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Bolívia: entre o golpe de Estado e a resistência popular

Javo Ferreira, La Paz

Bolívia: entre o golpe de Estado e a resistência popular

Javo Ferreira, La Paz

O dramático pêndulo da luta de classes na Bolívia

Nesta primeira semana do governo de Jeanine Áñez já são 23 mortos, centenas de feridos e detidos e mais de 700 médicos cubanos deportados, além de dezenas de jornalistas e agências de informação internacionais expulsas do país. A formação de listas de “masistas” [partidários do MAS de Evo Morales NdT] e de gente que não apoia o movimento cívico policial e militar, qualificando-os como “inimigos” constitui um salto qualitativo no giro à direita e repressivo da atual situação.

A consumação do golpe de Estado cívico policial e militar em 10 de novembro na Bolívia, com a renúncia de Evo Morales e a ascensão de Jeanine Áñez como presidenta autoproclamada, avalizada pela OEA e o imperialismo, bem como pelos baluartes da reação no continente, como Bolsonaro, merece uma explicação das forças profundas e estruturais que conduziram a este resultado.

Os últimos acontecimentos na Bolívia vêm sacudindo a opinião pública internacional, particularmente na América Latina, na qual a imagem e a receptividade da figura de Evo Morales contava e conta com altos índices de popularidade, sustentadas por uma situação econômica estável e crescimento estável nos últimos 10 anos que contrasta com a dinâmica do conjunto desta região.

As violentas mudanças na situação e nas relações de força entre as classes e os partidos, entre o oficialismo e a oposição de direita, entre o imperialismo e o país, entre o oriente e o ocidente que foram criadas entre as eleições de 20 de outubro e a consumação do golpe em 10 de novembro não apenas dificultam as análises, mas também colocam sérias interrogações sobre a futura estabilidade da nova ordem ao prenunciar um retorno da luta de classes após uma década de passivização da ação das massas.

Se em 20 de outubro se iniciou um movimento semiespontâneo das classes médias em defesa do voto cidadão perante o que consideravam como uma “escandalosa fraude” atribuída a Morales e ao MAS para impedir o segundo turno, que poderia deixá-lo de fora do palácio frente ao seu rival de centro-direita Carlos Mesa, em poucas horas e dias o movimento foi se radicalizando em suas demandas e em seus métodos de luta incorporando assim diversos setores sociais prejudicados pelo regime de Morales em seus quase 14 anos de governo, o que permitiu que o movimento cívico pudesse acobertar seu profundo caráter reacionário, racista e clerical sob um manto de popularidade.

Já na quarta, 21 de outubro, o Comitê Cívico de Santa Cruz convocou uma paralisação cívica nacional com bloqueio de estradas que foi rapidamente apoiado pelo Comitê Cívico de Potosí (Comcipo) – dirigido por Marco Pumari, que já se encontrava em conflito meses antes das eleições por demandas de caráter regional (lítio) não atendidas pelo governo do MAS – o Comitê Cívico de Oruro e o Comitê Cívico de Sucre – dirigido por Rodrigo Echalar do POR (Partido Operário Revolucionário) – que contribuíram não apenas para fortalecer o movimento dirigido por Camacho de Santa Cruz, mas também para dar uma cobertura “popular” a um movimento cujo centro social e político estava constituído pelos setores mais conservadores e reacionários da sociedade boliviana, como se pôde observar nas diversas manifestações racistas da Resistência Juvenil Cochala ou a União Juvenil Cruzenista, para não falar dessa juventude de La Paz, de classe média branco-mestiça, que recuperou o legado colonial de uma sociedade estruturada racialmente e que nos 14 anos de governo do MAS não foi extinta. O empresariado, e particularmente as câmaras agroindustriais, se somaram ao movimento golpista no último momento deste, até que se tornou evidente que Morales não tinha respaldo algum e sua debilidade era manifesta. O motim policial que começou em Cochabamba rapidamente se espalhou para o restante das guarnições do país, junto à guinada das Forças Armadas, que declararam que não iriam reprimir o “povo” e sugerindo a Evo Morales que renunciasse – declaração que motivou a saudação de Donald Trump – terminou de selar a aliança social e política que hoje governa a Bolívia.

O papel das classes dominantes e do imperialismo

Durante a última década, a evolução do governo do MAS voltou-se a uma crescente integração e assimilação da classe dominante, se despojando paulatinamente de sua composição indígena e popular e avançando na incorporação de personagens sem relação com os movimentos sociais, profissionais e técnicos formados e especializados na administração do Estado. Da mesma forma, a estabilidade econômica e o crescimento alentados pelos altos preços das matérias-primas potencializaram a concepção do MAS de avançar em parceria com empresas privadas e multinacionais e permitiram que setores importantes das classes dominantes realizassem negócios como nunca antes. Entre eles se destacam o setor financeiro e bancário, os importadores – que graças ao câmbio fixo do dólar viram suas atividades crescerem devido a uma política estatal que compreendia a inclusão social como uma capacidade econômica crescente voltada ao consumo – e finalmente o setor agroindustrial e fazendeiro, que desde 2014 obteve vantagens legais e econômicas sem precedentes.

Por que soltaram a mão de Evo Morales se esta situação lhes era favorável? Responder esta pergunta implica ver não apenas o papel do MAS na estabilização econômica e política, mas sim ver também que tipo de relações sociais o MAS construiu com o conjunto das classes sociais do país. Por um lado, sua origem camponesa – cocaleira – e popular, que lhe dotou de força após os grandes levantes nacionais, como a guerra da água, ou a guerra do gás em outubro de 2003, o converteu no partido hegemônico em um cenário no qual todo o sistema de partidos e toda a institucionalidade do regime neoliberal se encontrava destroçado. A profunda desconfiança das classes dominantes, alimentada por uma relação de forças favorável às classes populares protagonistas dos grandes levantes, apenas pôde ser paulatinamente desfeita, em primeiro lugar com os acordos constitucionais de 2008, e depois mediante as concessões econômicas que beneficiaram estes setores.

O esgotamento do boom de preços de matérias-primas determinou uma necessidade cada vez maior de recursos, assim como as dificuldades para satisfazer as demandas corporativas do conjunto dos setores sociais e empresariais, alentando um aumento no extrativismo de matérias-primas – como no caso do lítio em Potosí e sua parceria com uma multinacional alemã – e a extensão da fronteira agrícola para satisfazer as necessidades de terra do empresariado agroindustrial, hoje parte fundamental do golpismo. Evo Morales, em que pese a crescente integração entre o partido governante e o empresariado nacional, nunca pôde ser visto como uma representação política própria do empresariado, sempre foi visto com desconfiança devido às suas origens, sua linguagem “socialista” e antiimperialista e suas veleidades personalistas, e, portanto, a inexistência de algum tipo de controle institucional que tornava imprevisíveis as políticas de Morales em um futuro próximo de crise e de tendências recessivas regionalmente. Esta desconfiança não era suficiente para alentar uma saída golpista, e isso explicava porque o empresariado demorou mais de 15 dias para se pronunciar, fazendo-o quando a debilidade do regime e do governo já eram demasiadamente evidentes.

O bonapartismo de Evo Morales e do MAS alimentaram a oposição de direita

A aprovação da nova Constituição Política de Estado que deu origem ao chamado Estado Plurinacional da Bolívia, sob a base de um acordo entre o MAS e a direita oriental em outubro de 2008, com o objetivo de impedir que a mobilização operária, camponesa, indígena e popular continuasse se desenvolvendo, empurrou Evo Morales e o MAS a terem que avançar na reconstrução do Estado, avançando em suas tendências autoritárias e personalistas de forma crescente. O MAS foi incapaz de permitir a mínima possibilidade de crítica ou de incorporar sugestões ou propostas de diversos setores sociais que não necessariamente se encontravam a princípio em oposição ao seu governo, e avançou cooptando as organizações indígenas, camponesas, operárias ou populares, sem hesitar em dividir as mesmas e criar organizações paralelas sustentadas com os recursos do Estado, sem se importar se estas organizações paralelas contavam com o respaldo de seus afiliados ou bases. Assim, dividiram a CIDOB (Confederação de Povos Indígenas da Bolívia), depois dividiram a CONAMQ (Conselho Nacional de Ayllus e Markas do Qullasuyu), tentaram criar – e em um momento pareceu impossível – uma APDHB paralela, e os sindicatos e operários também foram alvo de paralelismo ou de judicialização dos dirigentes opositores e da destruição de direções sindicais não disciplinadas.

A primeira manifestação dessa evolução se expressou em um feroz ataque à economia operária e popular em dezembro de 2011, com a intenção de impor o chamado gasolinazo, em relação ao qual Morales retrocedeu rapidamente ao constatar a enorme resistência popular que a medida estava gerando. Nesses anos, Evo Morales enfrentou a resistência dos povos indígenas do TIPNIS (Território Indígena e Parque Nacional Isiboro-Sécure) que rechaçavam a construção de uma estrada que cruzasse seus territórios e que recebeu um enorme respaldo popular contra uma política que alentava a colonização e o aprofundamento de uma política extrativista das riquezas dos territórios indígenas. Diversos setores indígenas e povos originários foram empurrados para a oposição após esta luta em defesa do TIPNIS e hoje são parte do bloco social do golpe. A reforma da lei de aposentadorias em junho de 2013 foi imposta sob a base de uma feroz repressão aos trabalhadores assalariados que haviam protagonizado um dos processos de luta mais importantes em anos e que havia dado origem ao efêmero Partido dos Trabalhadores (PT) impulsionado pela COB (Central Operária Boliviana) e o Sindicato dos Mineiros de Huanuni e a Universidade Nacional Século XX de Potosí. O encerramento deste capítulo sob a base da repressão de dirigentes,criminalização de centenas de trabalhadores mineiros e a cooptação e corrupção das camadas altas da burocracia sindical mineira, fabril e petroleira contribuíram para distanciar setores importantes de trabalhadores da base do MAS e alimentar o ódio e ressentimento contra um governo que, apesar de falar em nome dos movimentos sociais, não hesitava em reprimir e perseguir toda forma de crítica ou de oposição política.

Esta política foi empurrando os ex-dirigentes da COB, como Lucio Gonzales ou Guido Mitma, entre muitos outros, bem como a sindicatos inteiros perseguidos pelo governo, a engrossar as fileiras da oposição de direita – alguns dos quais militaram pela empreitada golpista de maneira entusiasta. A COB e os sindicatos se transformaram em correntes de transmissão da política do governo no interior do movimento operário, e os dirigentes atuaram como verdadeiras polícias políticas no interior das empresas e fábricas, aumentando a separação entre as organizações sindicais, profundamente estatizadas, e os trabalhadores de base que não veem em sua central sindical nada além do carreirismo e da corrupção. Sem ver esta acumulação de descontentamento e ódio não é possível entender o papel da COB durante o golpe, sem capacidade alguma de mobilização e se inclinando diretamente ao golpismo ao sugerir também a renúncia de Morales.

O salto qualitativo do bonapartismo de Morales ocorreu após ter deslegitimado o resultado do referendo de 21 de fevereiro de 2016 (21F), do qual saiu como perdedor e mesmo assim impôs uma nova candidatura sobre a base de manobras legais e judiciais. Esta imposição frente a um resultado eleitoral, somadas às denúncias de fraude expressas no 20 de outubro, detonaram a mobilização de toda a oposição, culminando na renúncia de Evo Morales em 10 de novembro.

A política conciliadora do MAS dá força e legitimidade ao golpismo

Frente a este cenário, o MAS de Evo Morales não apenas respondeu tardiamente à ofensiva cívica, policial e militar, mas também contribuiu com a mesma em cada resposta à crise. Assim, ao se generalizar a ideia de fraude eleitoral, a oposição apontou como saída uma auditoria eleitoral feita pela OEA e a exigência de um segundo turno. Esta política, contudo, foi abandonada após o Conselho Nacional da oposição em 31 de outubro ao constatar que o MAS, longe de enfrentar a ingerência da OEA nos assuntos internos, se aliou à esta, preparando sua própria derrota após o informe da auditoria, ainda que sem falar de fraude explicitamente, reafirmou a impossibilidade de validar o resultado eleitoral que outorgava a Morales o triunfo no primeiro turno. A convocatória de Morales para uma nova eleição, após a divulgação do informe e em meio a um contundente motim policial, agravou sua debilidade e alentou o movimento cívico a ir por mais, acelerando o triunfo do golpe já em marcha, com a renúncia de Morales.

A Assembleia Legislativa Plurinacional, controlada pelo MAS com dois terços de sua composição, longe de rechaçar a renúncia de Morales, como já havia acontecido durante o levante de 2005 com Carlos Mesa, e que poderia ter obstaculizado a institucionalização do golpe, obrigando os golpistas a se apoiar diretamente nas Forças Armadas, acabou reconhecendo a posse ilegal de Áñez, limitando sua “resistência” a negociar salvocondutos e sua participação eleitoral no novo regime. Não é preciso dizer que esta política conciliadora e pacificadora dos dirigentes, funcionários e do próprio Evo Morales a partir do México apenas contribuem para desmoralizar e desorganizar as forças que querem resistir ao golpe, prolongando a tensão política, mas deixando amplos setores populares organizarem a resistência “como possam”.

Na segunda-feira, 11 de novembro, de maneira espontânea em geral e contra muitas das diretrizes das mais de 450 assembleias de bairro de El Alto, a população começou uma mobilização crescente contra a direita e pelo respeita à Wiphala, símbolo da luta dos povos indígenas. Demonstrando uma grande autonomia com a autoorganização e alentando a transformação do programa da mobilização, partindo de uma demanda de rechaço ao racismo até a exigência de derrotar o golpe de estado, os trabalhadores e moradores de El Alto começaram a enfrentar o golpe, apesar das direções dos bairros, cooptadas pela gestão da prefeitura de El Alto presidida por Chapetón, da Unidade Nacional, e os esforços de diálogo dos representantes do MAS. Dezenas de milhares se encontram cotidianamente nos conselhos e assembleias que regularmente se dirigem ao centro da cidade de La Paz. A federação campesina das 20 províncias, Túpac Katari, inicou a mobilização rumo à sede do governo, engrossando as colunas com a presença campesina. Os trabalhadores mineiros de Colquiri e Coro Coro foram os primeiros destacamentos operários a se incorporar à resistência junto ao magistério rural. As demonstrações de racismo e as ofensas lançadas por meio da queima da Wiphala estão despertando o gigantesco movimento indígena, tanto no movimento camponês como em setores do movimento operário, como expressa a resistência de El Alto em marcha. Fica a incógnita sobre se a política de desmobilização impulsionada pelo MAS poderá se impor sobre a vontade de luta que já foi expressa, sobretudo pela juventude de El Alto e de setores do movimento camponês como o Chapare ou as 20 províncias.

O governo golpista instável e as tendências a formas de guerra civil continuam em aberto

A enorme polarização provocada, a divisão das organizações de bairro na cidade de El Alto, nos sindicatos e comunidades, a profunda fissura aberta entre as bases e suas organizações sindicais no movimento operário abriram uma situação sumamente instável e contraditória que torna difícil predizer a dinâmica dos acontecimentos futuros. Ainda que a política do MAS se consolide e consiga desativar momentaneamente a mobilização contra o golpe, a relação de forças não está definida claramente em nenhum sentido.

A partir do governo golpista, apresentam a crise atual como uma luta entre o MAS, qualificado como narcotraficante e terrorista, e uma direita que se apresenta como democrática, cívica e limpa de corrupção. Esta imagem, no entanto, é insustentável após a violência estatal desatada com a consumação do golpe as múltiplas manifestações de racismo que emana das instâncias governamentais e cívicas. Por outro lado, nos setores indígenas, camponeses e importantes setores do movimento operário que não intervieram ainda graças ao nefasto papel de suas direções sindicais, em que pese a confusão e desmoralização semeada pelo próprio MAS, a vontade de luta expressa nestes últimos dias traz à luz que a relação de forças mais geral entre as classes sociais estabelecida na década passada durante os levantamentos nacionais não foi revertida substancialmente, e é essa relação de forças mais geral que coloca uma enorme incógnita acerca de qual será a via que a luta de classes imporá para a resolução definitiva da crise política aberta em 20 de outubro e que, longe de se resolver com o golpe, continua se aprofundando.

A urgente necessidade de avançar na organização para derrotar o golpe e a selvagem repressão desatada coloca a necessidade da luta pela constituição de comitês de autodefesa para enfrentar a repressão e garantir a segurança da paralisação de El Alto. Também é fundamental incentivar as diversas formas de auto-organização que se desenvolveram nestes poucos dias na cidade de Al Alto, passando por cima de dirigentes oportunistas e nomeando outros, com formas de deliberação e eleição baseadas na democracia direta. A partir da LOR-CI viemos impulsionando a luta para que o movimento supere seus objetivos condicionados pelos marcos do regime político, afirmando que o pacto de 2008 entre o MAS e a oposição da meia lua de então já entrou em crise, e portanto é necessário reabrir o processo constituinte para impor uma verdadeira Assembleia Constituinte Livre e Soberana para que sejam os trabalhadores do campo e da cidade, os povos indígenas, o movimento de mulheres e outros que discutam e decidam livremente que país querem para o futuro, não limitados pelos pactos e acordos que o evomoralismo firmou com os golpistas pelas costas das grandes maiorias nacionais.

Esse equilíbrio contraditório na relação de forças, o surgimento de alas de esquerda com vontade de resistir, para além de uma eventual pacificação, deixam abertas as tendências a uma maior luta de classes e inclusive a possibilidade de que possam se desenvolver diversas formas de guerra civil. Dependerá, em grande medida, de como se localize o movimento indígena diante dos esforços de diálogo de sua direção, bem como o movimento operário após começar o acerto de contas com a burocracia sindical. Para além do fato de se o golpe será capaz de se consolidar devido à participação de diversos setores de trabalhadores no mesmo, ao papel da burocracia sindical e da política de conciliadora do MAS com os golpistas, o certo é que a fenda social e racial voltou a se abrir de maneira profunda. Poderá o governo auto-proclamado de Áñez proscrever o principal partido do país, o MAS, deixando de fora das eleições todo o movimento indígena e camponês? Como reagirão os setores populares perante esta direita que tem vontade de impor todo seu programa? Estas e outras perguntas para o futuro próximo atestam que não se pode descartar que ao calor da resistência se desenvolva uma situação pré-revolucionária ou diretamente revolucionária se as massas conseguem vencer a política de diálogo e negociação, e radicalizam a resistência à violência estatal.


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