Vó
Mestre dos artesanatos, dos enfeites e panos floridos com sua tinta. Sua arte cobria toda sua casa. Cada móvel tinha uma caixa confeccionada com estampas planejadas, produzidas e coladas pela sua habilidosa mão. Sua criatividade iluminava todo o ambiente doméstico. O jardim em sua sacada mostrava a origem de sua inspiração. As flores, as espécies de plantas que fui incapaz de decorar os nomes, eram cuidadas diariamente. A arte imitava a vida do mesmo jeito que a vida imitava a arte. Vermelho, amarelo, laranja, curvas, pétalas, galhos e folhas entrelaçadas davam vida às flores, cada qual expressava um sentimento. Sem curso, autodidata. Revistas de artesanato e, mais recentemente, vídeos no YouTube. Entrar na sua casa era como visitar uma exposição.
O Biscuit me fascinava. Uma massinha que, diferente da massinha comum, ficava dura, não ressecava, mantinha a cor e o formato. Patinhos amarelos, tartaruguinhas, nós fazíamos de tudo. Da costura, porém, me mantive distante, para mim ela fez fantasias, apertava blusas e fazia a barrinha de calças. Inspirado por sua arte, fazia eu os meus desenhos, não de flores, mas de animais de todo tipo. Pequena empreendedora, eu tinha o seguinte esquema de enriquecer com o trabalho artístico.
Do desenho eu lembro bem, do diálogo, não exatamente. Desde pequenina me prendo a padrões estéticos com facilidade. Recorro às histórias sobre minha infância contadas por ela mesma para mim, quando já trabalhava no aeroporto e tinha largado a faculdade.
Tentei também vender os sabonetes que ela fazia. Vendi para minha tia, para o meu pai. Pedi para que falassem para seus amigos sobre o meu novo negócio aos 10 anos de idade. Tentei convencê-la, sentada no seu colo, de que ela deveria abrir uma loja para vender suas artes, eu a ajudaria, com toda certeza. Ela ganharia muito dinheiro.
Fazia alguns dias que eu não respondia as sequências de figurinhas que ela me mandava no celular. “Bom dia”, “que Deus te abençoe”. Aquele tipo de figurinha que nós, mais jovens, acabamos adotando de maneira irônica e passamos a usar, tornando a ironia somente um meio para a demonstração de simples afeto. Ela era bilíngue, filha de espanhóis, e me mandava figurinhas em espanhol. Assistia também suas novelas em espanhol. Em uma manhã, caminhava a passos rápidos até o ponto de ônibus, procurando nos bolsos a máscara que havia sempre temia esquecer. Reparei nas flores que escapavam dos muros envelhecidos de um terreno baldio. Mandei figurinhas para minha vó. “Buenos Días”.
As partículas de pó
Bom dia, mãe - sussurrei baixinho, com duas malas nas mãos
Caminhei até a sala, onde minha mãe assistia o jornal. Ao seu lado, meu pai dormia com a boca aberta. Uma faixa de luz entrava pela sala e iluminava as pequenas partículas de poeira que circulam pelo ar de um lado para o outro, aquilo me fazia lembrar que com toda certeza poderia haver outras coisas microscópicas no ambiente daquela casa, que teriam infectado minha família, mais uma vez. Não contei! E não me arrependo! Não faria diferença nenhuma, teria ficado na mesmíssima situação que estou! Tio, avó, velórios virtuais… após o pesadelo, tudo havia se encaminhado.
Mas aonde a senhorita vai tão cedo? - Perguntou minha mãe, sem dar bom dia.
Meus olhos exalavam confiança nas palavras mentirosas que eu proferia. A visão daquela senhora, minha mãe, que tomava seu café no sofá de casa, do meu pai roncando ao seu lado. Aquilo era o fato, mas os resquícios do inferno que vivi naquela noite ainda beliscavam minha consciência. Minha mãe fez um leve bico de surpresa com a boca e ergueu as sobrancelhas.
- Ficou com medo agora?Ufa, tava preocupada com a tua sanidade.
Sim… óbvio que tô preocupada, né. Até daqui alguns dias, mãe. Volto em 10.
10 o que? 10 dias? Puta merda em… Jesus te abençoe.
Saio de casa, colocando a máscara, que ficou no meu bolso quando fui trocar com a velha e suja que tampou o meu queixo enquanto eu transtornava dormindo. No caminho até o terminal Tietê, sustentando aquela mala pesada nos meus ombros cansados de erguer malas dos outros para colocar na esteira, imagino flutuando na sala uma outra companhia ao pó, algo ainda menor, entrando nas narinas do meu pai, assim como entrou nas narinas do meu tio. Voltei rapidamente, minha mãe tinha ido ao banheiro e meu pai continuava a roncar no sofá, peguei o patinho na minha prateleira do meu quarto e o guardei no bolso da mala.
O patinho
Minha vó estava internada no hospital. Era a segunda onda de Covid, quatro mil, em média, morriam por dia. De um dia para o outro, ela sentiu dificuldade de respirar e acabou nas unidades de terapia semi-intensiva. Não havia vaga nas UTIs. Aquele hospital foi alvo de mais uma matéria típica de carniceiros da Globo, criticavam a presidência, mas pouco falavam do governador. A reforma que reduziu o meu salário e que agora, passado o caos maior, era usado como desculpa para contratar colegas por um salário ainda mais baixo, foi comemorada por Globo, o presidente, o governador e os CEOs da Goltam.
Minha vó estava em uma unidade de terapia semi-intensiva em um dos muitos corredores abarrotados. Era proibida a vista. Finalmente, ela respondeu a minha mensagem.
Dei um sorriso. Era incapaz de não achar graça daquela maneira de escrever. Imaginei ela, sentada, no seu sofa, enquanto discutiamos sobre sexualidade, gênero, etc.
- Que absurdo. Eu não tenho nada contra, você sabe. Mas é perigoso! Tenho medo de você apanhar na rua, sabe. - Disse isso e outros argumentos claramente homofóbicos enquanto gesticulava abrindo as mãos, esticando bastante os dedos, com a palma da mão voltada para cima.
Meses atrás teria lidado com extremo nervosismo com aquela situação, partindo para briga. Utilizei esse método com os meus pais, funcionou, mas a vizinhança inteira descobriu que eu era "sapatona". Nem na fofoca respeitavam minha sexualidade. Logicamente a fofoca chegou na puta que pariu do outro bairro que minha vó mora.
Não pude ir ao enterro da minha vó. O limite foi de 5 pessoas, foram 4 que ficaram em volta do caixão e madeira, fornecido pela prefeitura. Na verdade eram 5 contando o coveiro que vestia uma máscara claramente usada muitas vezes, como comentou minha mãe, depois. Fui trabalhar no Check-in da Goltam, após ser chantageada de todas as formas possíveis e questionada se era verdade ou se apenas estava querendo uma folga. Afinal muita gente morria por todo canto e muitos funcionários tinham “faltado” falando que primos do interior morreram de Covid.
Fui covarde. Fiquei amedrontada e fui ao trabalho naquele dia. Era impensável perder aquele trabalho com todo aquele desemprego, seria uma sentença de fome em um apartamento que já tinha 3 demitidos. Mais tarde, me reuni com toda a família em uma reunião virtual. Rezavam com terços, tive a liberdade de chorar aos soluços segurando o patinho de Biscuit, que apertei com toda minha força.
Meses depois, era meu tio que partia. Também não fui ao velório. Uma covarde.
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