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Cabo Delgado | Como o Estado francês e a Total impulsionaram a militarização em Moçambique?

A militarização de Cabo Delgado, onde a petrolífera francesa Total possui um investimento próximo de 20 bilhões de euros, poderá superar a revolta islâmica? Estamos caminhando para um novo cenário ao estilo do Mali no sul da África?

segunda-feira 13 de setembro de 2021 | Edição do dia

Publicado originalmente em Révolution Permanente, seção francesa do Esquerda Diário

Desde 2017, a província de Cabo Delgado, no extremo norte de Moçambique, está em luta contra uma insurreição, que se reivindica do Daesh (Estado Islâmico). Mas nos últimos meses a situação de segurança se deteriorou significativamente, a ponto da Total ter que "suspender" suas atividades operacionais de gás na região em março, após o ataque à vila de Palma, situada a alguns quilômetros da base da multinacional francesa. Não o bastante, desde agosto de 2020 os insurgentes do al-Shabab (como são conhecidos na região, apesar de não serem vinculados a organização de mesmo nome da Somália) tinham tomado o controle da cidade portuária de Mocimboa da Praia, que acaba de ser tomada.

A situação em Cabo Delgado começou a chamar atenção ao nível regional e internacional especialmente porque a província concentra projetos e investimentos no valor de dezenas de bilhões de euros. Em 2009 foram descobertos campos de gás na costa da província. A francesa Total confirmou um investimento próximo de 20 bilhões de euros, no que se tornou o principal investimento privado da história do continente africano. Por sua vez, a multinacional norte-americana ExxonMobile ainda não decidiu se vai se comprometer com um investimento de US$ 30 bilhões, e a italiana ENI está avançando em um projeto de liquefação offshore do gás de cerca de 7 bilhões de dólares (o projeto da ENI é o único que não se encontra diretamente ameaçado pelo conflito). Junto as multinacionais, outras empresas de países como a Índia, o Japão, a Coreia do Sul, a China, a Tailândia e Portugal também estão envolvidas na exploração do gás em Moçambique. Alguns analistas estimam que o investimento total nos campos de gás varia entre 50 e 100 bilhões de dólares. A província de Cabo Delgado também atraiu o apetite das mineradoras multinacionais devido à riqueza mineral da região, especialmente as minas de rubi.

Para entender melhor a importância desses números para Moçambique, lembremos que o PIB do país foi de apenas US$14 bilhões em 2021 de acordo com o FMI; a renda per capita anual desta nação de 32,8 milhões de apenas é de apenas US$425. Assim, de acordo com a Fundação MASC, em setembro de 2020 a pobreza era de 44,8% na província de maioria muçulmana, e a taxa oficial de desemprego é de 16,2%; o analfabetismo chega a 53%, o maior do país; a expectativa de vida é de apenas 48 anos. Quanto aos serviços públicos, para além das infraestruturas muito precárias ou inexistentes, a rede de água potável cobre apenas 44,5% da província e a de eletricidade 16%.

Em outras palavras, os ricos recursos minerais e energéticos estão no meio de um oceano de miséria e subdesenvolvimento. É neste contexto que surgiu o conflito armado em 2017. Logo, não é surpresa que grande parte dos combatentes são compostos de jovens desempregados e de pessoas expulsas de suas terras, ou forçadas a abandonar a atividade agrícola ou pesqueira para que as multinacionais como a Total ou MRM (Montepuez Ruby Mining) se instalem. Neste contexto, a “aposta de risco” das multinacionais era explorar os recursos naturais de uma região mergulhada na pobreza tentando lidar com os conflitos que tal situação inevitavelmente provocaria. A “aposta” parece, até o momento, ter fracassado.

Para além do fato da Total ser obrigada suspender suas atividades e obras, o conflito deixou 3 mil mortos e 800 mil deslocados desde 2017 (números que podem ser superiores dado que as informações são fortemente controladas pelo governo). Assim, a população local encontra-se esmagadas entre a violência e os ataques dos radicais islâmicos e, por outro lado, a brutalidade e os crimes do exército moçambicano e dos mercenários que o governo havia contratado para combater a insurgência islâmica (sem sucesso).

Militarização de Cabo Delgado

Há vários meses o CEO da Total, Patrick Pouyanné, tenta convencer o presidente moçambicano, Felipe Nyusi, e os líderes da União Europeia (UE), a adotarem uma postura mais agressiva frente à insurgência islâmica em Cabo Delgado. Mas foi o ataque à vila de Palma em março passado que parece ter acelerado as coisas. Após esse ataque, a Total decidiu suspender suas atividades no país. O governo moçambicano, que até então se mostrava relutante em apelar à intervenção militar estrangeira e preferia contratar mercenários, temendo a saída de investidores, começou a aumentar as trocas para encontrar exércitos amigos dispostos a intervir em Cabo Delgado.

No entanto, isso não significa que o governo moçambicano tenha abandonado todas as resistências que possui para recorrer à intervenção militar estrangeira no país. Com efeito, por questões históricas, mas também por questões políticas, apresentadas sob o pretexto de "soberania nacional", o presidente Nyusi e o seu partido, a FRELIMO (Frente de Libertação de Moçambique), desconfiam da presença de tropas sul-africanas no seu país.

Ao mesmo tempo que concede um envio de tropas de diferentes países da Comunidade para o Desenvolvimento da África Austral (SADC), o presidente Nyusi também tem aumentado o número de reuniões com lideranças de outros países do bloco para chegar a acordos bilaterais, mas também com lideranças de países que não fazem parte do bloco, em particular com Ruanda:

“O presidente moçambicano esteve em Harare em Junho e, segundo o Zimbabwe Independent, o seu objetivo era garantir que o Zimbabué, para além de participação no contingente de cerca de 2.900 militares que a Comunidade de Desenvolvimento da África Austral (SADC) envia a Moçambique, também enviasse outra força sob acordo bilateral. Angola vai enviar 20 conselheiros militares sexta-feira, o Botswana já enviou 296 militares, o Parlamento sul-africano aprovou o envio de 1.495 soldados sul-africanos.”

Escreveu o jornal português Publico no final de julho.

Não obstante, como prova da desconfiança do governo moçambicano com alguns dos seus vizinhos, uma semana antes do destacamento da força da SADC, um contingente de 1.000 soldados e polícias ruandeses chegaram a Cabo Delgado e entraram em ação imediatamente. Este rápido desdobramento apanhou não só os membros da SADC, começando pela África do Sul, de surpresa, mas também organizações da sociedade civil e forças políticas moçambicanas, algumas das quais denunciaram que o parlamento não foi informado da chegada das forças ruandesas.

Para alguns analistas, o uso de forças ruandesas responde a uma tentativa de Felipe Nyusi de manter o controle sobre as ações militares realizadas por tropas estrangeiras no país. O analista Moçambicano Manuel de Araújo:

“Ruanda vai querer mostrar resultados à SADC. Haverá competição no terreno, e isso pode não funcionar como esperado. O que se espera é uma força que tenha um comando comum, conjunto, uma força disciplinada que trabalhe em perfeita sintonia, com a troca de informações operacionais táticas e estratégicas, bem como, se necessário, a possibilidade de contar com apoios, seja em termos de informações, recursos ou pessoas. Caso contrário, vejo um barril de pólvora, onde teremos Cabo Delgado dividido em partes, no que chamaria de uma verdadeira conferência de Berlim para Cabo Delgado, onde cada distrito estaria sob o comando de uma força ou de um país.”

Para complexificar a situação, outros diferentes países africanos, as potências imperialistas da União Europeia e dos Estados Unidos já enviaram soldados para várias missões no país. Mesmo, Portugal, antiga potência colonizadora de Moçambique, enviou 60 militares ao país no mês de Abril para treinar as forças moçambicanas e em maio foi assinado outro acordo com Maputo para mais 60 treinadores militares. Por sua vez, os Estados Unidos também enviou Boinas Verdes a Moçambique para formar as suas forças armadas numa missão renovada em Agosto missão renovada em Agosto. E finalmente, a União Europeia decidiu em meados de Julho enviar uma força militar composta por 200 à 300 soldados, e neste caso, Portugal também tomará a liderança da missão europeia. A França, por sua vez, diz estar disposta a colaborar na segurança do Canal de Moçambique estar disposta a colaborar na segurança do Canal de Moçambique através da sua marinha (função que já cumpre em grande parte graças a acordos militares de longadata com Moçambique).

É difícil dizer no momento o número exato de soldados estrangeiros presentes em Moçambique e, particularmente, em Cabo Delgado. Mas já podemos estimar um número entre 3.000 e 4.000, somados aos militares moçambicanos. Mesmo que essas missões sejam, em princípio, de curta duração, é difícil dizer com precisão quanto tempo essas forças militares realmente permanecerão no país. Mas esta repentina militarização de Moçambique não vem do céu. É também o resultado da pressão dos investidores, a começar pela Total, e dos estados que os apoiam, como a França, mas também os Estados Unidos, cujos principais bancos estão envolvidos no financiamento de investimentos em Cabo Delgado.

Como escreveu o Observatório do Conflito de Cabo Delgado, Cabo Ligado, em seu relatório de maio:

“17 de maio, [o presidente Nyusi] encontrou o presidente Macron e o chefe da Total, Patrick Pouyanné, na tentativa de convencê-los de que pode restaurar a segurança em Cabo Delgado. Após o desastre de Palma, um plano de segurança convincente para a Total e os franceses tornou-se uma prioridade urgente para Maputo, que está ansiosa para colocar o projeto de gás natural liquefeito da empresa de volta nos trilhos. A Total está empenhada em retornar quando a situação estiver calma. Agora é essencial chegar a um acordo sobre a forma que essa devolução assumirá e como a segurança será reforçada. As previsões de um chamado modelo de "iraquização" (isto é, priorizando a segurança dos principais interesses estratégicos sobre as necessidades de segurança mais amplas da população) parecem estar se cumprindo.”

Perguntas sobre a intervenção de Ruanda

Entre os exércitos que intervêm em Cabo Delgado, particularmente um chama atenção: a Força de Defesa Ruandesa (RDF). Ruanda tem experiência em intervenções no exterior na região, particularmente na República Democrática do Congo e na República Centro-Africana. No entanto, o seu envolvimento na luta contra a insurgência islâmica em Moçambique é surpreendente, dado que os dois países não pareciam ter relações muito próximas.

Especula-se sobre o papel da França e dos contatos que os dois países estabeleceram nos últimos tempos (voltaremos neste ponto mais adiante). Já mencionamos o interesse que o governo moçambicano tem em apoiar as forças ruandesas contra o peso da SADC e da África do Sul. No entanto, Ruanda possui seus próprios interesses políticos e estratégicos para intervir em Cabo Delgado. Para além das possíveis oportunidades econômicas em Cabo Delgado, em aliança com investidores estrangeiros, Ruanda pode tentar usar a sua intervenção em Moçambique para reforçar sua posição econômica e política na região.

Entrevistamos Jasmin Opperman, analista da 14 ° Norte, que cobre o conflito desde o início, e sobre tal questão ela acredita que:

“Ruanda ganha várias vantagens disso, e devemos examinar a posição do presidente Kagame em solo nacional. Ele se encontra relativamente isolado e está constantemente em busca de alianças para se fortalecer (...). Veja a cobertura e as declarações da mídia sobre Ruanda. Suas vitórias são voltadas para os ruandeses, que mostram uma força formidável e um presidente na liderança da região. Eles sequestraram a "narrativa da guerra" e assim se posicionaram como a força dominante. Também estamos vendo isso em suas recentes intervenções na República Centro-Africana”.

O jornal britânico The Economist aponta para o mesmo sentido e adiciona outro elemento:

“Ruanda carece de amigos, o que resultado da perseguição a opositores em outros países e do apoio a rebeldes em suas vizinhanças. Ajudando Moçambique, Ruanda ganha um novo aliado. Além de agradar a América, Grã Bretanha e França. A presença de dissidentes ruandeses em Moçambique também pode ter tido algum papel na decisão.”

O último elemento, a perseguição de opositores ao regime de Paul Kagame nos países da região, de fato levanta questões. Mesmo que, como diz o The Economist, este elemento possua, provavelmente, um papel menor em relação a outros fatores, devemos mencionar que nos últimos mesmo o governo ruandês tem buscado acordos com países da África Austral para rastrear opositores refugiados no estrangeiro. Outro elemento importante para assinalar sobre esta questão é o desaparecimento do jornalista dissidente ruandês, Cassien Ntamuhanga, que teria sido sequestrado por agentes de Kigali em Moçambique, onde mora, no mês de maio.

Mesmo no caso da perseguição a opositores ruandeses não ser uma das principais razões para a intervenção deste país em Moçambique, parece justificado o receio de que as forças ruandesas aproveitem o seu acesso ao solo moçambicano para se educar e reprimir os oponentes. Ainda mais quando se pensa que o responsável geral pela missão de Ruanda é Innocent Kabandana. Ele é conhecido por suas operações para rastrear oponentes de Ruanda no exterior. Segundo DW Africa:

"O Major-General Innocent Kabandana é responsável pelo assassinato de bispos católicos em Gakurazo em 1994 e por caçar dissidentes ruandeses nos Estados Unidos e Canadá quando era adido militar na embaixada de Ruanda em Washington (...) E Kabandana, como comandante das forças especiais de Ruanda, teria liderado operações em Kivu do Sul, na República Democrática do Congo, com a missão de eliminar refugiados hutus e repatriar mulheres e crianças, para criar e lutar em nome do RED Tabara - movimento de resistência contra o governo do Burundi - e para desmantelar grupos de resistência suspeitos de serem aliados de grupos armados ruandeses ”

Mas o General Kabandana não é a única preocupação que esta intervenção pode levantar. Embora alguns elogiem as qualidades e o profissionalismo do exército ruandês, a realidade é que ele é marcado por acusações e suspeitas de crimes cometidos em países da região. Nesse sentido, o relatório de maio de Cabo Ligado que já citamos afirma que:

“O Relatório de Mapeamento de 2010 do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos sobre os abusos apresentou evidências de crimes de guerra cometidos por forças ruandesas na República Democrática do Congo (RDC) durante a primeira e segunda guerras do Congo de 1996 e 1998.”

Por sua vez, o Grupo Mars, próximo aos círculos de defesa franceses, escreve em um artigo no La Tribune sobre a intervenção de Ruanda na RDC:

“Uma simples busca na internet traz a uma série de estudos, de língua francesa, mas não só, que tendem a mostrar que os regimes em vigor em Kigali e Kampala obtêm os maiores benefícios econômicos da catástrofe humanitária que se abateu sobre os congoleses. Assim, Ruanda teria se tornado o maior exportador mundial de coltan, um mineral essencial em particular para a indústria de telecomunicações, por causa de suas propriedades condutoras. No entanto, é nos Kivus, na RDC, que se encontra o minério mais puro. Lá é extraído em minas artesanais controladas por milícias que desafiam a autoridade de Kinshasa e exportam o minério para Ruanda, onde é refinado para extrair tântalo, o que contribui para trazer ao poder ruandês uma de suas principais fontes de riqueza”.

Ruanda busca neste momento se projetar na região como um Estado provedor de segurança trabalhando de perto com a ONU e as potências regionais e internacionais, o que poderia eventualmente abrir as portas para investimentos. É neste contexto que devemos compreender a sua intervenção em Moçambique. No entanto, todos os elementos mencionados acima, obviamente, levantam questões sobre os riscos, não só para os refugiados políticos ruandeses, em Moçambique, mas também para a segurança das populações locais, que já foram vítimas de abusos pelas forças moçambicanas e seus aliados. À medida que os primeiros relatos de violência contra civis começam a surgir, esse risco de abuso aumentará ainda mais se a missão de forças estrangeiras se prolongar. Do ponto de vista do interesse econômico, levanta também questões sobre o que o governo moçambicano pode ter prometido a Ruanda em termos de acesso aos recursos naturais do país. Lembre-se que Cabo Delgado também é uma região rica em minérios.

O Estado francês e a Total financiam a intervenção de Ruanda?

“Quem paga a conta?” Esta é a questão que muitos se colocam, mas que os políticos responsáveis, de diferentes países envolvidos na intervenção em Moçambique, respondem de forma mais que vaga. Se soma a esta questão o fato que a maioria dos estados envolvidos está em situações econômicas difíceis. Dada a importância dos investimentos de várias multinacionais na região, incluindo a Total, todos os olhos se voltam para a França. E as especulações sobre um possível financiamento francês ressoam cada vez mais forte. E não é sem fundamento.

No contexto do reconhecimento parcial da responsabilidade francesa pelo genocídio dos tutsis em Ruanda em 1994, os dois estados iniciaram um processo de reaproximação e normalização de suas relações. Não obstante, Macron visitou Kigali, a capital do Ruanda, antes da sua visita à África do Sul (outro país fortemente envolvido na intervenção em Moçambique). Além disso, o presidente ruandês Paul Kagamé, assim como o presidente moçambicano Felipe Nyusi, foi recebido em Paris por Emmanuel Macron para a “Cúpula de Financiamento para Economias Africanas”. Por outro lado, Nyusi visitou Ruanda em 28 de abril para se encontrar com Kagame.

Todos estes elementos levam a crer que a França tem algo a ver com as ações ruandesas (e sul africanas) em Moçambique. Como nos explica J. Opperman:

“A amizade renovada faz parte da aliança. O fato que Ruanda seja responsável por Mocímboa da Praia [importante cidade portuária retomada dos insurgentes recentemente] e pelo corredor de segurança diz muito. Uma força militar estrangeira e bem armada está claramente em posição de reiniciar o desenvolvimento do Gás Natural Liquefeito. Ruanda apresenta a melhor oportunidade para Moçambique e França, e com isso a Total (...) Que a França dá apoio financeiro, não tenho dúvidas.”

António Rodrigues, em um artigo no jornal português Público, segue ainda mais incisivo neste sentido. Evocando a mudança de estratégia francesa para o Sahel onde Macron reduziu o número de soldados franceses, possivelmente substituindo-os por tropas africanas, Rodrigo escreve:

“Esta mesma estratégia parece já ter sido adoptada em Moçambique para proteger os interesses da multinacional francesa Total e do seu projeto de gás natural em Cabo Delgado. O contingente de tropas ruandesas que já iniciou o combate aos jihadistas na província do norte de Moçambique seria financiado pela França, que já deu demonstrações ao Zimbábue que também está disposta a pagar as despesas das suas tropas se decidir ’enviar suas forças para Cabo Delgado’.”

Para Rodrigues, que não dá as fontes, a Total também está envolvida no financiamento dessas operações em convênio com o Estado francês. Assim, no caso de um possível envolvimento do Zimbábue financiado pela França, ele afirma que:

“A sugestão teria vindo do presidente francês, que Nyusi visitou em Paris em meados de maio, e que estava pronto para financiar a operação (na verdade, o dinheiro virá da Total, que pode contabilizá-lo como despesas iniciais de trabalho, beneficiando de uma redução de impostos). Macron teria proposto estabelecer com o Zimbabwe o mesmo tipo de acordo de assistência técnica e financeira que assinou com Ruanda.”

Outros elementos sugerem a participação da multinacional francesa no apoio às forças ruandesas, como o fato de estas terem feito das instalações da Total em Afungi a sua base.

O fato é que após as dificuldades encontradas pela intervenção francesa no Sahel, que ao que tudo indica esta se dirigindo para um fracasso comparável ao dos Estados Unidos no Afeganistão (ou pior ainda), a França tenta evitar ao máximo se envolver diretamente em um novo conflito na África. Isso é ainda mais importante em uma situação política doméstica, onde a população está cada vez mais hostil à Operação Barkhane e onde já entramos no período de campanha presidencial para as eleições do próximo ano. Neste sentido, não é absurdo pensar que os esforços franceses, frente à necessidade de garantir ajuda à Total, busquem envolver os parceiros regionais, mesmo que isso signifique financiar discretamente as suas intervenções.

Contudo, seria um erro pensar que somente a França (e a Total) possui interesse em financiar tal intervenção. Lembremos que a multinacional estadunidense ExxonMobile realizou um investimento de 30 bilhões de dólares para exploração do gás natural de Cabo Delgado. Os bancos de investimento dos EUA já estão envolvidos ao lado da Total. Portugal desempenha um papel central na coordenação do envolvimento da UE na região e a Alemanha, por sua vez, fez uma doação de 4,2 milhões de euros para fortalecer a fronteira entre Moçambique e Tanzânia, onde combatentes jihadistas podem tentar buscar refúgio. A China e a Rússia também possuem interesses na região de Cabo Delgado, mas a Índia é indiscutivelmente um dos estados do Indo-Pacífico com mais laços comerciais com Moçambique: de 1996 a 2021, Moçambique foi o principal receptor mundial de investimento indiano. O Japão e a Coreia do Sul também podem ser adicionados a esta lista.

Tudo isto significa que mesmo que os principais interessados ​​aqui sejam a Total e o Estado Francês, os interesses em “pacificar” Cabo Delgado são múltiplos e envolvem vários países a nível regional e internacional. Em outras palavras, os candidatos a uma intervenção, ou para o financiamento de intervenções, são múltiplos no caso de Cabo Delgado.

África do Sul, outro aliado da França

Embora a França não tenha uma presença histórica na África Austral como na África Central e, especialmente, no Oeste, consequência de seu passado colonialista, seu interesse recente na região implica a busca de novos aliados, confiança e fortalecimento das parcerias existentes. Foi assim que ela "naturalmente" se voltou para a África do Sul. O Estado francês e a Total estão plenamente conscientes de que a África do Sul é um ator chave na região e a sua participação foi essencial para conter a insurgência islâmica em Cabo Delgado.

É assim que a ONG “Centro Para Democracia e Desenvolvimento” descreveu a situação no mês de julho:

“A França se aproveitou da influência econômica e política da África do Sul na região para desempenhar um papel estratégico na intervenção militar da SADC em Moçambique. Pretória sempre defendeu uma solução regional para Cabo Delgado em vez da intervenção de potências internacionais. Reconhecendo isso, Paris uniu forças com a África do Sul para influenciar a estruturação do apoio regional para a luta contra o terrorismo. Antes do encontro em Pretória, Macron e Ramaphosa haviam se encontrado em meados de maio em Paris e o terrorismo em Moçambique foi um dos temas discutidos.”

Essa reaproximação entre a França e a África do Sul é combinada com um aumento significativo nas exportações de armas francesas para a África do Sul. Na verdade, no relatório ao Parlamento sobre as exportações de armas francesas publicado em junho de 2021, vemos que o volume de equipamento militar francês entregue à África do Sul mais do que triplicou, de 4, 2 milhões de euros em 2019 para 14,1 milhões de euros em 2020. Esses números certamente ainda estão longe dos 20,2 milhões de euros de vendas no Marrocos e ainda mais dos 51,3 milhões de euros da Argélia, mas em 2020 a África do Sul foi o maior cliente da França na África Subsaariana, muito à frente de Uganda (7,6 milhões), que vem depois dela.

No documento não há registros de vendas de armas da França para Moçambique em 2020. No entanto, a África do Sul aprovou meio milhão de rands em exportações de armas para Moçambique durante o ano de 2020. Dado o nível de corrupção do governo moçambicano e dos negócios na região, é muito difícil saber os detalhes dessas vendas e até obter mais informações sobre elas. Neste sentido, o site sul africano especializado em questões militares e de defesa, Defensa Web, cita a diretora do Observatório de Direitos Humanos, Dewa Mavhinga, que diz que:

“A ’sua organização’ sabe que oficialmente as autoridades sul-africanas anunciaram no ano passado que estavam a fornecer armas a Moçambique para ajudar a acabar com a insurgência na província de Cabo Delgado. Forneceu mais detalhes. Documentaram alegações de graves violações dos direitos humanos em Cabo Delgado, ambas por insurgentes e pelas forças de segurança moçambicanas, incluindo assassinatos, sequestros, maus tratos a detidos e detenções arbitrárias que ocorrem com impunidade. Apelamos às autoridades sul-africanas para que garantam que o seu apoio não resulte em novas violações”.

É muito difícil saber no momento atual se as armas francesas foram entregues a Moçambique através da África do Sul ou de outros canais ocultos. No entanto, o que parece claro é que armas que Pretória obteve da França serão utilizadas para a intervenção dos militares sul-africanos em Cabo Delgado.

A opção militar impotente frente à crise de Cabo Delgado

Enquanto a opção militar em Cabo Delgado se tornou "senso comum" entre os que tomam decisões locais e regionais, investidores e políticos de estados imperialistas, e aparecem os primeiros sucessos no campo militar, como a tomada de Mocímboa da Praia pelas forças ruandesas (o que poderia acelerar o retorno da Total), a pergunta que continua é: podemos acabar com a insurgência islâmica por meios puramente militares? Em um momento em que vemos o terrível fracasso de 20 anos de ocupação imperialista no Afeganistão, cujo corolário foi o retumbante retorno do Talibã ao poder, ou a desastrosa Operação Barkhane liderada pela França no Sahel, temos exemplos contemporâneos do quão nocivas são estas intervenções militares, em particular para as populações locais.

Para Jasmin Opperman, foi necessária uma intervenção militar em Cabo Delgado, mas também aponta para os limites desta opção apesar dos sucessos à curto prazo:

“A tomada de Mocímboa da Praia acontece em um momento em que os rebeldes já aproveitaram as oportunidades. Relatórios indicam que os insurgentes começaram a se retirar antes mesmo da chegada de Ruanda. Desenvolvimento é apenas um clichê se não o definirmos no contexto de um Cabo Delgado esquecido, onde a dignidade humana assume precedência, onde o medo é engajado em um processo estruturado para ganhar corações e mentes no mundo, além das expectativas econômicas em termos de emprego e desenvolvimento de infraestrutura. Estes últimos são apenas facilitadores na luta contra as causas profundas. Negligencie-os e o cordão de segurança do insurgente permanecerá intacto. O governo moçambicano é confrontado com o princípio de Mateus e com uma economia mundial a favor das elites: “A quem tudo tem, daremos mais. A quem nada tem, tudo será levado”. O povo de Cabo Delgado já experimentou isso por muito tempo.”

Esta parece ser de fato a chave da situação: a pobreza e a miséria em que está submerso Cabo Delgado, como mostramos em alguns números acima. Os exércitos da SADC, de Ruanda e, eventualmente, de outros Estados poderiam começar a superar a insurreição atual, mas enquanto as causas sociais, econômicas e políticas estruturais que a provocaram continuarem lá, outras insurreições aparecerão. A própria intervenção militar poderia alimentar a revolta entre a população local. Como nós dissemos, os abusos dos militares agem como motores, empurrando algumas pessoas para os braços de insurgentes. Mas também existem outros fatores relacionados à guerra que podem alimentar o descontentamento popular.

Para dar um exemplo, um dos principais pontos de discórdia entre as populações locais e os projetos de investidores estrangeiros era a questão da terra. Muitos pescadores, mineiros artesanais e agricultores foram deslocados mais ou menos à força das suas terras e águas de pesca para dar lugar às multinacionais; no caso de muitos mineiros, foram criminalizados e obrigados a abandonar as suas atividades. Algumas pessoas, especialmente jovens, podem ter se juntado aos insurgentes após essas expulsões. Mas hoje que os combates se intensificaram, que aumentou o número de deslocados, a questão do retorno dos refugiados e do destino de suas terras está se tornando cada vez mais uma questão central, que pode se traduzir em eventos importantes da luta de classes na província. Conforme escrito no relatório Cabo Ligado mencionado anteriormente:

“Como o governo continua a evitar esforços para garantir que as pessoas deslocadas possam voltar para suas casas no futuro, há uma preocupação crescente de que o que parece ser um reassentamento temporário seja de fato permanente. Entre os deslocados, isso alimenta teorias de que o conflito existe apenas para privá-los da terra em que viveram, cultivaram e pescaram por muito tempo. Para as comunidades anfitriãs, isso pressagia um futuro onde a competição por terras será muito mais acirrada, levando-as a agir agora contra os deslocados para obter uma vantagem nessa competição.”

Não é por acaso que o mesmo relatório expressa temores de que os insurgentes estejam se aproveitando da situação recrutando secretamente pessoas entre os deslocados ou em campos de refugiados. Isto leva as autoridades moçambicanas a cultivar grande desconfiança nos refugiados.

Outra questão suscetível de alimentar o descontentamento popular e logo a revolta nas províncias é a percepção da população local que todos os esforços são dedicados não a proteger a população dos abusos e atrocidades dos insurgentes, mas para proteger unicamente os interesses das multinacionais. Nesse sentido, a socióloga do trabalho portuguesa Mariana Carneiro defende no artigo “O gás da Total é uma maldição para Cabo Delgdo” como a população de Palma, frente ao agravamento dos combates, foi completamente negligenciada, enquanto a ajuda e os recursos foram priorizados para os funcionários das multinacionais no local:

“Toda a comida ia por mar. E até por mar, às vezes aconteciam incidentes, ataques aos barcos. Quando isso aconteceu, o governo fechou um acordo com a Total, e outras empresas que operam em Palma, para garantir a sua segurança. Todos os trabalhadores das empresas, dos bancos, mudaram-se para os hotéis. Ou seja, a comida não chegou ao povo de Palma, mas sim aos hotéis. Os poucos navios que conseguiram atracar em Palma abasteciam primeiro os hotéis e acampamentos das grandes empresas. A população continuou faminta.”

Ainda que nos últimos dias existam imagens de soldados ruandeses tentando simpatizar com as populações locais, é claro para todos que a prioridade é garantir o perímetro e as vias de comunicação das bases onde as tropas estão localizadas. Investimentos da Total e outras empresas estrangeiras para que possam regressar o mais rápido possível e retomar suas atividades. “A presença de um contingente ruandês e o envio de uma força da SADC parecem ter como objetivo proteger os interesses das multinacionais envolvidas em projetos de gás natural na bacia do Rovuma, que podem dar origem a um ’enclave petrolífero’», afirma o investigador João Feijó .

O que tudo isso mostra é que a intervenção e militarização de Cabo Delgado são impotentes para resolver os problemas básicos que pavimentaram o caminho para o surgimento da insurgência islâmica. De qualquer maneira, o objetivo das intervenções militares, pelas quais a Total e as potências imperialistas tanto têm pedido, é garantir a segurança dos investimentos e não da população. Na verdade, as multinacionais não se importam com os problemas socioeconômicos estruturais do povo de Cabo Delgado. É neste sentido que podemos falar do risco da situação se tornar mais afegã. Considera Opperman:

“A SADC enfrenta restrições orçamentárias e a sua presença dependerá dos doadores estrangeiros. Ruanda, com o apoio da França, pode estar presente por mais tempo. No entanto, contar com isso, pode significar realmente um segundo Afeganistão - a segurança baseada em uma mentalidade de guerra ao terror não é sustentável e, em minha humilde opinião, os insurgentes estão bem cientes dessa realidade. Envolver-se é a parte mais fácil, sair será mais difícil, porque o afastamento significará simplesmente que os insurgentes retornarão ao cenário do conflito.”

Hoje, Cabo Delgado está militarizado e o Estado francês e a Total, por diversos meios, como vimos aqui, são os responsáveis ​​diretos por esta situação. A militarização de Cabo Delgado e de Moçambique não resolverá de forma alguma o problema do analfabetismo, do desemprego, da questão da terra e dos recursos naturais da região para a população local. Pelo contrário, a juventude, os camponeses, os pescadores e trabalhadores de Cabo Delgado vão se ver confrontados com mais violência e abusos, seja por parte dos insurgentes ou dos militares. As capitais imperialistas e a burguesia nacional não podem, nem possuem interesse em resolver os problemas estruturais das condições de vida das populações locais. Isso vai contra seus próprios interesses econômicos. E isso só pode alimentar o descontentamento popular e manter um possível terreno fértil para os radicais islâmicos.

No entanto, nós não podemos imaginar a canalização deste descontentamento popular ocorra apenas pelos insurgentes islâmicos. As missões militares poderão mesmo derrotar a insurgência jihadista, mas não eliminarão as fontes da revolta. A luta pela terra, pela dignidade, pela sobrevivência e contra o desprezo e cinismo das multinacionais, mas também das classes dominantes moçambicanas em Cabo Delgado, podem também assumir um forma progressista rejeitando tanto os interesses dos capitalistas como a barbárie do extremismo islâmico. Neste momento, as mesmas forças que hoje são enviadas contra os islâmicos seriam utilizadas para reprimir uma revolta legítima da população e dos mais oprimidos e explorados da província. Este é mais um resultado do carácter reacionário da militarização pró-imperialista de Cabo Delgado.

Por diferentes razões, até o momento, as potências imperialistas, incluindo a França, preferem não se envolver diretamente nos combates a favor da formação das forças moçambicanas. No entanto, não há dúvida de que estão pressionando os exércitos regionais a agirem por eles, possivelmente financiando suas operações. Como vemos hoje com a catástrofe que vive o povo afegão, o movimento operário, a classe operária dos países imperialistas não podem ficar de braços cruzados. Não existe uma resposta militar simples frente a uma situação complexa como a de Cabo Delgado, como afirmam os militaristas imperialistas. O movimento operário na França ganharia se opondo firmemente a qualquer intervenção militar em Moçambique em nome da Total e dos interesses do Estado francês. Uma orientação internacionalista da classe operária seria apoiar qualquer movimento progressista possível na província e na região, contra as multinacionais, mas também contra os jihadistas que de forma alguma são uma solução para a miséria de Cabo Delgado. Ao contrário do militarismo imperialista, apostamos na emergência de um movimento de oprimidos e explorados que varra os extremistas do Daesh de Cabo Delgado, mas que também coloque em xeque o poder das multinacionais. Um movimento que lute para que sejam as massas e trabalhadores que decidam o que fazer com os recursos naturais da região. Esta é a única saída progressista, tudo o mais levará ao desastre.




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