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OPINIÃO | Bacurau: o Nordeste na vanguarda da luta anti-imperialista

Em um país que produziu originalidades como “Terra em transe” e “Deus e o diabo na Terra do Sol”, o novo longa-metragem de Kléber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, “Bacurau”, entra com toda a certeza no espectro dos filmes nacionais que apresentam uma autêntica brasilidade no conteúdo e na forma, com uma intertextualidade própria que atravessa e dialoga com vários gêneros cinematográficos e uma crítica social de uma arte que sabe ser política sem ser panfletária.

Adriano FavarinMembro do Conselho Diretor de Base do Sintusp

segunda-feira 16 de setembro de 2019 | Edição do dia

Uma crítica anti-imperialista em um mundo de Trump e Bolsonaro

CONTÉM SPOILERS

Embora a ideia inicial do projeto tenha sido concebida há dez anos, partindo da intenção dos Diretores em desconstruir o esteriótipo do sertanejo “ignorante” e “simples”, a partir de uma obra inicialmente pensada como uma distopia, não é possível iniciar uma crítica do filme “Bacurau” sem partir do contexto social no qual ele está sendo estreado nos principais cinemas do Brasil. “Bacurau” retrata, em síntese, o cotidiano e a resistência de um povo, em um pequeno povoado no oeste de Pernambuco, que, mesmo diante das contradições de seus habitantes, se enfrenta unificado contra a tentativa de domínio de um grupo de estrangeiros norte-americanos.

O Brasil acaba de vislumbrar os escândalos da Vaza-Jato, que escancarou ainda mais a já sabida interferência dos EUA pela via da Operação Lava-Jato na política nacional para impor um golpe no país, colocando no governo um presidente ilegítimo que pudesse avançar mais rapidamente nos ataques contra os trabalhadores e na venda da soberania nacional. Em meio a um comum acordo do imperialismo norte-americano com setores do próprio judiciário brasileiro impediu, com uma prisão arbitrária, a candidatura do Lula e abriu caminho para a vitória de um dos governos mais entreguistas - além de misógino, racista, homofóbico e, principalmente, xenófobo com os nordestinos -, como é Bolsonaro.

A resistência de “Bacurau” ao avanço dos interesses imperialistas na região aflora nos espectadores os sentimentos mais profundos de um povo que tem sentido nos últimos anos cada vez mais fortemente a opressão e intervenção imperialista sobre os interesses e recursos nacionais, e que tem as condições de começar a desenvolver uma identidade em torno da resistência anti-imperialista, como já se expressa com força nos demais países da América Latina. “Bacurau” termina sendo, ao mesmo tempo, um alento a esse sentimento internalizado e um manifesto de que é possível resistir, à despeito de toda a desmoralização e todo o ceticismo construído pelas traições das grandes centrais sindicais e pela política de conciliação dos partidos que ainda hoje representam grande parte da população, como o PT e o PCdoB.

Primeira parte: O nordestino é, antes de tudo, um forte

O filme começa com o retorno da personagem Teresa para o povoado de “Bacurau” na boléia de um caminhão-pipa. Logo de início se lê na placa a distância de “17” Km até a cidade. O número não é casual. Durante o trajeto, eles passam por um acidente envolvendo uma morte e um caminhão de caixões. Também observam de longe e desenvolvem um diálogo acerca do domínio de uma grande multinacional sobre os recursos naturais da região, expressando, já aí, um sinal de um enfrentamento latente que o enredo do filme pretende desenvolver: de um lado, um povo oprimido pela seca no sertão nordestino, do outro, os interesses de grandes multinacionais sobre os recursos da região.

Ao chegarem no povoado de “Bacurau”, descobrimos que está ocorrendo o funeral de Dona Carmelita (em uma escolha brilhante do Diretor, representada pela cirandeira pernambucana Lia de Itamaracá), matriarca da comunidade e avó de Teresa. Nesta cena e nas próximas são apresentados ao público os habitantes de Bacurau.

Visivelmente a intenção do diretor não é dar protagonismo para nenhum deles em particular, mas sim apresentar rapidamente a vivência de alguns, suas relações com o dia-a-dia e suas contradições. Desde Lunga, um/a misterioso/a cangaceiro/a travesti procurado/a pelas autoridades, mas apoiado/a pelos moradores; Dona Domingas, a médica do povoado que abusa do uso do álcool; Plínio, o professor, filho de Carmelita e pai de Teresa, que aparece como porta-voz da comunidade; Pacote, um matador de aluguel que quer mudar de vida e ser chamado de Acácio.

Por trás do desenvolvimento um pouco maior das características destes personagens, Kléber Mendonça mostra que as relações sociais entre os habitantes de Bacurau não são nada caretas e não estão baseadas em preconceitos morais que seriam “típicos” de uma cidade do sertão pernambucano. Ao contrário, a ausência de um julgamento entre eles sobre as ações individuais de cada um fica evidente em alguns diálogos particulares do filme, mas, no geral, com a naturalidade com que é tratada a relação da população com o sexo, independente da identidade de gênero e da opção e prática sexual de cada um e ao mostrar sem julgamentos as relações dos habitantes de Bacurau com o uso de álcool e drogas.

Nessa primeira parte, Kleber e Juliano também aproveitam para dar um choque no preconceito de grande parte do público sobre a imagem esteriotipada que fazem do sertanejo (e do nordestino em geral) como um “povo simples”, “culturalmente atrasado” e “conservador nos costumes”. Para isso, os diretores transmitem pelo filme, de maneira bastante inteligente e artística, o conceito de “desenvolvimento desigual e combinado”. Seja com o professor ensinando os alunos onde fica Bacurau a partir de um tablet e do Google Maps, seja quando os habitantes são avisados da presença de forasteiros por mensagens de áudio de WhatsApp, ou quando, ao ver um “OVNI”, um dos habitantes de Bacurau avisa Pacote, de maneira muito racional e científica, se tratar de um drone no formato de disco voador que estaria observando as movimentações das pessoas da comunidade.

Ainda como parte da apresentação dos personagens, os diretores apresentam a relação dos habitantes de Bacurau com o prefeito da Cidade de Serra Verde - Tony Junior, com destaque para o nome americanizado e para o sobrenome de herdeiro - onde se localiza o povoado. O prefeito populista e entreguista é hostilizado pelo povo de Bacurau ao chegar na cidade para fazer campanha, despeja livros para a escola como se estivesse despejando lixo e entrega medicamentos e alimentos vencidos. Ao final da cena, leva da comunidade uma jovem, como prostituta, contra a vontade dela, para satisfazer seus prazeres.

Kleber Mendonça afirmou em entrevista que parte da produção do filme tinha como intenção combater a visão esteriotipada de “povo simples” do sertão nordestino. Ainda que ele tenha, para isso, abusado de exageros que chegam a fazer Bacurau parecer uma cidade romantizada, sem contradições - popularmente democrática, socialmente libertária e politicamente horizontal -, pode-se concluir que, nessa sua cruzada de trazer uma visão menos preconceituosa sobre o sertanejo nordestino, ele foi muito feliz. E que, para o objetivo do filme de dar centralidade na resistência de todo um povo contra o avanço dos interesses imperialistas, não havia a necessidade de explorar as contradições internas do povo de Bacurau.

Segunda parte: os traços semicoloniais da burguesia nacional

Após conhecermos Bacurau, seu povo e suas relações, os Diretores iniciam o suspense da trama com uma sabotagem ao caminhão-pipa e a chegada de dois forasteiros à cidade. Kléber e Juliano desenvolvem a relação dos forasteiros com o povo de Bacurau e depois dos forasteiros com os estrangeiros ianques, no que pode ser visto como uma analogia com o retrato do que é a burguesia nacional entreguista brasileira, de como ela se vê e de como ela de fato é enxergada pelo imperialismo. Uma burguesia que tem vergonha e nojo do seu próprio povo, que se sente do primeiro mundo, mas que é claramente vista pelos verdadeiros imperialistas como realmente é: uma burguesia dependente, atrasada e com traços semicoloniais, capaz de matar a sua própria classe trabalhadora para mendigar um lugar ao sol junto das grandes potências.

Os dois forasteiros chegam na cidade de Bacurau e se apresentam como turistas que estariam fazendo trilha. O desenrolar da conversa entre o casal e os moradores do povoado demonstram os preconceitos dos dois em relação ao sertanejo nordestino. São vários momentos interessantes nesse contato que mostram esse preconceito enraizado e essa forma inferior que esses forasteiros sulistas (de SP ou do RJ) enxergam e tratam o sertanejo nordestino.

A resposta da criança no bar sobre o que é quem nasce em Bacurau, a maneira desdenhosa com que o casal trata a existência do museu do povoado e o ápice da cena do Carranca, músico repentista, fazendo uma canção ironizando as atitudes preconceituosas dos dois forasteiros - que chegam ao ponto de oferecer dinheiro pra ele parar de cantar, como se ele quisesse esmola, ao que ele responde com mais rimas irônicas - é todo um conjunto de diálogos à serviço de criticar esse olhar preconceituoso em relação ao povo nordestino.

Kléber e Juliano passam toda essa mensagem até chegarmos, enfim, em quem está por trás dessa empreitada contra a cidade de Bacurau: uma equipe de assalto de norte-americanos interessados em negócios na região, e que para isso precisam acabar com a existência dessa comunidade e com a resistência do seu povo.

Um dos momentos mais emblemáticos do filme é a cena da mesa de reunião desta equipe de americanos e os dois brasileiros sulistas. Por um lado, o casal tenta se portar diferente dos demais brasileiros do Nordeste, se afirmando como brancos, como vindos de uma região pretensamente mais rica, e tentando se localizar como parte dessa equipe de assalto. Por outro, os gringos humilham os dois, ridicularizam seus traços negros e indígenas, cospem na pretensão dos dois de ser parte da equipe e impõe violentamente seu poder e autoridade sobre eles. Tudo isso com um ponto de comunicação no ouvido, mostrando que os gringos estão ali representando somente a equipe de assalto de um projeto maior.

Alguns elementos dessa cena merecem um parágrafo à parte. A tentativa do casal em se apoiar no assassinato dos dois moradores de Bacurau como prova da sua fidelidade e do seu pertencimento ao grupo estrangeiro e, em contrapartida, o repúdio dos gringos diante exatamente dos brasileiros terem “assassinado seu próprio povo” é muito simbólico - em um momento de aprovação da reforma da previdência e trabalhista - de como a burguesia dos países atrasados e semicoloniais estão dispostas a sacrificar toda a riqueza e soberania nacional e mesmo as condições de vida do seu próprio povo à serviço dos interesses imperialistas, mas que, no final, elas são apenas peões descartáveis pros interesses dessas grandes potências.

O momento em que o líder dos gringos, Michael, mexe na carteira do brasileiro e descobre sua identificação como “funcionário do Judiciário brasileiro” é toda uma crítica a parte. Mesmo considerando que o filme tenha sido pensado há 10 anos, sua filmagem se deu em 2018, já após o golpe institucional e em meio ao avanço do autoritarismo do judiciário brasileiro pela via da Operação Lava-Jato à serviço dos interesses norte-americanos. É praticamente impossível não imaginar que Kléber Mendonça - um crítico aberto do golpe institucional do Brasil - não tenha criado esse momento propositalmente para coroar essa analogia. Afinal, os diálogos do casal brasileiro, seja diante do povo de Bacurau, seja na mesa com os invasores gringos, lembram muito do pensamento e das falas raivosas contra o povo em geral - e os nordestinos em particular - dos manifestantes de verde-amarelo que saíram às ruas de SP, RJ e outras capitais pelo impeachment da Dilma.

Terceira parte: a catarse e o sentimento de vingança de séculos de espoliação imperialista

A partir daí o filme adquire outro ritmo. A luta de classes latente desde o início do filme em torno da água e dos recursos naturais da região, assume então o caráter de uma guerra aberta. Bacurau se prepara e Lunga - a/o cangaceira/o trans - e os dirigentes da resistência voltam ao povoado e se preparam para a sua defesa. Os gringos organizam o plano de guerra, que já havia passado pela sabotagem da internet e avança na sabotagem da energia elétrica da comunidade.

Kleber e Juliano optam por uma sequência de violência e sangue à la Tarantino e levam o público à dois momentos marcantes no filme: o ódio diante do assassinato covarde de uma das crianças de Bacurau por parte dos gringos e a catarse do público diante da emboscada organizada pelo povo de Bacurau e o início da reviravolta no filme à favor da resistência.

O assassinato da criança é seguido de um diálogo muito interessante entre o grupo de invasores. O matador, um antigo funcionário de RH de uma rede de hipermercados, busca defender a legitimidade de ter assassinado a criança indefesa de 9 anos, argumentando que estava noite, que ela poderia estar armada, que ela era grande e poderia já ter 16 anos, etc. Um outro membros do grupo, um antigo carcereiro de um presídio estadual dos EUA, repudia esse assassinato como desnecessário e violento. Uma postura moral aparentemente contraditória diante da função que cada um exercia antes de se tornar da equipe de assalto. O líder da equipe, Michael, a partir de orientações vindas do ponto de comunicação, vai ficar ao lado do matador e utilizar do conceito de “policial bom e policial mau” pra ridicularizar a discussão dos dois e mostrar como, republicano ou democrata, os dois são iguais quando o assunto é o projeto e os objetivos da invasão imperialista.

Se o público ainda não tiver ficado convencido disso e ainda tinha alguma ilusão do “senso de moralidade” daquele membro do grupo que se posicionou contra o assassinato da criança, logo depois dessa cena o grupo vai aparecer reunido mais uma vez e esse mesmo personagem vai revelar que, quando a esposa se separou dele, ele pensou em assassiná-la e depois se viu rondando shoppings armados em uma alusão aos massacres direcionados de espaços públicos nos EUA. Ele se sente livre o suficiente para falar da sua vontade de praticar um feminicídio ou um assassinato de massas.

Impossível não associar todo esse conjunto de diálogos perturbadores com os argumentos que são apresentados em discussões atuais sobre a redução da maioridade penal, sobre o discurso de que “bandido bom é bandido morto” e com o aumento das taxas de feminicídio, em um momento que a violência contra os setores oprimidos têm aumentado e sido cada vez mais naturalizada.

As cenas que se seguem elevam a catarse do público e afloram o sentimento de revanche diante da agressão imperialista. O museu da cidade finalmente é aberto e revela a história de resistência do povo de Bacurau. É lá dentro que parte do enfrentamento acontece e ao final a curadora pede que não se limpem as paredes, para que a história de também essa resistência fique marcada a bala e sangue no museu. Dentre os mortos da resistência carregados nos caixões - que representam desde o início do filme as sombrias estatísticas de um país que somente ano passado matou 67 mil pessoas - ainda são homenageadas Marisa Letícia e Marielle.

Diferente do que poderia se imaginar, a violência explícita no filme com as mortes por decapitação dos agressores estrangeiros, ainda que tenha uma intenção catártica, não representam uma sentimento de prazer, nem no público, muito menos nos personagens do filme. O olhar ao final da população de Bacurau é um olhar triste, um olhar de dever cumprido, a consumação da vitória sobre uma tragédia e a pergunta que não cala: “porque vocês estão fazendo isso?”... a mesma pergunta, quase infantil, que o jovem Douglas fez ao policial que o matava em novembro de 2013 na periferia da zona norte de São Paulo: “Porque você atirou em mim?”

Se “O som ao redor” e “Aquarius” já haviam mostrado a potencialidade de Kleber Mendonça como diretor de filmes críticos e de uma arte reativa e não panfletária, “Bacurau” vem com tudo para consagra-lo. Ainda que se possa entender o filme como uma interação entre mocinhos e vilões - e os exageros utilizados pela direção levam a essa possível simplificação -, a obra tem uma carga e um sentido muito mais sócio-político do que uma mero clichê de suspense distópico futurista.

Pessoas comuns na resistência coletiva e organizada contra o avanços dos interesses imperialistas. Em tempos de bolsonarismo e trumpismo, a catarse e o sentimento de revanche que o filme inspira é alentador. Um sentimento anti-imperialista nos cinemas de massas do Brasil. É louvável!




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