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CINEMA | Cinderela, O filme: 3 passos para a ascensão social da mulher

Cinderela, uma das histórias mais contada de todos os tempos, em diversas regiões (desde a China até os cordéis brasileiros), teve sua versão moderna contada por Charles Perrault (1628 -1703). E foi nessa versão que o estúdio Walt Disney se baseou em 1950 para fazer o desenho Cinderela, com um orçamento de produção de quase US$3 milhões, que rendeu até hoje mais de US$34 milhões, tornando sua versão a mais conhecida de todos os tempos e se solidificando no ramo da animação.

Camila FarãoSão Paulo

segunda-feira 20 de abril de 2015 | 00:00

O novo filme da Disney, Cinderela, é exatamente como o velho desenho que assistimos em nossa infância: não há nenhuma releitura dos ideais judaico-cristãos e burgueses presentes no filme: humildade, generosidade, resignação, valorização do dinheiro e incentivo à caridade e paternalismo. A única mudança que existe, sutilmente, é que a bondade de Cinderela não vem de sua ingenuidade e/ou inocência, mas de sua própria consciência, fruto do ensinamento de seu pai e de sua mãe.

Ascensão = Família

O começo do filme se difere ao retratar a infância de Cinderela; nos contos antigos e até mesmo no desenho da Disney, a família da Cinderela sempre foi um ponto de partida da narrativa (que pressupõe uma certa estabilidade), não uma elaboração em si. Por exemplo, notem como a família é citada no conto original de Charles Perrault:

“Era uma vez um fidalgo que casara em segundas núpcias com a mulher mais arrogante e orgulhosa que alguma vez se viu, mãe de duas filhas como ela e iguais como duas gotas de água. O marido também tinha uma filha, mas esta era doce e boa como a sua mãe, que fora a melhor pessoa do mundo.”

Uma vez a estabilidade familiar sendo rompida com a perda dos pais e restabelecida no casamento com o príncipe, podemos dizer que o elemento da família é algo simbólico para a estrutura narrativa dos contos (o ponto inicial e de chegada de uma história). Com a crise dos valores burgueses, a família possui uma relevância à parte na história da Cinderela: tem uma longa introdução no ambiente familiar, na infância de Cinderela, em sua educação.

Primeiro Passo: Obedecer aos pais

No atual filme, sua mãe pede “seja sempre corajosa e gentil” e, sendo assim, Ella (antes de se tornar Cinderela) encontrou nesta fórmula coragem + bondade uma forma de tornar a sua mãe viva. Seu pai decidiu casar novamente, inclusive conversou com Ella a respeito, obviamente, ela concordou e respeitou a decisão paterna. Então ele se casou com a madrasta.

O pai acaba morrendo e Ella se torna a Cinderela (do inglês, "cinder", cinza), apelido dado pela madrasta e suas filhas, pois Cinderela vivia suja de borralhos por causa do trabalho doméstico. Mesmo que este apelido seja verdadeiro, porém, Cinderela não é obrigada a trabalhar para a madrasta (no filme ela pode fugir e trabalhar em outro lugar), mas trabalha assim mesmo porque o pai, antes de morrer, pediu para ela cuidar do seu lar que fora de seus antepassados. Então, para tornar o pai vivo, ela se submete ao trabalho servil e é feliz assim... Pois esquece sua dor obedecendo os pais.

Segundo passo: Trabalhe duro em casa!

Mesmo nascida num ambiente próspero, onde foi educada, aprendeu outros idiomas, etc., Cinderela se torna uma serva e aceita sua condição. Trabalha duro e é feliz na rotina degradante do trabalho doméstico. É amiga dos ratos, dorme no sótão, não recebe nem o que comer, mesmo sendo ela que cozinha, mas vive cantando e sonhando. É abusada pela madrasta e por suas filhas, mas não guarda mágoa nem ressentimento. É boa e trabalhadora. Costurou seu próprio vestido par ir ao baile. Tem todos os dotes domésticos e é muito feliz por isto.

Numa visão bem estereotipada da mulher, aqui estão tentando revalorizar o trabalho doméstico ligando a visão de mulher/feminino ao trabalho doméstico não remunerado. O trabalho doméstico é necessário para toda manutenção do sistema capitalista, mas ao invés de ser feito pela sociedade como um todo, garantido pelo Estado, ele é feito pelas mulheres, de forma privada. Para legitimar esta exploração, as mulheres são oprimidas de diversas formas. A que o filme continua a ensinar é a opressão que recai sobre o mito da feminilidade: a autêntica mulher tem que saber cuidar de seu lar, assim como as mães, avós, bisavós, souberam. Faz parte do mito sobre a natureza feminina, que obtemos a “dádiva” para a perpetuação da humanidade através dos cuidados com a família.

A Cinderela se apaixona pelo príncipe sem saber que ele é príncipe. Ela não vê no casamento em si uma ascensão. Mas é o seu trabalho duro que faz dela uma merecedora para se tornar princesa e depois rainha, ou seja, ter súditos para ela nunca mais precisar trabalhar.

Terceiro Passo: Seja caridosa!

No clímax do filme, quando Cinderela questiona à madrasta o porquê de ela ter sido tão má, a madrasta diz: “Por que você é jovem e boa, e eu...” O que sobra é a piedade. A madrasta é má por que tem inveja da juventude e da boa educação que a Cinderela teve. Cinderela então dá uma nova oportunidade a elas, não guardará magoas. Afinal a visão preconceituosa de que ser uma senhora é ruim é bem difundida no filme também. A bondade de Cinderela está atrelada à sua juventude.

E quando se torna rainha, "nunca houve um reino tão justo", como narra sua fada madrinha que conta a história, pois o poder não subiu à cabeça de Cinderela. Ela nunca abandonou seus princípios de ser gentil.

Como dissemos, esta mescla de valores burgueses com cristãos nos dá a moral da história de Cinderela da Disney. Uma personagem chata, no sentido de não ter profundidade, que não representa nada a complexidade das pessoas e das relações no mundo contemporâneo. Um verdadeiro engodo para entreter crianças dentro de seus efeitos especiais bilionários e de seu ideal sobre a família burguesa.

Uma mulher em três

Cinderela, a heroína, é uma menina obediente, trabalhadora e caridosa. A madrasta é invejosa, manipuladora e má, suas filhas são mal-educadas e grosseiras, contrastando com a Cinderela, que teve uma boa mãe. Sobra a fada-madrinha, a única mulher assexualizada do conto. Ela é uma senhora, mas é bem resolvida. Não é boa ou má, mas irreverente, tem uma certa profundidade que não encontramos nas outras personagens. O que podemos entender por isto? No fundo, que as três são uma só. Que temos sim em nossa educação os valores cristãos de "bondade", mas que num mundo desigual se agregam outros valores, os da "maldade", juntando isso temos o poder de decisão de mudança e de transformação, o que caracteriza a fada madrinha, apontando que não é pela busca de uma sexualidade feminina que tomamos decisões.

Mas, para os estúdios Disney, não é interessante reelaborar uma história que rende milhões e em que a ascensão da mulher está ligada ao encontro com um homem para construirem uma família. Cabe a nós agora refletirmos porque esta história ainda vende tanto? Se olharmos para a Cinderela só como uma ascensão por via do casamento é uma forma muito simplificada de analisar a história, pois, nas técnicas literárias podemos usar alegorias, metáforas e outras figuras de linguagem que nossa imaginação permita para transmitir valores. É uma história de ascensão feminina. Até hoje nos toca pois se trata das dificuldades de uma mulher para se tornar independente. A mulher não precisa casar para ser independente, embora os salários baixos muitas vezes obriguem a uma união.

Reelaborar a história da Cinderela com as complexidades das mulheres de hoje, com certeza, não acabaria num casamento, mas em questões ligadas a desigualdades, opressões e machismo.


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Cinema    Cultura



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