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GRAMSCI | Coerção e consenso na dominação burguesa

A metáfora forjada por Maquiavel do Centauro, metade humano metade fera, é o ponto de partida utilizado por Gramsci em seus Cadernos do Cárcere para pensar a relação entre coerção e consenso na dominação burguesa.

sexta-feira 17 de junho de 2016 | Edição do dia

Dentro de certa tradição que busca se apropriar dos conceitos do revolucionário italiano esses dois momentos aparecem como polos opostos e mutuamente excludentes, momentos marcadamente distintos nas formas de dominação que estabelece a burguesia sobre o conjunto das classes subalternas, principalmente sobre o proletariado.

O consenso seria forma de dominação própria das sociedades ocidentais, teria um espaço "geográfico" próprio de funcionamento, a sociedade civil, mais desenvolvida no "oeste" adiantado que no "leste" atrasado, seria a forma exclusiva de dominação nos momentos de passividade, de estabilidade, do poder burguês.

A coerção seria forma particular da dominação no "oriente" atrasado, localizada no estado, em contraposição a sociedade civil, e só seria utilizada no "ocidente" em momentos de crise orgânica da dominação burguesa.

Para uma correta apreensão dos movimentos táticos e sua ligação com a estratégia revolucionaria no "ocidente", mesmo num ocidente “sui generis" como o Brasil, é necessário superar essa superficial contraposição e entender a relação dinâmica entre esses dois momentos no estabelecimento da hegemonia burguesa nas sociedades "ocidentais". É como contribuição a esse debate fundamental que e escrito esse artigo.

Hegemonia burguesa, síntese de coerção e consenso

Um primeiro elemento a se levar em consideração para pensarmos as formas através das quais a burguesia constrói sua hegemonia no presente é pensarmos as profundas transformações que atravessou essa construção na historia.

De uma classe com papel profundamente progressivo que era a burguesia em sua época revolucionaria, entre o final do século XVIII e a primeira metade do século XIX, classe capaz de expansividade material e cultural, capaz de absorver novos setores sociais e integrá-los em suas novas relações, capaz de representar efetivos a avanços para os demais setores subalternos da sociedade, a burguesia, a partir da segunda metade do século XIX e começo do século XX passa a representar uma classe reacionária, cujo interesse material e subjetivo deixa de ser transformar de forma progressiva a sociedade para ser o de manter as relações capitalistas, agora dominantes, estáveis, mesmo ao preço de alianças com classes que representavam o antigo regime.

O ultimo momento em que a burguesia conseguiu representar um papel progressivo foram as revoluções passivas na Alemanha e Itália, ainda no final do século XIX, onde essa classe conseguiu neutralizar os grupos e classes subalternas se apropriando de parte de suas demandas (como a unificação nacional). Mesmo nesse momento, contudo, o papel progressivo da classe capitalista foi altamente contraditório, pois se realizou graças a acordos espúrios com os setores mais retrógrados da sociedade, como os Junckers (classe dos latifundiários), no caso alemão.

Essa transformação do papel social da burguesia, de classe progressiva em reacionária, o advento consequente da época imperialista, muda totalmente a relação entre consenso e coerção na hegemonia social que a burguesia estabelece com os grupos oprimidos da sociedade.

Enquanto até aquele momento a burguesia podia se apresentar de forma legitima também como parte dos grupos subalternos, mostrar seus interesses em parte como coincidindo com os dos demais setores oprimidos, sendo o grupo hegemônico num sistema de alianças que visava derrubar as carcomidas forcas do antigo regime, quando se torna classe dominante a nível internacional, estabelecendo suas formas de dominação e relações de produção como forma geral das relações sociais em todo o globo, na época imperialista, qualquer tentativa de a burguesia se apresentar como parte de um bloco junto às classes subalternas, ou mesmo a tentativa de apresentar que essa diferença entre dominantes e dominados não existiria, algo tão caro ao discurso ideológico capitalista, só pode se basear na mistificação, no engano mesmo, das classes subalternas em relação a concretude das relações sociais.

Enquanto, portanto, no momento anterior a hegemonia burguesa sobre os demais grupos subalternos, sua capacidade de criar consentimento ativo para suas ações podia se basear num relativamente legitimo reconhecimento por parte dos demais setores de uma certa comunidade de interesses entre eles e os capitalistas ainda em ascensão, a partir do momento em que os capitalistas assumem e se estabilizam no poder qualquer identidade de interesses entre esses e os grupos subalternos desaparece.

E necessário a partir desse momento para a burguesia construir uma estabilidade para sua dominação nas sociedades "democráticas"— pois a democracia foi um dos elementos ideológicos utilizados pelos capitalistas para construir sua hegemonia no momento anterior, o que deixou marcas indeléveis na sociedade posterior que construiu— que ela construa uma ideologia que mascare as verdadeiras relações de exploração e os conflitos inerentes a elas, ideologia que deve construir uma falsa sensação e visão de harmonia dentro das relações capitalistas.

Mas para garantir essa possibilidade de hegemonia de sua ideologia, ato diretamente contrastante com a realidade, é necessário à burguesia se não o monopólio, impossivel nas sociedades "democráticas", pelo menos uma grande proeminência de seus aparatos hegemônicos e aparatos ideológicos.

E esse o papel que deve cumprir a coerção nas sociedades "democráticas" e "ocidentais", ser garantidora permanente e em última instância da predominância dos aparatos hegemônicos burgueses no estado integral capitalista.

Atomização e pulverização do proletariado, coerção e consenso

Para que a burguesia, portanto, consiga o consentimento ativo ou passivo do proletariado para sua dominação, num momento histórico em que seus interesses são profundamente antagônicos, é necessário que ela atomize a classe operaria, impeça o surgimento e organização por parte de nossa classe de aparatos hegemônicos com influencia de massas.

Essa pulverização e atomização do proletariado é conseguida sempre através de uma relação dinâmica entre coerção e consenso.

Em momentos de baixa intensidade da luta de classes, onde apenas os setores mais de vanguarda da classe operária se colocam em luta os elementos coercitivos da democracia tem peso menos relevante (mas sempre presente), tendo predominância os elementos de construção de consenso.

A coerção, nesses momentos, pode se apresentar como algo próprio e aplicado apenas aos elementos mais radicais, ainda destacados do conjunto dos trabalhadores, ou próprio apenas para os criminosos ou delinquentes (aqui o papel importante que cumpre a criminalização de setores da população, como forma de legitimar a coerção e enquadrar os setores "legais" do proletariado).

Nesses momentos de maior passividade, em que os elementos coercitivos podem agir com menor intensidade, a burguesia consegue unificar e organizar a classe operária a partir de seus aparatos hegemônicos e ideológicos para garantir seus próprios interesses.

Como ser eminentemente social que é o operário, posto que humano, ele precisa se organizar. Faltando os instrumentos próprios, autóctones, de sua classe, os trabalhadores acabam se organizando através dos aparelhos burgueses.

Igreja, escola, família, jornais, partidos burgueses reformistas, burocracias sindicais, são todos instrumentos construídos pela burguesia para garantir a socialização da classe operaria dentro dos parâmetros necessários para os capitalistas e a reprodução ampliada do capital.

Quando a partir de suas lutas e experiências os trabalhadores conseguem superar as formas ideológicas burguesas e passam a construir seus próprios aparatos hegemônicos, principalmente o partido revolucionário, como elemento organizador e centralizador de todos os demais, e esses conseguem cada vez mais influência de massas, construindo uma dualidade de poder e sendo uma ameaça à predominância dos aparatos burgueses é necessário novamente para a patronal dispersar e desorganizar os trabalhadores e seus aparatos hegemônicos.

Nesse momento a balança entre consenso e coerção novamente pende para o segundo, que ganha cada vez mais peso nas relações de dominação burguesa.

Se a capacidade de a classe operária se organizar e construir aparatos hegemônicos foge ao seu controle a burguesia organiza suas formas mais brutais de coerção, as ditaduras francas e abertas, métodos de guerra civil contra a classe trabalhadora, instrumento utilizado para acabar com todo vestígio de organização operaria e retornar essa a seu patamar anterior, de pulverização e atomização.

Vemos assim que além de estar sempre presente mesmo nos momentos de maior passividade na luta de classes, cumprindo o papel de reprimir, desorganizar e afastar a vanguarda do conjunto da classe, a coerção é instrumento e garantia última da dominação burguesa, sempre se colocando, portanto, mesmo nos momento de maior predomínio dos elementos de consenso, como garantidora última da ordem, se mostrando como força última em caso de rebelião dos oprimidos.

Mesmo nos momentos mais agudos de coerção existe consentimento em pelo menos um setor dos oprimidos

Vemos assim que a relação entre coerção e consenso e sempre dinâmica, nunca unilateral, nas sociedades "democráticas" capitalistas.

Contudo, outra coisa a que queremos atentar nesse artigo é que mesmo nos momentos de mais brutal ditadura existe um elemento de consenso por parte de um setor das classes subalternas.

Se apropriando dos preconceitos mais atrasados e brutalizados dos setores mais despolitizados, em seus elementos mais degenerados e desagregados, se aproveitando dos erros e incapacidades das direções revolucionárias as classes dominantes conseguem por vezes organizar batalhões inteiros dentro dos setores oprimidos para reprimir seus irmãos de classe.

São esses setores oprimidos que enganados e desmoralizados pela propaganda ideológica burguesa são a carne de canhão e massa de manobra para seus movimentos reacionários. A burguesia deve conseguir esse consentimento ativo de setores subalternos para seus movimentos reacionários, pois como pequeno grupo que e precisa construir "tropas" que levem a frente seus projetos.

Conclusão

Aqui de forma alguma se buscou construir uma visão pessimista, como se com essa relação entre consentimento e coerção na sua hegemonia a burguesa conseguisse uma barreira intransponível para um amplo movimento emancipador por parte do proletariado. Muito pelo contrário, ao buscar jogar alguma luz sobre a relação entre esses dois momentos, buscando dar elementos para que superemos uma separação estanque e unilateral, permitir entendermos melhor o campo de batalhas para que nossa atuação no conflito de classes seja mais efetiva.

Se não tratamos aqui das formas de construção da hegemonia proletária foi porque elas são diametralmente opostas as formas burguesas, pois não baseadas na mistificação e enganação dos demais setores, mas numa profunda comunidade de interesses entre o proletariado e os demais setores oprimidos, e esporemos uma visão sobre as formas de construção da hegemonia de nossa classe em outros artigos.


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Gramsci    Teoria



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