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CARTA ABERTA | Carta aberta da agrupação de negros Quilombo Vermelho à advogada Valéria Lucia dos Santos

Veja aqui a carta aberta da agrupação de negros e negras, Quilombo Vermelho, para a advogada Valéria Lucia dos Santos, que foi vitima de um ataque racista brutal da polícia durante uma audiência que participava.

Marcello Pablito Trabalhador da USP e membro da Secretaria de Negras, Negros e Combate ao Racismo do Sintusp.

sexta-feira 14 de setembro de 2018 | Edição do dia

Cara Valéria,

Assistimos com imensa indignação as absurdas imagens em que policiais lhe algemaram em pleno tribunal durante o exercício de seu trabalho como advogada de defesa. A violência contida nesse ato é de fazer ferver o sangue de qualquer negro, de todos nós que sentimos na pele a cada dia o peso do racismo do Estado e de cada uma de suas instituições. Um Estado formado sob o sangue e suor de milhões de negros escravizados, que sequestrou, assassinou, matou nossos irmãos por séculos, e que hoje segue se mantendo sob os pilares desse racismo, tão evidentemente representado no judiciário e no episódio em que te algemaram no tribunal simplesmente porque você se recusou a abaixar a cabeça e exigiu o direito de exercer seu trabalho.

Em meio a toda a nossa raiva, sentimos também orgulho, pois cada um de nós se sentiu representado por sua voz ao se levantar e dizer que não aceitaria a arbitrariedade da juíza leiga, e que não se calaria, não se resignaria diante do escandaloso racismo que queria lhe colocar uma mordaça. Nós não nos calamos também, e junto com sua voz gritamos contra o racismo desse judiciário, que não admite ver uma mulher negra advogando, dentro desse sistema onde para eles só nos cabe o banco dos réus – isso quando temos direito a julgamento.

A uma advogada negra, eles querem impor o silêncio e, se sua voz se levanta indignada, algemas. Isso é mais uma faceta da violência que é imposta cotidianamente a todos os negros, que são a imensa maioria dos assassinados pelas balas da polícia em cada periferia, morro e favela; são a maioria dos detidos em cada presídio – 40% sem sequer ter acesso a um julgamento – a quem o capitalismo e o Estado, por meio de sua polícia e seu judiciário, quer reservar o fardo mais pesado, sempre.

Por isso, as algemas que colocam em você se destinam aos punhos de todos os negros, como mais um exemplo de que esse judiciário racista – como porta voz desse Estado capitalista – está destinado a uma e outra vez utilizar todos seus instrumentos para tentar nos submeter e nos manter sob o chicote dos atuais senhores de engenho, de quem eles não são mais do que os capatazes e capitães do mato.

E por isso também a sua voz que grita “é meu direito como mulher, como negra, é trabalhar” é uma voz que tomamos como nossa e ao lado da qual nos postamos firmemente. As mulheres negras, que além do fardo do racismo ainda sentem sobre seus ombros o brutal peso do machismo, recebem salários em média 60% menores que os dos brancos. Sofrem mais com cada ataque aos direitos dos trabalhadores, e ocupam os postos mais precarizados de trabalho, como terceirizadas da limpeza, empregadas domésticas, entre outros.

Essa realidade salarial é a comprovação de como o racismo é funcional para os lucros capitalistas hoje em dia tanto quanto foi para a acumulação capitalista dos séculos XVI a XVIII. A tentativa de calar sua voz é também mais uma forma de quererem impor que essa multidão de mulheres negras siga suportando a opressão e a exploração que lhes atinge historicamente. Por isso, a sua denúncia do racismo do Estado e do judiciário é também a voz delas.

O capitalismo nos impõe a cada dia uma realidade em que a vida dos negros não vale nada, e infelizmente isso é algo presente na sua vida, como pudemos ver com o relato do trágico assassinato de seus dois irmãos em Mesquita, e como essa barbárie fez você tomar a dura decisão de viver longe de seus filhos.

As mães negras, como a do jovem Marcos Vinicius, de 14 anos, morto em junho na Maré pelas balas da polícia, são as que mais perdem seus filhos assassinados, ou que os veem ser presos injustamente – como no caso de Rafael Braga – pelas mãos desse mesmo Estado racista. Por isso, a sua voz que se levanta é também a voz delas.

É também a voz de Marielle, brutalmente assassinada por denunciar a intervenção federal que mata os negros, e cuja morte segue há seis meses sem explicação, pois para eles não há interesse algum em punir os culpados.

Por isso queremos lhe dizer que a sua voz, que bravamente se ergue contra o Estado racista, é a nossa voz, e que queremos que essa voz seja cada vez mais forte e ocupe as fábricas, as escolas, as universidades, e que possa ser um movimento poderoso e real contra o racismo e o capitalismo, uma luta que só pode se dar de forma independente, sem nenhuma confiança nos partidos burgueses que ou fazem demagogia com nossa luta ou destilam ódio contra nossa identidade e história, com representantes bárbaros como Bolsonaro. Conte conosco a seu lado para denunciar e lutar a cada dia contra o racismo desse judiciário e desse Estado.

Marcello Pablito, candidato a deputado estadual do MRT pelo PSOL em São Paulo.

Quilombo Vermelho - Luta Negra Anticapitalista




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