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LITERATURA | "Bartleby", de Melville: "I would prefer not to" - um poderoso repúdio à alienação capitalista

Bartleby, de Herman Melville, é um dos contos mais importantes da literatura dos Estados Unidos.

Sergio MoissenDirigente do MTS e professor da UNAM

terça-feira 22 de agosto de 2017 | Edição do dia

Uma vez escutei que Moby Dick era um tratado de citologia pra ser lido durante uma hospitalização. Ri a gargalhadas porque considerei que as mais de mil páginas podiam ser "chatas" para quem afirma, de maneira irresponsável, que Melville era um cientista além de escritor. Essa afirmação é um grande erro.

Moby Dick é uma genialidade. O Capitão Ahab é o personagem mais obsessivo de toda a história das Letras. Será um exagero? O seu épico e autodestrutivo fascínio por pescar o lendário cachalote o levou a ser a representação da maldade.

Pois bem. Melville escreveu em 1853 um conto entitulado Bartleby, o escrivão (publicado em uma segunda ocasião com pequenas alterações em 1856), uma das críticas mais mordazes à vida cotidiana no capitalismo. Diferentemente de Moby Dick, escassas trinta páginas bastaram para Melville escrever uma ode à insubordinação.

O poder do "acho melhor não"

Seu texto se converteu em um clássico do debate filosófico e despertou uma polêmica entre Giorgio Agamben, Lewis Mumford e Slavj Zizek, antecipada por Gilles Deleuze. Borges assegurou que Melville se antecipou a Kafka. Jacques Derrida e Ranciere também enlouqueceram ao ler a profecia de Wall Street. Negri e M. Hardt não puderam ficar em silêncio.

Leia-o você mesmo e não se deixe levar. Do seu texto se desprendem debates irregulares sobre a justiça, a insubordinação, a revolta, o direito e a alienação. Será impossível não pensar na sua vida cotidiana e nas suas relações humanas.

O conto de Melville é poderoso. Fala da vida de Bartleby, um advogado de Wall Street. Um dia, seu chefe lhe pede para fazer algo e Bartleby lhe responde "I would prefer not to": acho melhor não. Não, o poder de dizer "me insubordino, não quero seguir a minha vida rotineira, quero derrotar as regras e reclamar o direito de discordar: de escolher o que fazer". Depois, o chefe lhe pede mais coisas e Bartleby responde de tempos em tempos: "acho melhor não".

A poderosa mensagem de Bartleby é: não. Escolha outra coisa. O personagem de Bartleby termina na prisão, como um vagabundo e morre de fome. Constitui um enigma: ele é louco? É um esquizofrênico? Tem algum problema? Não. Nenhum, apenas discorda.

Melville relata que "soube depois que quando disseram ao funcionário que ele seria conduzido à prisão é que este não ofereceu a menor resistência. Com seu inalterável comportamento pálido, silenciosamente concordou. Alguns curiosos ou comovidos espectadores se reuniram ao grupo; encabeçada por um dos guardas que segurava o braço de Bartleby, a silenciosa procissão seguiu seu caminho entre todo o ruído, o calor e a felicidade das ruas aturdidas ao meio-dia".

"Preferiria não fazer" é um elogio a insubordinar-se: a optar pela vida dentro do capitalismo. Morre ao escolher, como nenhum outro neste capitalismo dominado pela alienação da vida moderna.

No capitalismo, nos dizem "escolha estudar, seja uma pessoa de bem, tenha um emprego e uma família. Tua sexualidade é normativa. Compre um automóvel, tenha um animal de estimação e um jardim em sua casa. Chegue cedo no trabalho e seja exemplar. Viva uma vida repleta de coisas saudáveis".

Nos tempos de agora, um século depois do potente texto de Melville, o capitalismo diz: "passe os finais de semana vendo Netflix para ter sobre o que conversar no escritório, consiga um bom celular para subir suas fotos no Instagram, viaje e seja vegetariano, busque mais ’likes’, consiga um crédito para pagar um bom carro, o mais rápido, compre roupas das marcas da moda, veja uma superprodução, vá na Black Friday. Baixe os novos aplicativos para estar na moda (Sarahah), coloque filtros nas fotos, mais filtros, mais ’likes’, mais filtros".

Escolha viver para morrer. E todos os dias que seguimos o ritmo dessa vida manal, frívola e alienante: morremos. Morremos, todos os dias.

Agamben disse: "Às vezes, um funcionário de branco retira um anel de dentro de um papel dobrado: o dedo ao qual estava destinado possívelmente se decompõe em um túmulo; ou um bilhete enviado com a caridade mais dedicada: aquele que deveria socorrer já não come nem passa fome; peça perdão por aqueles que morreram desesperados; esperança para aqueles que morreram desesperados; boas novas para aqueles que morreram abatidos pelas calamidades ainda não aliviadas. Com mensagens de vida, estas cartas se precipitam até a morte. Ah, Bartleby! Ah, humanidade!"

Bartleby rechaça o egoísmo, a frivolidade, a exploração e decide tomar, com a poderosa mensagem "acho melhor não", o rumo de sua própria vida. Não é por acaso que toda revolta, rebelião ou revolução começam com um "não". Como diz um poema de Javier Raya: "Uma luta começa assim: discordo". Não é mesmo?

A sociedade futura, a antecipatória, começa com um "acho melhor não" coletivo, um repúdio generalizado à alienação capitalista.

Tradução: André Arruda




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