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Biscuit: Crônicas de uma aeroviária [Parte 3]

Mateus Castor

Biscuit: Crônicas de uma aeroviária [Parte 3]

Mateus Castor


Mestre dos artesanatos, dos enfeites e panos floridos com sua tinta. Sua arte cobria toda sua casa. Cada móvel tinha uma caixa confeccionada com estampas planejadas, produzidas e coladas pela sua habilidosa mão. Sua criatividade iluminava todo o ambiente doméstico. O jardim em sua sacada mostrava a origem de sua inspiração. As flores, as espécies de plantas que fui incapaz de decorar os nomes, eram cuidadas diariamente. A arte imitava a vida do mesmo jeito que a vida imitava a arte. Vermelho, amarelo, laranja, curvas, pétalas, galhos e folhas entrelaçadas davam vida às flores, cada qual expressava um sentimento. Sem curso, autodidata. Revistas de artesanato e, mais recentemente, vídeos no YouTube. Entrar na sua casa era como visitar uma exposição.

O Biscuit me fascinava. Uma massinha que, diferente da massinha comum, ficava dura, não ressecava, mantinha a cor e o formato. Patinhos amarelos, tartaruguinhas, nós fazíamos de tudo. Da costura, porém, me mantive distante, para mim ela fez fantasias, apertava blusas e fazia a barrinha de calças. Inspirado por sua arte, fazia eu os meus desenhos, não de flores, mas de animais de todo tipo. Pequena empreendedora, eu tinha o seguinte esquema de enriquecer com o trabalho artístico.

  •  Vó, fiz esse desenho aqui para você. Tá 10 reais - uma completa cara de pau, eu apresentava a minha obra de arte com a mesma pachorra que obras de arte são vendidas a preços insanos. Meu desenho era uma girafa bisonha e cômica, montanhas verdes ao fundo, flores com pétalas arredondadas em tamanhos diferentes com uma coisa voando ao fundo.

    Do desenho eu lembro bem, do diálogo, não exatamente. Desde pequenina me prendo a padrões estéticos com facilidade. Recorro às histórias sobre minha infância contadas por ela mesma para mim, quando já trabalhava no aeroporto e tinha largado a faculdade.

  •  Nossa! Mas que lindo! Vou comprar, minha riqueza! - respondeu, com um olhar de admiração, segurando o riso diante da minha malícia inocente em ganhar alguns trocados. Pegava sua pequena bolsinha de onde pegava 20 reais e me dava.
  •  Me fala, que passarinho é esse aqui? - Indagou minha vó, apontando para aquela coisa feia de asas, mas tão fofa, que eu havia desenhado.
  •  É um avião! Um dia eu vou ser pilota e ir ver as girafas na África! - expliquei.

    Tentei também vender os sabonetes que ela fazia. Vendi para minha tia, para o meu pai. Pedi para que falassem para seus amigos sobre o meu novo negócio aos 10 anos de idade. Tentei convencê-la, sentada no seu colo, de que ela deveria abrir uma loja para vender suas artes, eu a ajudaria, com toda certeza. Ela ganharia muito dinheiro.

    Fazia alguns dias que eu não respondia as sequências de figurinhas que ela me mandava no celular. “Bom dia”, “que Deus te abençoe”. Aquele tipo de figurinha que nós, mais jovens, acabamos adotando de maneira irônica e passamos a usar, tornando a ironia somente um meio para a demonstração de simples afeto. Ela era bilíngue, filha de espanhóis, e me mandava figurinhas em espanhol. Assistia também suas novelas em espanhol. Em uma manhã, caminhava a passos rápidos até o ponto de ônibus, procurando nos bolsos a máscara que havia sempre temia esquecer. Reparei nas flores que escapavam dos muros envelhecidos de um terreno baldio. Mandei figurinhas para minha vó. “Buenos Días”.

    As partículas de pó

    Bom dia, mãe - sussurrei baixinho, com duas malas nas mãos

    Caminhei até a sala, onde minha mãe assistia o jornal. Ao seu lado, meu pai dormia com a boca aberta. Uma faixa de luz entrava pela sala e iluminava as pequenas partículas de poeira que circulam pelo ar de um lado para o outro, aquilo me fazia lembrar que com toda certeza poderia haver outras coisas microscópicas no ambiente daquela casa, que teriam infectado minha família, mais uma vez. Não contei! E não me arrependo! Não faria diferença nenhuma, teria ficado na mesmíssima situação que estou! Tio, avó, velórios virtuais… após o pesadelo, tudo havia se encaminhado.

    Mas aonde a senhorita vai tão cedo? - Perguntou minha mãe, sem dar bom dia.

  •  Você acredita que me ligaram às 6:30 pedindo que eu fosse cobrir as faltas por Covid que estão tendo em Congonhas? Minha amiga trabalha lá, vou passar uns dias na casa dela. A líder afirmou que vão lembrar disso, com certeza quando a Goltam pensar sobre as futuras promoções

    Meus olhos exalavam confiança nas palavras mentirosas que eu proferia. A visão daquela senhora, minha mãe, que tomava seu café no sofá de casa, do meu pai roncando ao seu lado. Aquilo era o fato, mas os resquícios do inferno que vivi naquela noite ainda beliscavam minha consciência. Minha mãe fez um leve bico de surpresa com a boca e ergueu as sobrancelhas.

  •  Que demais, filha! - fez uma pausa e um olhar reflexivo invadiu seu rosto - mas pera… você tá indo literalmente pro ninho do capeta? Pelo amor de Deus…
  •  Mãe, mas tenho que ir trabalhar! Se eu não for, depois vão ficar me dando mais hora-extra, mudando o horário do meu almoço, não deixando eu ir no banheiro…
  •  O bosta, que Deus te proteja - Encerrou a conversa, com aquela combinação que eu amava de juntar merda e Deus na mesma frase. Senti um frio na barriga imenso. Estúpida, como eu era estúpida. Minha mãe também é boa em observar caras e me pergunta.

    - Ficou com medo agora?Ufa, tava preocupada com a tua sanidade.

    Sim… óbvio que tô preocupada, né. Até daqui alguns dias, mãe. Volto em 10.

    10 o que? 10 dias? Puta merda em… Jesus te abençoe.

    Saio de casa, colocando a máscara, que ficou no meu bolso quando fui trocar com a velha e suja que tampou o meu queixo enquanto eu transtornava dormindo. No caminho até o terminal Tietê, sustentando aquela mala pesada nos meus ombros cansados de erguer malas dos outros para colocar na esteira, imagino flutuando na sala uma outra companhia ao pó, algo ainda menor, entrando nas narinas do meu pai, assim como entrou nas narinas do meu tio. Voltei rapidamente, minha mãe tinha ido ao banheiro e meu pai continuava a roncar no sofá, peguei o patinho na minha prateleira do meu quarto e o guardei no bolso da mala.

    O patinho

    Minha vó estava internada no hospital. Era a segunda onda de Covid, quatro mil, em média, morriam por dia. De um dia para o outro, ela sentiu dificuldade de respirar e acabou nas unidades de terapia semi-intensiva. Não havia vaga nas UTIs. Aquele hospital foi alvo de mais uma matéria típica de carniceiros da Globo, criticavam a presidência, mas pouco falavam do governador. A reforma que reduziu o meu salário e que agora, passado o caos maior, era usado como desculpa para contratar colegas por um salário ainda mais baixo, foi comemorada por Globo, o presidente, o governador e os CEOs da Goltam.

  •  “Não há mais quartos disponíveis e respirados. As condições estão caóticas e esperamos receber os equipamentos necessários” - Falava a enfermeira na reportagem. Assim como eu, ela escondia muito bem o desespero que sentia, não fosse o piscar levemente fora do ritmo do seu olho esquerdo

    Minha vó estava em uma unidade de terapia semi-intensiva em um dos muitos corredores abarrotados. Era proibida a vista. Finalmente, ela respondeu a minha mensagem.

  •  Oi meu Biscuit. A vó t á bem… Te amo beijos!?! - abaixo ela mandou duas figurinhas em espanhol de boa noite. Sua média eram 10 figurinhas.

    Dei um sorriso. Era incapaz de não achar graça daquela maneira de escrever. Imaginei ela, sentada, no seu sofa, enquanto discutiamos sobre sexualidade, gênero, etc.

  •  Você não é sapatona não né, meu benzinho? - indagou minha vó, no dia que ela descobriu que eu era bissexual.
  •  Não Vó, eu gosto de beijar homem e mulher - respondi com extrema naturalidade, sabendo que ela ficaria confusa.
  •  Ah tá, ainda bem… Mas pera Amanda, você sabe que é errado esse negócio de beijar mulher na boca. Você é a princesinha da vovó. Você terminou com aquele teu namorado lá, não foi? Sua mãe me disse - Joguei uma maldição na minha mãe naquele momento, ô mania chata de fofocar as coisas que eu digo só para ela para minha vó e, consequentemente, para todos os graus de parentesco daquela família.
  •  Era mulher vó, era uma menina gostosona - provoquei.

    - Que absurdo. Eu não tenho nada contra, você sabe. Mas é perigoso! Tenho medo de você apanhar na rua, sabe. - Disse isso e outros argumentos claramente homofóbicos enquanto gesticulava abrindo as mãos, esticando bastante os dedos, com a palma da mão voltada para cima.

  •  Você tá sendo homofóbica, vó - Respondi com naturalidade.

    Meses atrás teria lidado com extremo nervosismo com aquela situação, partindo para briga. Utilizei esse método com os meus pais, funcionou, mas a vizinhança inteira descobriu que eu era "sapatona". Nem na fofoca respeitavam minha sexualidade. Logicamente a fofoca chegou na puta que pariu do outro bairro que minha vó mora.

  •  Não to sendo homofóbica. É que hoje em dia tem esses negócio de homem virar mulher, mulher virar homem. A novela espanhola que eu assisto tem uma atriz que era homem e agora virou mulher, a Fiorentina - notei que ela chamou o personagem pelo nome pós transição, fiquei alegre - ela atua muito bem, não consigo saber se ela é homem ou mulher de verdade.
  •  Isso não importa no fundo, né, vó? - Ela assentiu com a cabeça essa minha afirmação feita como pergunta.
  •  Tá, mas não vai ficar beijando menina na rua. É perigoso…
  •  Vó… Você me ama?
  •  Amo. Veja aqui mais essa caixinha que eu pintei….

    Não pude ir ao enterro da minha vó. O limite foi de 5 pessoas, foram 4 que ficaram em volta do caixão e madeira, fornecido pela prefeitura. Na verdade eram 5 contando o coveiro que vestia uma máscara claramente usada muitas vezes, como comentou minha mãe, depois. Fui trabalhar no Check-in da Goltam, após ser chantageada de todas as formas possíveis e questionada se era verdade ou se apenas estava querendo uma folga. Afinal muita gente morria por todo canto e muitos funcionários tinham “faltado” falando que primos do interior morreram de Covid.

    Fui covarde. Fiquei amedrontada e fui ao trabalho naquele dia. Era impensável perder aquele trabalho com todo aquele desemprego, seria uma sentença de fome em um apartamento que já tinha 3 demitidos. Mais tarde, me reuni com toda a família em uma reunião virtual. Rezavam com terços, tive a liberdade de chorar aos soluços segurando o patinho de Biscuit, que apertei com toda minha força.

    Meses depois, era meu tio que partia. Também não fui ao velório. Uma covarde.


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    Mateus Castor

    Cientista Social (USP), professor e estudante de História
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