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Biden-Harris: conciliação e moderação não vão deter a extrema direita

Joe Biden e a candidata à vice-presidência Kamala Harris fazem questão de não incomodar ninguém, exceto os progressistas. Enquanto isso, a polarização política e os ataques de extrema direita estão aumentando.

sábado 5 de setembro de 2020 | Edição do dia

Em Delaware, onde meses atrás Joe Biden teve sua primeira reunião com líderes do Partido Democrata quando do início da pandemia, Biden e Harris fizeram sua primeira aparição pública como a chapa democrata com chances de vitória. Os discursos de ambos tiveram o objetivo de diferenciá-los de Donald Trump e promover uma reconciliação da dupla democrata em um momento de crise social e polarização política. Os democratas e seus aliados da mídia estão empreendendo uma grande operação para ocultar o histórico de políticas racistas de ambos os candidatos, dando destaque para as críticas que Kamala Harris já fez a Biden no passado, como prova de sua honestidade, varrendo pra debaixo do tapete o histórico dos dois candidatos, no intuito de promover o Partido Democrata capitalista que esteve à frente da repressão brutal ao recente levante popular contra o racismo e a polícia.

Com Kamala Harris na chapa presidencial, o Partido Democrata se apresenta como um embaixador da renovação política, usando a política de identidade para apregoar Harris como uma solução no contexto das mobilizações do movimento Black Lives Matter (BLM) e os terríveis efeitos da pandemia. Aspectos demográficos, como etnicidade e idade, podem ser importantes e influenciar na votação, mesmo em estados onde Trump tem mais apoio popular. A candidatura da ex-promotora de justiça pode criar entusiasmo entre os eleitores negros moderados, especialmente entre latinos e a diáspora caribenha. A crescente impopularidade de Donald Trump, juntamente com o impacto das mobilizações massivas do BLM, mudou a cara da eleição. Junto com a comunidade negra, os latinos também foram afetados de forma desproporcional pela crise do COVID-19, e hoje 2 em cada 3 eleitores de origem latina tendem a votar em Joe Biden. Mesmo quando Donald Trump os culpa pelas mobilizações e acusa os democratas de fazerem parte da “esquerda radical”, a realidade é que os históricos de Harris e Biden são uma garantia de segurança para a polícia e uma garantia para os lucros dos capitalistas.

As críticas à falta de líderes mais jovens no Partido Democrata também podem encontrar resposta no nome de Harris, que, se vencer, poderá concorrer a uma futura presidência em 2024. Nesse sentido, Joe Biden se definiu como “um presidente de transição” para um período de nova liderança. No entanto, a eleição de Harris, que tem laços com a grande burguesia tecnológica do Vale do Silício e ligações com a polícia e o sistema penal como ex-procuradora-geral na Califórnia, é mais uma garantia de lealdade ao establishment do Partido Democrata; ela critica Biden o suficiente para atrair aqueles que não confiam muito no ex-vice-presidente, mas também é moderada o suficiente para agradar os eleitores conservadores que estão procurando uma alternativa a Donald Trump.

A estratégia de campanha do atual presidente consiste em vincular Biden e Harris à esquerda radical, um discurso difícil de sustentar quando a fórmula democrata nem mesmo propõe reformas populares progressistas como o “Medicare para Todos”, nem - como reinvidica um setor muito importante dos protestos anti-racistas - o corte no orçamento bilionário das polícias ou a abolição total da polícia. Os candidatos democratas estão popularizando o slogan “Construindo Melhor Novamente” (“Build Back Better”), principalmente no que se refere a planos de saúde, renda, previdência e educação. No entanto, como já refletem suas propostas de campanha, esses projetos não são nenhum um pouco radicais, ou mesmo progressistas: basicamente propõem o retorno de políticas do governo Obama/Biden. Eles não se propõem a questionar os orçamentos exorbitantes dos departamentos de polícia, nem a fazer mudanças substantivas nos sistemas de educação, saúde e habitação. Em vez disso, eles apenas propõem um retorno ao Obamacare, aos programas de habitação de baixa renda como o questionado sistema de vouchers Seção 8, e não propõem o cancelamento de dívidas de estudantes. O Obamacare não é suficiente como programa de saúde, especialmente em um contexto de pandemia; é na verdade um passo atrás no que milhões de americanos pensam ser a solução, o programa “Medicare para Todos”. Em termos de habitação, há várias críticas sobre como o sistema de vouchers Seção 8 realmente aprofundou o racismo sistêmico, uma vez que tornou as casas em bairro de baixa renda mais lucrativas para os proprietários que recebem remuneração diretamente do estado por meio de vouchers. Seu programa não modifica o sistema educacional profundamente desigual que subfinancia permanentemente as escolas frequentadas por crianças de famílias de baixa renda, especialmente crianças negras (que agora estão expostas a riscos adicionais com a reabertura de escolas).

Amplo apoio, mas que deixa os progressistas para trás

Contra as políticas desastrosas de Trump, o plano Biden-Harris é obter o apoio de todos que se opõem a Trump, desde os manifestantes que pediram o fim da polícia e apoiaram Bernie Sanders, aos republicanos que estão desiludidos com Trump; da classe trabalhadora atingida pelo desemprego e pela pandemia, aos grandes bilionários que não querem ver suas fortunas afetadas pelas políticas erráticas de Trump. Isso foi o que vimos na convenção do Partido Democrata e nos apoiadores de Biden que falaram, desde famílias negras afetadas pela brutalidade policial até bilionários republicanos e supremacistas brancos. Mas com uma crise histórica em curso e as dificuldades da pandemia cada vez maiores, aumento do desemprego e da pobreza, é uma farsa considerar que a classe trabalhadora possa reconstruir o país junto com os capitalistas; na verdade, vai ser uma luta pra ver quem vai pagar as consequências desta enorme crise. Neste sentido, o Partido Democrata se prepara para a tarefa estratégica de reconstruir a legitimidade do partido, e do regime burguês como um todo, em um momento em que a hegemonia política e econômica dos Estados Unidos está sendo questionada no plano internacional, principalmente por causa do papel da China, e num momento em que instituições como a polícia estão sendo denunciadas e combatidas por um movimento antirracista de massa. O Partido Democrata estava completamente dividido antes desta crise, após as manobras do establishment democrata para eliminar Bernie Sanders das primárias; agora, no entanto, todas as principais figuras do partido se alinharam atrás de Joe Biden. Embora o apoio de Barack e Michelle Obama tenha desempenhado um papel importante na transmissão de seu capital político, Joe Biden também é uma figura no Partido Democrata por mérito próprio, com muitos laços com as diferentes alas do partido. Os democratas estão jogando um novo jogo após o desastre de 2016. Muitos dos conselheiros de Biden, que haviam migrado para a campanha de [Hillary] Clinton, agora estão voltando para apoiá-lo e tentando encontrar seu lugar em uma aliança que tem sérias chances de derrotar Trump. Mas as negociações não são suficientes para manter o partido unido e administrar uma crise que mostra uma polarização constante. Apelar para a política de identidade é uma forma de mostrar que algo muda para que nada mude, e uma forma de dialogar com o movimento antirracista sem assumir nenhuma de suas reivindicações. Trump também sabe disso e enfatiza isso em seu discurso antipolítica, o mesmo discurso anti-establishment que o levou à Casa Branca no passado.

A estratégia de se apresentar como uma alternativa a Donald Trump, através da dicotomia entre diálogo e autoritarismo, decência e intolerância, e unidade e divisão, busca mostrar Joe Biden como um candidato empático, capaz de compreender o sofrimento e os problemas do cidadão comum. Tanto Harris quanto Biden falaram dos desempregados, daqueles que sofrem de racismo, daqueles que perderam entes queridos para a pandemia do coronavírus. No evento em Delaware, Harris argumentou que esta eleição é sobre “quem somos como nação”. Esta nova variação de “Fazer EUA Grande Novamente” ("Make America Great Again") - usado por Trump na eleição passada - sob o slogan “Construindo Melhor Novamente” ("Build Back Better") – de Biden-Harris hoje - representa o suposto interesse comum de todos os americanos na reputação e recuperação do país, quando na verdade foram os capitalistas e seus dois partidos que levaram o país para esta crise e planejam continuar despejando as consequências nas costas da classe trabalhadora e dos demais oprimidos. É nesse sentido que estão construindo suas alianças com os setores conservadores. Não é em vão que estão fazendo alianças com setores do Partido Republicano que romperam com Trump e estão focando seu discurso na importância da família e na defesa da fé. Como afirmou a história intitulada “A Cristandade Vai Vencer” publicada no The New York Times, as igrejas evangélicas ainda constituem uma importante base de apoio para Trump, e 70% dos eleitores republicanos evangélicos dizem que votariam nele novamente. É por isso que a Convenção Republicana teve tantos discursos pró-vida (antiaborto), por exemplo. Mas é também por isso que os democratas apelam tão desesperadamente à família americana e constantemente nos lembram que eles são “pessoas de fé”.

As igrejas se beneficiaram política e economicamente do governo Trump, que garantiu que ele as protegeria de possíveis ameaças ao seu modo de agir, ganhando assim o apoio que os democratas desejam disputar. Por esta razão, por exemplo, os democratas traçaram uma plataforma totalmente pró-Israel, rejeitando as posições de progressistas como Sanders ou do Squad, que advogaram pelos direitos da Palestina, porque as igrejas cristãs apoiam fortemente o estado de Israel.
Enquanto a frustação com a crise capitalista e as políticas neoliberais do Partido Democrata levaram à vitória do ultradireitista Trump nas últimas eleições, agora o Partido Democrata quer nos convencer de que o mesmo partido (e a mesma pessoa!) que salvou os bancos e especuladores financeiros na crise de 2008 está do lado do povo. Este argumento apenas fortalece as tendências antipolíticas da extrema direita e desilude ainda mais a classe trabalhadora e os oprimidos que não se sentem identificados com o sistema.

Enquanto medidas progressistas como o “Medicare para Todos” ganharam apoio em massa e são mais importantes do que nunca em uma crise de saúde mundial, os protestos antirracismo abalaram o mundo, e a classe trabalhadora continua a lutar contra o desemprego e a pandemia, a campanha Biden / Harris tenta moderar a raiva e canalizá-la para o Partido Democrata para restaurar a legitimidade do sistema capitalista. É por isso que falam em restaurar a decência à Casa Branca, à figura do presidente e à democracia: para evitar um aprofundamento da crise que poderia levar ao questionamento da desigualdade social e da irracionalidade capitalista, no país onde existem bilionários enquanto milhões não tem lares, empregos ou acesso a cuidados de saúde. Alguns líderes e ativistas progressistas dizem que um governo Biden-Harris tem mais probabilidade de ser sensível à pressão popular. Mas esta é apenas uma tentativa da classe dominante de tentar restabelecer sua hegemonia que está abalada, bem como restabelecer a confiança no sistema político de dois partidos burgueses que agora mostra grandes sinais de tensão.

Até agora, a campanha de Biden e Harris não tem como alvo os setores progressistas ou a juventude; pelo contrário, foram Sanders e os setores progressistas que assumiram voluntariamente a tarefa de angariar apoio para Biden entre esses setores. Os jovens progressistas nasceram na vida política apoiando as figuras que falavam do socialismo, superando o aparato do Partido Democrata. O trabalho de Sanders tem sido atrair e incorporar os elementos de esquerda que ameaçam se voltar contra o sistema de modo mais radical. Quando Sanders renunciou à candidatura durante as primárias do partido, afirmou que já havia uma vitória porque os progressistas haviam conquistado apoio para seu programa e continuariam a lutar por ele. Na sequência, ele também desistiu de seu programa, assinando um endosso de Biden sem incluir quaisquer demandas progressivas. Finalmente, em seu discurso na convenção nacional do Partido Democrata (DNC), Sanders disse simplesmente que ele e Biden discordam em pontos como saúde ou educação, mas que Biden tem planos para melhorar a saúde e a educação. Em outras palavras, ele agora se recusou diretamente até mesmo a falar sobre seu programa, mostrando que Biden não é mais suscetível à pressão da esquerda, mas que a esquerda no Partido Democrata fazia parte do establishment. A rejeição de Donald Trump é mais excitante do que a fraca chapa presidencial democrata: é com isso que os progressistas estão contando para pedir a seus apoiadores que votem em Joe Biden. Alguns na esquerda argumentaram que as pessoas deveriam “se contentar com Biden” - para evitar uma futura administração de Trump que seria muito pior. Esta proposição também é muito perigosa, pois os protestos populares continuam a acontecer e a extrema direita está se organizando. Vimos ataques da supremacia branca e uma polarização crescente. Não é hora de sair das ruas; é hora de enfrentar a direita.

O medo de mais desemprego, o aumento das mortes por COVID, a pobreza e a incerteza são uma pressão para escolher o mal menor, mas os problemas subjacentes continuarão a surgir. A ideia de enfrentar com sucesso a crise atual com as mesmas ferramentas que nos trouxeram até aqui é utópica. Sanders pediu a transformação deste movimento que quer lutar pela classe trabalhadora e pelos oprimidos em um movimento para trazer Biden ao salão presidencial. Mas esse movimento foi formado no calor da desilusão com os capitalistas e a convicção de que uma transformação radical do sistema é necessária. Este movimento não deve se deixar transformar.

O projeto de conquistar a alma do Partido Democrata já provou ser inutilidade. Mas existe um movimento que pode abraçar uma estratégia política para que a classe trabalhadora tenha seu próprio partido. A primeira tarefa para que esta alternativa surja é convencer milhares de que nós, trabalhadores e oprimidos, não temos que apoiar nossos próprios algozes.

Tradução de: https://www.leftvoice.org/biden-harris-conciliation-and-moderation-will-not-stop-the-far-right por Arcelio Benetoli




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