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DEBATE - TEORIA | Bonapartismo de toga

Apontamentos sobre o bonapartismo judicial na América Latina. Um pouco de história e um debate classico entre Kelsen e Schmitt buscando entender a realidade das gelatinosas democracias capitalistas na região.

Matías MaielloBuenos Aires

terça-feira 28 de agosto de 2018 | Edição do dia

O caso dos cadernos de Oscar Centeno não só coloca sobre a mesa, na forma de operação política, a ampla trama de corrupção endêmica do Estado capitalista, como também uma tendência muito atual na América Latina: o crescente protagonismo do Poder Judiciário no interior dos regimes políticos. 

Esse fenômeno tem sua expressão paradigmática no Brasil e na operação Lava Jato, com seu condutor, Sérgio Moro (inspirado na Mãos Limpas italiana), e em todas as instâncias judiciais, desde o Superior Tribunal Federal (STF) até Tribunal Superior Eleitoral (TSE). O Poder Judiciário soube como vetar sem fundamentos a nomeação de Lula como ministro em 2015, colaborou com o golpe institucional que tirou Dilma Rousseff do poder, e atualmente mantém Lula preso, em um caso muito fraco de documentos, e que tem tudo indicando que o mesmo será impedido de participar das próximas eleições.

Entre as características mais destacadas desse tipo de ação judicial estão: a) o avanço contra os direitos democráticos elementares, que se normalmente é a regra contra o povo trabalhador, neste caso se utilizam para resolver disputas intraburguesas (mecanismos como a delação premiada, prisões sem condenação, escutas ilegais, etc.); b) uma azeitada articulação entre o Poder Judiciário, polícia, serviços de inteligência e meios massivos de comunicação; c) o papel central de juízes e fiscais que são treinados diretamente nos “cursos” do Departamento de Estado norte-americano; d) o direcionamento aberto dos casos – além daqueles que pareçam envolvidos num primeiro momento – até determinados atores políticos e econômicos – excluindo sempre os que negociam com empresas imperialistas.

Várias dessas características, em um contexto diferente, podemos perceber hoje na Argentina.

Tendências bonapartistas e casta judiciária

Atualmente a "arbitrariedade" judiciária em geral e dos "golpes institucionais" em particular parecem querer imitar de algum modo um papel de tutela política dos "partidos militares" que foram característicos na região. Podemos falar de uma espécie de "bonapartismo judiciário". Mas em que sentido?

Se abordamos a questão superficialmente em termos de "divisão de poderes", as tendências bonapartistas pareceriam associadas exclusivamente ao Poder Executivo. Porém, não devemos perder de vista que a suposta "lei eterna", como ironizava Marx, da divisão dos poderes forma parte de um sistema de engrenagens dentro das repúblicas burguesas para garantir a eficácia da dominação sobre as grandes maiorias. E sobretudo, que a categoria de "bonapartismo" no marxismo não se refere somente ao governo, mas também ao regime político.

Leon Trotski assinalava que em sua definição mais geral, o bonapartismo busca se elevar por cima dos campos em luta para preservar a propriedade capitalista e impor a ordem, e agregava ainda, "elimina a guerra civil, ou se sobrepõe a ela, ou impede que volte a acender-se". Contudo, o "bonapartismo judiciário" que estamos tentando definir não se refere a um regime bonapartista plenamente formado, senão ao desenvolvimento de tendências ao bonapartismo mais ou menos inscritas dentro dos regimes democrático-burgueses. Mas tampouco se trata de tendências isoladas, e sim de um período de incubação de regimes mais bonapartistas e crises da democracia capitalista.

Nos últimos anos, o "ciclo virtuoso" econômico que serviu de marco para os chamados governos "pós-neoliberais" (de desvio ou prevenção ao ciclo de levantes do principio do século XXI) trocou de sentido claramente. Ficaram mais estreitas as bases para a hegemonia burguesa - que como dizia Gramsci "se é ético-política, não pode não ser também econômica" - dando lugar ao desenvolvimento de elementos de crise orgânica em vários países da região. Se trata de um terreno fértil para a polarização social, como expressa o exemplo do Brasil, com a ascensão eleitoral do ex-militar da extrema-direita, Jair Bolsonaro.

Esse cenário de crise impulsiona uma maior presença de tendências bonapartistas. Dentro delas sua expressão atual ao redor do poder judiciário responde tanto ao baixo nível de luta de classes que ainda existe na região como ao peso que adquiriram as ilusões na democracia capitalista nas últimas décadas. Cabe lembrar que o fenômeno de regimes democrático burgueses relativamente estáveis em muitos países da América Latina desde os anos 80 do século passado constituem uma verdadeira novidade histórica.

Entre Kelsen e Schmitt

Neste cenário, o poder judiciário assume a dupla tarefa de desenvolver tendências bonapartistas e apresentar-se, ao mesmo tempo, como suposto garantidor do "estado de direito". Uma articulação difícil a partir do próprio discurso jurídico burguês. Há pouco menos de um século, dois dos principais juristas burgueses do século XX, o alemão Carl Schmitt e o austríaco Hans Kelsen cruzaram espadas sobre esse tema na clássica polêmica sobre quem deveria ser "o guardião" da constituição.
O cenário de fundo do debate era paradigmático do ponto de vista da polarização social e política. Nos referimos à crise da república de Weimar. Por volta de 1931, o afundar da coalizão social-democrata na Alemanha trouxe a ascensão do chanceler Heinrich Brüning, que governava através de regulamentos presidenciais. Schmitt, teórico do "estado de exceção", que soube defender Brüning no momento conveniente, publicará então naquele ano “O Guardião da Constituição”, um argumento a favor do bonapartismo através da figura do presidente do Reich. Kelsen, teórico da superioridade da "norma fundadora", lhe vai em cruzamento com seu trabalho "Quem deve ser o guardião da Constituição?", onde sustenta que essa tarefa deve recair sobre um órgão jurisdicional (Tribunal Constitucional).

Ambos os autores, por motivos diversos, excluem como possíveis “guardiões da constituição” o próprio parlamento. Para Kelsen, aquele órgão jurisdicional, situado por cima dos enfrentamentos políticos cada vez mais agudos que ameaçavam a democracia burguesa, era o que podia garantir a coerência de ação entre o parlamento e o Estado com a Constituição, por cima dos interesses em disputa. Para Schmitt, o problema não era a polarização política e sim a própria democracia e o parlamentarismo mesmo com suas maiorias instáveis que impossibilitavam a ação governamental. O presidente era quem podia garantir a unidade do Estado, no tanto que era ele quem decidia sobre o “estado de exceção”, sobre a suspensão de direitos constitucionais para garantir a ordem.

Entre os muitos argumentos, que seria impossível esgotar nessas linhas, Kelsen rechaçava Schmitt em toda sua interpretação de fortalecer os poderes do presidente como guardião da constituição teria mais a ver com uma ditadura, e não se equivocava. Schmitt, por sua parte, considerava que a batalha de Kelsen podia derivar em um poder dos juízes que os transformasse em árbitros políticos, e ele tampouco estava equivocado. Mas uma das diferenças fundamentais entre ambos os enfoques, era que enquanto Schmitt estava pensando a partir de situações críticas para a dominação burguesa, Kelsen o fazia a partir do pressuposto do funcionamento mais ou menos “normal” das suas instituições permitindo conter em seus marcos os interesses de classe enfrentados.

Se tivéssemos que situar naqueles termos o "bonapartismo judiciário" que estamos analisando o encontraríamos em algum lugar instável no meio entre a normatividade de Kelsen e a exceção de Schmitt. O modelo - tomando o caso brasileiro - seria uma casta judiciária que se propõe como garantidora da legalidade burguesa ao mesmo tempo em que a viola para chegar aos seus fins. Um Poder Judiciário que se propõe, em nome do "Estado de Direito", assumir boa parte das tendências bonapartistas do regime necessárias para superar os elementos de crise política e econômica. Uma intenção de judicializar cada vez mais a anunciada luta de interesses para conter-la dentro da ordem burguesa.

Exceção e norma na periferia

Chegado a esse ponto, é pertinente nos perguntarmos de onde pode tirar sua força, nessas latitudes, o poder judiciário - ou um setor do mesmo - para chegar a cumprir um papel tão destacado dentro do regime. É um feito que na região, teve especial influência o modelo norte-americano, mais difuso, onde a ampla casta judiciária se transforma em "guardiã da Constituição", diferentemente do modelo kelseniano de um Tribunal Constitucional único. Porém, para responder a nossa pergunta é necessário nos introduzirmos no mapa de forças sociais da periferia capitalista. 

Trotski assinalava que: "nos países industrialmente atrasados o capital estrangeiro tem um papel decisivo. Daí a relativa debilidade da burguesia nacional em relação ao proletariado nacional. Isso cria condições especiais de poder estatal". Com esse esquema analisava as características "sui generis" do bonapartismo na periferia. Os considerava bonapartismos sui generis "de esquerda" quando se apoiavam no movimento operário regulamentado para barganhar com o imperialismo (Cárdenas no México, ou Perón na Argentina, por exemplo). Enquanto o papel decisivo do Imperialismo era um componente essencial na constituição de bonapartismos de direita contra os trabalhadores, como os constantes golpes militares que atravessaram a América Latina.

Contudo, apesar da generalização e relativa estabilização dos regimes democráticos burgueses na região, aquela configuração de forças de classe no cenário nacional segue se traduzindo, com maiores mediações segundo cada caso, em "condições especiais de poder estatal". O papel decisivo do capital estrangeiro é fundamental para entender a capacidade de arbitragem do Poder Judiciário em uma situação como a atual onde o imperialismo norte-americano retomou uma agenda mais agressiva com a América Latina. Vendo o caso do Brasil, com a tentativa de remodelação do regime político - de resultado ainda incerto -, com o disciplinamento das chamadas "global players", o avanço sobre a Petrobras, o ataque aos setores da tecnologia de ponta, etc., não é aventureiro dizer, que um setor do imperialismo norte-americano busca constituir o bonapartismo judiciário como uma via de ingerência para impor seus interesses.

Dito isso, é importante ressaltar o papel essencial das forças repressivas no bonapartismo judiciário. Não tanto das forças armadas (ainda que militares brasileiros não se privaram de pressionar publicamente o poder judiciário para que prendesse Lula), e sim de um emaranhado de forças policiais e serviços de inteligência. No exemplo do Brasil, a Polícia Federal foi o principal braço armado da Lava-jato. Porém, seria uma ideia equivocada pensar que o bonapartismo judiciário substitui os bonapartismos de direita baseados diretamente em forças militares e no aparato repressivo em geral. Essas alternativas, ou inclusive determinadas combinações de ambas, estão indissoluvelmente ligadas ao nível de desenvolvimento da luta de classes, que na atualidade ainda é relativamente baixo e não parece justificar variantes mais radicais.

O bonapartismo de toga é uma via para fortalecer “por cima” - tentando conjurar o desenvolvimento da luta de classes - os interesses capitalistas contra o povo trabalhador, e dentro das classes dominantes, do imperialismo norte-americano frente a determinados grupos capitalistas locais, assim como também contra o avanço de competidores (em especial da China cuja inserção na região deu um enorme salto na última década). Uma arbitragem muito mais bonapartista que o imaginado por Kelsen na hora de pensar o papel de seu tribunal e com aspectos que se tocam com o “estado de exceção” que teoriza Schmitt. Uma combinação "sui generis" especialmente funcional aqui, onde o peso do capital estrangeiro é determinante.

Corrupção e democracia capitalista

O bonapartismo judiciário não é plebiscitário a la Schmitt mas tenta atuar coordenadamente com os grandes meios de comunicação de massas sobre a opinião pública para legitimar suas ações com as grandes entradas em cena das prisões, dos vazamentos seletivos; mas sobretudo através de um componente “hegemônico” ligado à “luta contra a corrupção”. A arte de operações como a Lava Jato, onde se abre uma caixa de pandora na qual em princípio aparece implicada grande parte do regime, consiste em direcionar a legítima raiva das massas com a corrupção capitalista contra determinados atores do sistema político e econômico[1].

Porém a corrupção é um elemento indispensável para o funcionamento “normal” do Estado Burguês e da democracia capitalista. Como colocava Engels, há quase 130 anos:

“A forma mais elevada do Estado, a república democrática […] não reconhece oficialmente diferença de riqueza. Nela a riqueza exerce seu poder indiretamente, mas por isso mesmo de um modo mais seguro. De um modo, sob a forma de corrupção direta dos funcionários, do qual a América é um modelo clássico, e, de outro modo, sob a forma de aliança entre o governo e a Bolsa.”

Ou seja, a corrupção é chave para preencher o hiato que existe entre o discurso oficial do Estado como representante do “interesse geral” e sua realidade como “balcão de negócios da burguesia”.

Essa corrupção não necessariamente tem que ser por definição “ilegal”. Por exemplo, nos EUA uma parte da corrupção está legalizada através do chamado lobby, com o qual as corporações oferecem dinheiro em troca de favores, tráfico de influências, ou acesso a determinadas esferas para fazer negócios. O financiamento das campanhas eleitorais é essencialmente privado, e não falamos de moedas, e sim de campanhas que de conjuntos chegam a somar alguns milhões de dólares. Desde já, esse modelo Aranguren dos CEO – nesse caso a Shell – que passam a controlar determinados ramos da administração pública para beneficiar suas empresas em moeda corrente.

A equação entre corrupção legal e ilegal é particular segundo cada Estado. Não casualmente nos países imperialistas com Estados e regimes democrático burgueses mais sólidos, a corrupção tende a se legalizar e regular, sem excluir a outra, é claro. Nos países semicoloniais ou com traços semicoloniais, a proporção normalmente pode ser inversa. A diferença é que a propina em vez de ser depositada em contas bancárias controladas legalmente deve ser entregue em malas com moeda estrangeira [2].

Guardiões da Constituição

Se bem nas democracias burguesas os trabalhadores e o povo votam em um governo a cada quatro, seis ou quantos anos a lei determine, os capitalistas, como normalmente se diz, “votam todos os dias”. A corrupção não é mais que o mecanismo mediante o qual a burguesia impõe cotidianamente o voto de censura que a lei não pode reconhecer por questões de decoro. E nesse terreno não há diferenças substanciais entre os governos dos CEOs [como Macri] ou os “nacionais e populares” [como os kirchneristas], é o método que pressupõe a gestão “normal” do Estado capitalista, e que não por isso os torna menos responsáveis por ter montado as negociações. O que mostra é que são os trabalhadores, por exemplo, quem tem que controlar as obras públicas, e mais em geral, que a erradicação da corrupção estrutural do capitalismo tem a ver com terminar com esse sistema de exploração e opressão.

Frente a isso, aqueles na esquerda que se iludem com a ideia de “Lava Jato até o final” para terminar com a corrupção capitalista terão que seguir esperando por tempo indefinido, enquanto o bonapartismo judiciário avança em suas tentativas de tutelar o regime político e cercear direitos democráticos elementares das massas. Ao contrário, nós que lutamos por uma democracia infinitamente superior à mais democrática das repúblicas burguesas, uma democracia de conselhos de trabalhadores, sabemos que essa perspectiva se define também, palmo a palmo, na batalha contra as tendências bonapartistas e na defesa de cada direito democrático que se pretenda liquidar, porque d o que se trata, frente a todos os “guardiões da constituição”, é de desenvolver o “poder constituinte” da classe trabalhadora.

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Veja aqui todas as notas desse artigo

NOTAS DE RODAPÉ

[1] No caso do Brasil, concentrando-se no PT e nas chamadas global players e fazendo vista grossa sobre o PMDB e PSDB assim como sobre as negociatas das multinacionais imperialistas. Os cadernos de Centeno no nosso país [Argentina] parecem seguir uma trajetória similar.

[2] De fato, Macri tem seu projeto de lei para legalizar parte da corrupção através da eliminação de proibição de que as empresas aportem para as campanhas eleitorais para não ter que apresentar seu financiamento com largos contribuidores tirados das planilhas da ANSES.

Tradução: Rafael Barros




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