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Colômbia e o fio vermelho da rebelião na América Latina

Claudia Cinatti

Colômbia e o fio vermelho da rebelião na América Latina

Claudia Cinatti

A conjuntura

“Se um povo sai a protestar em meio a uma pandemia, é porque o governo é mais perigoso que o vírus”.

A frase de Residente, um popular rapper porto-riquenho, viralizou em um vídeo em que expressou sua solidariedade ao povo colombiano. Antes ela havia sido lido e vista em milhares de faixas nas ruas de Bogotá, Cali, Medellín e dezenas de cidades da Colômbia no primeiro dia da Greve Nacional contra a reforma tributária regressiva do presidente Iván Duque, em 28 de abril. Desde então, a Colômbia está em estado de rebelião.

A conjuntura política nacional da atual explosão está determinada pela crise pandêmica, pela catástrofe social e a crise política do governo Duque e de seu partido de extrema direita “Centro Democrático”. Este é o terceiro mais importante levante popular, contra a agenda neoliberal e a repressão de um estado policial, que Duque enfrenta desde que assumiu a presidência colombiana em 2018.

Com a chamada “Lei de Solidariedade Sustentável” Duque buscava que os trabalhadores, desempregados, setores populares e as classes médias pagassem a fatura da crise econômica que se aprofundou com a pandemia. O pacote incluía a eliminação de isenções, o aumento do IVA (Imposto ao Valor Agregado) sobre bens básicos de consumo popular; reduzia o limite de renda para pouco mais de US $ 600 para começar a tributar os ganhos (pouco mais de duas vezes o salário-mínimo); impunha, também, impostos sobre pensão. Não suficiente, os principais beneficiários da assistência estatal durante 2020, devido a recessão provocada pela pandemia e os confinamentos, foram os grandes capitalistas como a Avianca (que recebeu um resgate de 370 milhões de dólares) e o sistema financeiro. O principal objetivo do governo era diminuir o déficit, que ano passado subiu para 8% do PIB, e assim manter a classificação de crédito e ser confiável para o FMI e o capital financeiro internacional.

Duque tentou vender a (contra) reforma quase como um ato altruísta, para aumentar a arrecadação e assim poder prorrogar por alguns meses o gasto estatal em programas sociais. Claro, que não teve êxito. Para todos aqueles que podem somar dois mais dois, era evidente que entre 75% e 83% da arrecadação ia ser garantida pelos setores populares, deixando intactos os lucros dos grandes capitalistas. Para piorar a situação, Duque escolheu o momento menos oportuno para anunciar tal ataque aos bolsos: em meio à terceira onda de Covid-19 e no dia em que a Direção Nacional de Estatística informava que a pobreza chegava a 42%, a pobreza extrema a 15% e o desemprego a 17% (dos 50 milhões de habitantes, 21 milhões são pobres, 7 milhões comem apenas uma ou duas vezes ao dia e 4 milhões não têm trabalho).

Isto explica por que Álvaro Uribe, o mentor de Iván Duque estrategista da direita mais rançosa e paramilitar agrupada no Centro Democrático, tenha se distanciado da reforma tributária e do próprio Duque. Ele percebeu que essa medida profundamente impopular poderia arruinar as perspectivas eleitorais de seu partido para as eleições presidenciais de 2022, que por enquanto é liderada com folga, segundo as pesquisas, por Gustavo Petro, o senador da centro-esquerda da “Colombia Humana”, ex-membro do movimento guerrilheiro M-19, que concorre a uma ampla aliança conhecida como "Pacto Histórico".

Esta aguda situação da luta de classes mostra que se esgotou o terror infligido pelo Estado e pelas classes dominantes durante as décadas de guerra suja contra as FARC para manter a ordem com manu militari. Ainda que siga vigente a concepção bélica frente aos protestos sociais, como expressa claramente Álvaro Uribe ao agitar, desde sua conta no Twitter, a intervenção das Forças Armadas e fale de resistir a “revolução molecular dissipada”, um pseudo conceito esotérico usado por fascistas de todo tipo para reduzir as mobilizações populares ao trabalho de infiltrados e, assim, justificar a violência estatal. Somente desde a assinatura dos Acordos de Paz com as FARC, em 2016, cerca de 1.100 dirigentes sindicais, camponeses e populares foram assassinados.

A situação na Colômbia é uma dor de cabeça para o imperialismo norte americano, que vem jogando um papel central no desenvolvimento da guerra suja do Estado colombiano através do chamado “Plano Colômbia”. O que implicou em um grau de ingerência sem precedentes dos Estados Unidos na região. Sob a presidência de Joe Biden (fanático defensor do “Plano Colômbia”) Iván Duque e a extrema direita colombiana que militava no bando de Donald Trump segue sendo um aliado fundamental na política de hostilidade dos Estados Unidos perante Cuba e Venezuela.

O levante e suas perspectivas

Ainda que Duque tenha retirado a reforma em 2 de maio, e que seu ator, o neoliberal Alberto Carrasquilla, ministro da fazenda, tenha renunciado no dia seguinte – estas eram duas das principais demandas da oposição política ao governo de Duque – as mobilizações continuaram, assim como as paralisações nacionais e os enfrentamentos com a polícia e seus esquadrões da morte, Esmad (Esquadrão Móvel Antidistúrbio).

No momento da redação deste artigo, já se somam 10 jornadas de mobilizações e paralisações, mais de 30 mortos, centenas de feridos e desaparecidos. Como todo processo da luta de classes que toma uma dimensão histórica, o levantamento do povo colombiano faz dos assassinados seus símbolos. E ainda tem sua capital: Cali, a terceira cidade do país, foi declarada a “capital da resistência” e ainda é o epicentro dos confrontos mais radicais liderados por uma juventude precária, desempregada e informal. E também da ação de paramilitares e pistoleiros.

Antes de cogitar hipóteses sobre a possível dinâmica que pode tomar os acontecimentos buscaremos sintetizar algumas definições.

Sobre o levante: A profundidade do processo se evidencia nas analogias, feitas por intelectuais e analistas, com grandes rebeliões nacionais como o Bogotaço ou a greve cívica de 1977. Se trata do terceiro ato de um ciclo ascendente da luta de classe que se iniciou com a greve nacional de 21 de novembro de 2019, como parte da onda de levantamentos e protestos na América do Sul, que teve seus pontos mais altos nas rebeliões do Chile e do Equador.

Sob o lema “Parar para avançar”, o 21N teve como motor central o profundo descontentamento com as medidas de austeridade, a violência estatal e paramilitar contra dirigentes sindicais, sociais, camponeses, e o boicote permanente por parte do governo Duque (e Uribe) dos acordos de paz assinados com as FARC em 2016, pelo presidente anterior Juan Manuel Santos (e revisados “para baixo”, depois que o “Não” foi surpreendentemente imposto no referendo que deveria ratificá-los). O 21N deixou, também, como tradição novas formas de luta e organização, como as assembleias de bairro.

Depois de uma pausa tensa, produto do início da pandemia e das quarentenas, o segundo ato deste processo teve lugar em setembro de 2020. O gatilho para estes dias violentos de mobilizações foi o assassinato brutal de Javier Ordoñez pela Polícia Nacional, que foi gravado e transmitido em um vídeo amador.

Estamos vivendo agora um terceiro momento de condensação nacional da raiva operária e popular, catalisada pela reforma tributária e a enorme impopularidade do governo Duque. Neste ciclo não só os protestos, como também a repressão, tem escalado: em 2019 houve um saldo de quatro mortos pela repressão, em setembro de 2020 foram 13 manifestantes assassinado em Bogotá. Hoje já são mais de 30.

Sobre as forças motrizes e suas direções. Assim como em 2019, o atual levante popular é protagonizado por uma aliança em atos entre assalariados sindicalizados, jovens precarizados dos bairros populares, estudantes, classes medias urbanas progressistas, povos indígenas organizados na chamada “minga indígena”, camponeses e setores populares em geral. A direção burocrática das centrais sindicais, a CUT e a CGT, que integram o chamado Comité Nacional de Greve, possuem a política de chamar paralisações de um dia, o que conspira contra a organização e preparação de uma greve geral que unifique todos os setores em luta em torno do objetivo de derrubar o governo Duque. Esta falta de unidade, de propósitos impõe o perigo de que a força da mobilização vá se esgotando em ações dispersas e enfrentamentos parciais.

Porém, como aponta o cientista político Álvaro Jiménez Millán – ex porta voz do M19 nas negociações de paz com o governo de Betancourt – as burocracias sindicais não dirigem as mobilizações de cabo a rabo, existe uma parte importante de espontaneidade, o que se pode perceber nas ações mais radicalizadas da vanguarda que não aceitam o chamado a conciliação e a resposta pacífica frente a violência estatal. Esta tensão entre as direções burocráticas do Comitê Nacional de Greve e uma juventude mais dispersa, mas por sua vez mais radical, já havia se revelado nas mobilizações de 2019. O que pode acontecer novamente em uma situação de catástrofe social e crise política agravada pela pandemia e suas consequências.

Em suma, se a perspectiva da queda do governo ainda não foi claramente aberta, deve-se principalmente à ação das lideranças sindicais e políticas.

Sobre a dialética repressão/diálogo. O governo Duque, que passou dias por um fio, sem apoio político claro nem mesmo de seu próprio partido, adotou uma dupla estratégia para desmantelar o movimento: repressão mais diálogo. Esta fórmula clássica das classes dominantes e seus estados para desmontar processos revolucionários, é a mesma tática que usou Duque para desarticular os protestos em 2019, instalando uma “mesa de diálogo” impulsionada junto com a igreja e os empresários com a estratégia de dispersar as demandas. Em certo sentido, foi também a tática de Lenin Moreno em outubro de 2019 no Equador quando convidou a direção da Conaie (Confederação Indígena do Equador) para a mesa de diálogo e juntos tiraram as massas das ruas. No essencial, consiste em estigmatizar aos setores mais radicais da vanguarda acusando-os de ser “vândalos”, “saqueadores” e, particularmente na Colômbia, “terroristas” para isolá-los e legitimar sua repressão, criando um clima propício para os “protestos pacíficos”. É outra maneira de separar vanguarda e massas.

Sobre a oposição de centro esquerda a Duque. Tanto a Coalizão da Esperança como o Pacto Histórico de Gustavo Petro estão trabalhando para o êxito da política do “diálogo”. Esta política formulada por Petro explicitamente em uma reunião com o Comitê de Greve. Ele afirmou que deveria ter sido declarado o “triunfo” depois da retirada da reforma por parte de Duque, e percebendo a distância entre as direções sindicais e a juventude precária e dos bairros que seguem lutando e não querem voltar para casa, ele os aconselha a definir um ou dois objetivos imediatos para se sentar e dialogar com o governo. Assim, prestam um serviço inestimável a classe dominante, atuando para salvar o governo de Duque que está debilitado, evitar sua caída revolucionária e consolidar o desvio do processo até as eleições do ano que vem. Mas o processo ainda não possui um final definido.

A etapa na América Latina

O levante popular na Colômbia é parte de uma dinâmica cada vez mais explosiva da América Latina. Os motores deste ciclo da luta de classes na América Latina são profundos e antecedem em muito a pandemia. Na realidade se remontam a princípio o da década de 2000 que se expressaram as jornadas revolucionárias na Argentina em 2001, ou as guerras de água e do gás na Bolívia. Esgotado o desvio do primeiro ciclo de “governos pós-neoliberais” com o fim do boom das matérias primas, o retorno de algumas destas variantes, logo após os experimentos falidos da direita, como o governo de Alberto Fernandez na Argentina ou o de Luis Arce na Bolívia, depois da derrota dos golpistas, em condições de pandemia e crise econômica e compromissos com o FMI, não conseguir recriar as mesmas ilusões no movimento de massas.

A economia da região, que já vinha de anos medíocres com recessão e baixo crescimento, contraiu 7% em 2020, mais que o dobro da média mundial. De acordo com um relatório da OIT, na América Latina e no Caribe há pelo menos 158 milhões de pessoas trabalhando no setor informal, o que equivale a 54% da força de trabalho.

Apesar do aumento do preço das comodities e das baixas taxas de juros, o panorama para 2021 não é alentador. O surgimento da cepa p.1 (Manaus) disparou uma segunda (em alguns países, terceira) onda muito mais letal que as anteriores, o que implicou em novas restrições e fechamentos parciais, enquanto a vacinação encontra-se em ritmo lento na maioria dos países. O FMI prevê que não será até 2025 que a renda per capita pré pandemia se recuperará.

Em uma nota publicada na revista Foreign Affairs, Luis Alberto Moreno, o diplomata do partido conservador colombiano e ex-presidente do Banco Interamericano de Desenvolvimento por 15 anos (sucedido em 2020 pelo trumpista Claver Carone) sustenta que a América Latina está nas portas de uma nova década perdida, com episódios alternados de disparadas inflacionárias, crises de dividas e quedas de arrecadação. E alerta que “se não fazer nada, América Latina se converterá em uma doente de instabilidade ainda maior, na qual ninguém, nem suas elites, nem os Estados Unidos, estará imune.”

No mesmo sentido, um editorial do diário Washington Post aconselha aos “Estados Unidos e outras nações ricas a ampliar rapidamente as medidas de socorro do Covid-19 na América Latina e outras regiões pobres” e conclui que “se a pandemia não estiver sob controle nos próximos meses, não só na Colômbia, mas grande parte da região poderá ser desestabilizada”. O mapa de calor da luta de classes regional indica que, com distintas intensidades, seja com governos da direita neoliberal ou da “centro esquerda” autodenominada progressista, retornou na região a tendência a ação direta.

Com diferenças entre si os protestos no Peru e na Guatemala, em novembro de 2020, fazem parte dessa tendência mais geral, junto a explosão de raiva popular no Paraguai em março de 2021; a greve dos estivadores e o dia da luta em 30 de abril no Chile; a luta dos trabalhadores da saúde da província de Neuquén, na Argentina, que bloquearam o acesso a Vaca Muerta, principal investimento de capitalistas locais e estrangeiros.

Em alguns casos, esse retorno da luta de classes se combina com conjunturas eleitorais fracas que não conseguem se consolidar em desvios. Nesse contexto, devemos ler a crise aberta no Peru com o segundo turno entre Pedro Castillo e Keiko Fujimori.

A reforma tributária de Duque, como o aumento de 30 centavos no preço da passagem de metrô no Chile em 2019, foi nada mais que o gatilho, a gota d’água que transbordou o copo que vem se enchendo com indignação e raiva operária e popular. Não por acaso é na Colômbia, Chile e Peru, países apresentados pelas classes dominantes e sua tropa político-ideológica como exemplos retumbantes do êxito neoliberal, onde os processos de luta e de crise do regime burguês são mais agudos.

Isso não quer dizer que não exista contra tendencias e polos reacionários, como o governo de Jair Bolsonaro no Brasil – ainda que agora em crise –, o governo de Nayib Bukele em El Salvador, nem que não seja possível o surgimento de tendências autoritárias ou bonapartistas. Mas justamente estas tendências são as que, a sua maneira, confirmam que foi aberta uma etapa de choques mais agudos entre as classes e, em perspectiva, entre revolução e contrarrevolução. Perspectiva que reforça a necessidade de construir partidos revolucionários e uma direção revolucionária internacional que permita levar estas lutas a vitória [1].


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Claudia Cinatti

Buenos Aires | @ClaudiaCinatti
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