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SEMANÁRIO

Chile e Brasil: as semelhanças que atormentam Paulo Guedes e Bolsonaro

Francisco Marques

Ilustração de Alexandre Miguez

Chile e Brasil: as semelhanças que atormentam Paulo Guedes e Bolsonaro

Francisco Marques

O país que era tomado como exemplo para as classes dominantes em toda a América Latina transformou-se, na última semana, em um símbolo de revolta que feriu de morte o modelo de capitalismo neoliberal mais radical do subcontinente.

Paulo Guedes não só considera o Chile um exemplo como foi ele próprio estudar na Faculdade de Economia e Negócios da Universidade do Chile durante a ditadura militar, para conhecer de perto como os Chicago Boys colocavam em prática o mais radical neoliberalismo, com o indispensável auxílio dos fuzis de Pinochet para esmagar qualquer resistência de operários, estudantes e indígenas, matando mais de 3.000 pessoas e prendendo mais de 30.000 em 17 anos de ditadura.

O país que Guedes havia chegado a chamar de “Suíça da América Latina” agora se tornou um exemplo ao contrário para a extrema direita e os liberais. Bolsonaro é obrigado a declarar que o que acontece no Chile é “terrorismo”, mais um complô do (inexistente) Foro de São Paulo. E ameaçar que no Brasil as Forças Armadas estão a postos para reprimir movimento semelhante.

Mas não à toa as cabeças de Guedes e Bolsonaro estão atormentadas. As semelhanças entre o que é o Chile e para onde caminha o Brasil são evidentes. O modelo implementado a partir do golpe de 1973 no Chile é o sonho das burguesias latino-americanas e dos chefes imperialistas, e exemplo, até então, constantemente defendido por Guedes, Bolsonaro, Macri e toda direita regional. Crescimento sustentado do PIB, privatização completa da economia e dos direitos sociais, profundo endividamento da população e alta taxa de exploração do trabalho.

O PIB per capita médio de 25.000 dólares ao ano, o maior da América Latina, se reverteu nos maiores lucros para os capitalistas, e não em melhor qualidade de vida para a população. Saúde e educação são mercadorias às quais só tem acesso quem pode pagar. Assim como a água, a luz e a telefonia. O preço dos imóveis para aluguel e compra cresceu 150% na última década. E o transporte, estopim para os protestos estudantis que iniciaram o movimento, é o segundo maior gasto das famílias.

Assim, o salário e o nível de vida supostamente altos são corroídos por diversos serviços que no Brasil a população mais pobre acessa gratuitamente, ainda que de forma precária, como saúde e educação. Direitos que o governo Bolsonaro quer transformar em mercadoria, privatizando as universidades e o SUS.

Talvez o ponto de encontro mais importante entre as duas realidades seja o sistema previdenciário. Os aposentados ganham no Chile valores em média 30% abaixo do salário mínimo, resultando na mais alta taxa de suicídios de idosos na América Latina. No Brasil, na última semana foi aprovada por fim uma Reforma da Previdência impopular que fará a maior parte da população morrer sem nunca se aposentar e reduzir os valores pagos pela previdência pública.

A agressiva mercantilização da educação e da previdência no Chile fez surgir um imenso movimento estudantil que luta por educação gratuita – nas mainfestações de 2006 e novamente em 2011 – e mais recentemente o movimento “NO+AFP” que luta contra o atual sistema de previdência privada.

A realidade da revolta que incendiou o Chile parece anunciar um futuro turbulento para o Brasil. São dois dos países latino-americanos mais desiguais. Segundo dados do Banco Mundial e do World Inequality Database, em 2015 no Chile, o 1% da população detinha 23,7% da renda, enquanto os 40% mais pobres recebiam 14,4%. No Brasil, 1% detinha 28,3%, e os 40% ficam com 10,6% da renda nacional. Um absurdo naturalizado pelas elites e desnaturalizado pelas massas chilenas nas ruas, que fizeram o cínico e bilionário presidente Piñera dizer que “escutou que os chilenos pedem um Chile mais justo e solidário”.

A defesa do exemplo chileno em meio à crise

Apesar da admiração confessa pelo vizinho andino, foi só após 2016 que a burguesia brasileira decidiu avançar com o golpe institucional e começar o desmonte da Constituição de 1988, para construir seu neoliberalismo radical para o Brasil, processo que teve sua continuidade com as eleições fraudadas e manipuladas de 2018 e a eleição de Bolsonaro.

A defesa do “modelo chileno” em meio à crise não tem nenhuma relação com a busca de desenvolvimento para o conjunto da sociedade ou de retomada do crescimento. É em primeiro lugar parte da batalha da classe dominante do Brasil para descarregar a crise nas costas dos trabalhadores e do povo pobre, com o aumento da desigualdade e da pobreza.

Enquanto os principais economistas do mundo anunciam uma nova recessão mundial para 2020 e as economias não conseguiram ainda retomar um crescimento sustentado, as burguesias se veem cada vez mais forçadas a atacar direitos sociais, privatizar o que ainda não foi privatizado e destruir direitos trabalhistas para manter as taxas de lucro.

Não à toa um governo eleito como progressista e pós-neoliberal em 2017, como Lenín Moreno no Equador, terminou 2019 buscando impor com sangrenta repressão um plano de ajustes do FMI, que terminou derrotado nas ruas por uma rebelião popular semelhante à chilena. A margens para a administração do capitalismo atrasado da América Latina se tornam cada vez mais estreitas.

Em auxílio dos planos cada vez mais impopulares cresce o autoritarismo dos governos na nossa região e no mundo. Nos primeiros dias de manifestações Piñera chegou a afirmar que “estavam em guerra” contra os manifestantes, antes de pedir desculpas e apostar na demagogia. Tanto no Chile como no Brasil a nova (e em geral extrema) direita se apoia na herança das ditaduras para melhor perseguir, reprimir e torturar.

O ódio da juventude chilena aos militares e à polícia, o repúdio ao governo de Piñera e às instituições do regime mostram a identificação entre a revolta contra as condições de vida e o combate ao regime herdeiro da ditadura. Essa radicalidade mostrou novamente e fez se aprofundar ainda mais o questionamento ao regime erguido pela oposição da Concertação em acordo com Pinochet e com os militares desde 1990, em que nas últimas eleições mais de metade da população não foi às urnas.

Se no Brasil a transição pactuada com os militares conquistou alguns direitos sociais inscritos na Constituição de 1988, que foram base de um controle maior das mobilizações, junto ao papel histórico cumprido pelo PT e sua influência nas entidades operárias e estudantis, o movimento atual das próprias classes dominantes é romper este pacto em benefício dos grandes empresários, banqueiros e latifundiários, com ajustes, privatizações e contrarreformas, com o aprofundamento da violência do Estado e a restrição de direitos democráticos. Não à toa Guedes e Bolsonaro se espelham não somente no neoliberalismo, mas também na ditadura militar assassina de Pinochet.

Se no Chile as manifestações de rua conseguiram o que a centro-esquerda parlamentar e reformista não ousou em 30 anos, fraturando as bases do neoliberalismo nascido sob as botas da ditadura pinochetista, em breve certamente será a vez dos brasileiros colocarem contra a parede Guedes e Bolsonaro.


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Francisco Marques

Professor da rede estadual de Minas Gerais
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