicam uma tendência à homogeneização das condições de produção, à diminuição dos desníveis tecnológicos e de produtividade. Quanto mais móvel for o capital, mais poderosa será esta tendência.

Historicamente, não foi este o comportamento das exportações de capital, às quais Lênin se refere como um traço distintivo da época imperialista. Até meados do século passado, a exportação de capital industrial era pouco comum. Os capitais que os países imperialistas exportavam para a periferia destinavam-se, em sua esmagadora maioria, ao financiamento da produção e comercialização dos alimentos e de matérias-primas demandados pelos próprios países imperialistas, e da construção da infraestrutura necessária para esta atividade, como ferrovias, principalmente. É só depois da Segunda Guerra Mundial que o capital industrial irá se deslocar do centro para países da periferia, a fim de produzir para o mercado interno destes países, o que será estimulado pelas políticas de substituição de importações, como assinalara na primeira parte deste artigo [5].

Taxa média de lucro e preços de produção mundiais?

A globalização neoliberal modificou a forma de internacionalização do capital produtivo. Hoje, este visa menos a ocupação de mercados, e mais vantagens competitivas como mão de obra barata, legislação trabalhista e ambiental permissiva, baixos impostos, etc., que propiciem uma diminuição do custo de produção das mercadorias e, por conseguinte, maiores lucros. O desenvolvimento das tecnologias de informação e comunicação (TICs), bem como dos transportes, permitiu a conformação das cadeias globais de valor (CGVs), isto é, a fragmentação geográfica dos processos de produção de maneira a localizar cada etapa produtiva onde quer que seja mais vantajoso e, assim, a maximizar a rentabilidade do processo como um todo. É possível produzir em qualquer lugar do mundo, desde que essas vantagens locais compensem os custos de se transportar o produto até o consumidor. Evidentemente, o desenvolvimento tecnológico não foi a causa destas modificações, que não teriam ocorrido se não fosse a restauração capitalista dos Estados operários do Leste Europeu, da Rússia e, especialmente, da China, a ofensiva neoliberal contra o movimento operário, o desmonte e mercantilização dos serviços públicos, privatizações, liberalização comercial e financeira, etc. A integração global dos mercados financeiros e esta nova forma de internacionalização da produção são duas faces da mesma moeda.

A mobilidade internacional do capital é, portanto, maior do que nunca. Todavia, isto não gerou nenhuma redução significativa da desigualdade entre países desenvolvidos e subdesenvolvidos, por mais que a economia burguesa prefira chamar estes últimos de “emergentes” ou “em desenvolvimento”. Por quê? Mesmo dentro de uma economia nacional, a mobilidade do capital não é perfeita. No plano mundial, as contra-tendências a uma homogeneização de toda a economia serão, por conseguinte, ainda maiores. O que impede, fundamentalmente, esta homogeneização são as fronteiras nacionais. Estas circunscrevem mercados de diferentes tamanhos, o que implica haver, em cada país, diferentes ritmos de acumulação do capital e diferentes taxas médias de lucro, determinadas por fatores internos, como as características da estrutura produtiva, do mercado de trabalho, etc. Mas, sobre estes fatores estritamente econômicos, atuam também os fatores políticos, internos e externos. Alguns países podem interessar ao capital até mais política do que economicamente. Não se entende o desenvolvimento do Japão e da Coréia do Sul desconsiderando a necessidade do imperialismo de fazer frente à influência soviética na Ásia, por exemplo. Outros países podem ainda perder sua atratividade ao se tornarem politicamente instáveis, ou se o governo de tal país é ameaçado pelo movimento de massas ou coagido por este a tomar medidas que contrariam os interesses do capital, e assim por diante [6].

Em suma, os capitais movimentam-se entre as economias nacionais visando uma lucratividade mais alta, e este movimento afeta, sim, as taxas de lucro dos vários países, tendendo a nivelá-las. Porém, esta tendência não é forte o suficiente para sobrepujar as contra-tendências e equalizar as taxas de lucro mundialmente. Logo, o comércio internacional não é regido por preços de produção, que não podem ser, portanto, a causa das trocas desiguais. O estabelecimento de preços de produção mundiais significaria que, para o capital, todos os cantos do planeta lhe oferecem mais ou menos as mesmas condições de valorização e a mesma rentabilidade. Isto só aconteceria se houvesse um único Estado capitalista mundial, ou seja, se fossem abolidas as fronteiras nacionais. Estas, no entanto, ainda são um obstáculo ao desenvolvimento das forças produtivas da humanidade, tal como afirmara Leon Trótski, e em que pese a internacionalização do capital não ter senão aumentado.


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FOOTNOTES

[1Segundo Ernest Mandel, os preços das matérias-primas tendem a aumentar, em proporção dos custos de produção das mercadorias, conforme aumenta também a produtividade do trabalho. A deterioração dos termos de troca seria provocada pela modernização do processo de produção das matérias primas, que visa contra-arrestar essa tendência ao encarecimento das mesmas, e acarretará uma mudança da divisão internacional do trabalho, particularmente, após a Segunda Guerra Mundial. Os países centrais irão produzir, eles próprios, algumas destas matérias-primas, ou as substituirão por materiais sintéticos (El capitalismo tardio. Cidade do México: Era, 1979).

[2As definições de capital constante e variável encontram-se na nota de rodapé nº 5 da Parte 1 deste artigo.

[3São as taxas setoriais médias que tendem a se equalizar. Dentro de um ramo ou setor qualquer, cada capital terá a sua taxa de lucro individual.

[4Admitindo-se a hipótese de que a taxa de exploração é igual em todos os setores.

[5Este processo de internacionalização do capital industrial foi também uma consequência do desenvolvimento das indústrias produtoras de bens de capital durante a reconstrução dos países centrais. Além de aumentar a capacidade produtiva destas indústrias, tal desenvolvimento reduziu pela metade o tempo de rotação do capital fixo, isto é, o tempo de uso do maquinário industrial antes de sua substituição. A industrialização de alguns países periféricos tornou-se, então, um meio de escoar essa oferta potencial de bens de capital, transferindo o maquinário obsoleto para estes países de modo a permitir a renovação tecnológica das indústrias do centro. O modelo de substituição de importações atendia aos interesses tanto do imperialismo, de exportar maquinário e conter o apelo que o “socialismo” soviético exercia sobre o “Terceiro Mundo”, quanto das burguesias periféricas, de desenvolver e expandir o setor capitalista de suas respectivas economias nacionais e de poder, assim, satisfazer as reivindicações de emprego e renda, evitando que o movimento operário saísse de seu controle.

[6Há ainda os casos de intervenção direta do imperialismo, como o do golpe institucional de 2016, cujos fins econômicos eram, além das reformas e ataques à classe trabalhadora, uma entrega maior da Petrobras ao capital estrangeiro e a dilapidação das demais “global players” brasileiras através da Lava Jato.
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Seiji Seron

Bacharel em Ciências Econômicas (PUC-SP), mestrando em Desenvolvimento Econômico (Unicamp)
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