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Novo Governo no Chile | Assumiu Gabriel Boric: entre os simbolismos e a moderação das reformas

Nesta sexta-feira, Gabriel Boric assumiu a presidência em uma cerimônia atravessada por gestos simbólicos. Ele recebeu os aliados de Piñera, o mesmo presidente criminoso que Boric ajudou a salvar. O cronograma de medidas e reformas ainda não está claramente definido. Mas estes meses anteriores à posse lançaram alguma luz sobre o que será a "primeira vez" do governo da Apruebo Dignidad. Quais são as chaves para entender o novo momento político que se abre no Chile?

sexta-feira 11 de março de 2022 | Edição do dia

Nesta sexta-feira, Gabriel Boric assumiu a presidência em uma cerimônia atravessada por gestos simbólicos. Durante janeiro e fevereiro, concentraram-se os preparativos para a transferência entre o governo de direita e o da Apruebo Dignidad (a coalizão que Boric liderou como candidato), incluindo a nomeação de ministros, subsecretários e outros funcionários; as reuniões com o governo Piñera e as primeiras definições sobre o futuro das reformas prometidas. Boric receberá a faixa presidencial das mãos do mesmo presidente criminoso que conseguiu salvar sua pele graças ao "Acordo pela Paz", liderado pelo novo presidente.

O cronograma de medidas e reformas ainda não está claramente definido. Mas estes meses anteriores à posse lançaram alguma luz sobre o que será a "primeira vez" do governo da Apruebo Dignidad. Quais são as chaves para entender o novo momento político que se abre no Chile?

O significado dos gestos

Nestes meses abundaram os gestos simbólicos, mas todos os sinais em termos de reformas sociais e econômicas apontam para a moderação. Tomemos apenas um exemplo, aquele que tem a ver com os prisioneiros da rebelião.

Uma das manchetes de hoje era que o novo Governo anunciou a retirada de 139 denúncias pela Lei de Segurança de Estado. Naturalmente, a manutenção das denúncias apresentadas por Piñera era inaceitável. No entanto, tanto as famílias das e dos presos da rebelião quanto os especialistas apontam que as consequências são praticamente nulas: a maioria dos réus é acusada de crimes comuns, então os processos continuam e as medidas cautelares não necessariamente mudarão.

O projeto de indulto para os presos está enterrado no Senado e a Convenção Constitucional já rejeitou algumas propostas de anistia (a votação da Iniciativa Popular de Norma Constitucional para a Liberdade dos Presos da rebelião ainda está pendente).

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Além disso, o novo ministro da Fazenda, Mario Marcel, dividirá a reforma tributária em duas com o objetivo de recuperar a confiança do mercado. Assim, a primeira reforma tributária incidirá sobre a eliminação de isenções, redução da evasão, novos impostos sobre os grandes patrimônios líquidos. Em uma segunda etapa, sem data definida, viriam as mudanças mais duras, que poderiam afetar empresas e setores econômicos. Recordemos que a reforma tributária foi definida como a primeira medida hierárquica, pois Boric prometeu respeitar o orçamento de ajuste fiscal de 22,5% e financiar reformas previdenciárias, de saúde e de educação na medida em que houvesse “rendas permanentes”.

Dizem que não querem cometer os "erros" do segundo governo Bachelet. É por isso que eles vão mais devagar. Enquanto o senador Jaime Quintana falava na época em uma "retroescavadeira" (para destruir as bases do modelo neoliberal), Gabriel Boric agora enfatiza o gradualismo. Enquanto a Nova Maioria disse que "os que atacam a reforma tributária são os poderosos de sempre", o presidente eleito esclarece que sua reforma tributária não será proposta "de forma conflituosa". Um governo do tipo Bachelet?

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Parece que em um cenário de maior instabilidade econômica (agravada pela guerra na Ucrânia), inflação crescente e condições fiscais mais apertadas, a prioridade será a agenda política, a paridade e as medidas democráticas. Gestos simbólicos também não faltarão. Por trás das frases pomposas, a Convenção Constitucional segue uma linha semelhante, longe das grandes urgências populares. Tudo isso enquanto os processos de outubro ainda estão pendentes.

Um congresso em minoria e sua ampliação à ex-Concertación

Uma das primeiras medidas do futuro presidente foi estender o próximo gabinete à antiga Concertación, nomeando cargos-chave como o Tesouro (PS), Relações Exteriores (PPD), Defesa (PS), entre outros. Além de um gesto de moderação, foi um gesto marcante para os mercados ao nomear um dos intelectuais dos 30 anos de neoliberalismo no comando do Tesouro: Mario Marcel, que junto com Piñera co-governou a crise da pandemia e que foi presidente do Banco Central nos últimos 4 anos. Local de onde atacou a demanda pelo fim das AFPs (fundos privados de pensão).

No caso do Senado, a direita (Chile Vamos e o Partido Republicano) conquistou 25 das 50 cadeiras, seu melhor resultado histórico desde a volta à democracia. Por sua vez, a Apruebo Dignidad aumentou de 1 para 5 senadores, os partidos do Nuevo Pacto Social (ex-Concertación) ficaram com 17 assentos e 3 independentes, incluindo Fabiola Campillay.

Na Câmara dos Deputados o panorama é semelhante: a direita será a bancada majoritária com 68 cadeiras (15 da extrema direita de Kast e 53 do Chile Podemos más, o pacto parlamentar da direita tradicional). No caso da Apruebo Dignidad, ela terá 37 cadeiras: o Partido Comunista (PC) que passa de 9 a 12 deputados e desbanca a Revolución Democrática (RD) como o maior partido do bloco. Por seu lado, a RD passou de 10 para 8 lugares. Convergencia Social, o partido de Boric passou de 3 para 9 lugares e os Comunes de 2 para 6. O FRVS caiu de 4 para 2. No caso da antiga Concertación, o partido mais atingido é a Democracia Cristiana (DC) que passa dos atuais 12 assentos em deputados para apenas 8. O Partido Socialista (PS) terá 13 assentos (de 17 em 2017). O PPD mantém 7 assentos e o PRSD 4, como em 2017. O Partido Liberal de Vlado Mirosevic (antiga Frente Amplio) passará de 2 para 4 assentos.

Qual será o papel dos democratas-cristãos e do Partido Popular na Câmara e dos independentes no Senado?

A Convenção Constitucional: entre as frases e o quorum de dois terços

Boric foi fundamental para o desvio constitucional do 15N de 2019 ("Acordo pela paz") para trazer toda a energia da rebelião a um órgão dentro do regime e reformá-lo. Foi uma decisão estratégica do regime dos 30 anos preservar-se o máximo possível, concedendo algumas mudanças, mas mantendo o essencial do modelo neoliberal. A classe dominante concordou em mudar a constituição, porque a forma como eles governavam provou ser insustentável e disfuncional. Propuseram modernizar o regime político em troca da recuperação da governabilidade. A disputa na Convenção tem a ver com o alcance dessa modernização.

Durante o verão começou a discussão de fundo e as amarras e armadilhas com as quais a Convenção foi projetada começaram a ser colocadas em operação. Apesar de a direita não ter alcançado um terço dos votos para ter poder de veto sozinha, em várias ocasiões atuou junto à coalizão para bloquear algumas das medidas que pareciam mais disruptivas. Assim, o Conselho Territorial que veio eliminar a Câmara Alta, a cada dia que passa, mais se parece com o Senado atual, apesar de no início da discussão ter se falado em um acordo transversal para uma única câmara.

Algumas demandas importantes como o direito ao aborto e a educação sexual integral vêm avançando, além de alguns direitos aos povos indígenas. No entanto, questões como o legado da ditadura nos direitos trabalhistas e sindicais, a exploração dos recursos naturais, o direito à autodeterminação dos povos indígenas, foram rejeitadas ou permanecem em segundo plano.

A Convenção Constitucional terá, em princípio, até 4 de julho para concluir a redação da proposta de uma nova Constituição a ser ratificada em plebiscito de saída com voto obrigatório.

Incerteza econômica e as expectativas com as demandas de outubro

O cenário interno vem marcando uma tendência de desaceleração, regressando aos problemas mais estruturais da economia, depois de um 2021 excepcional onde se aliou a injeção de recursos para as retiradas das AFP e auxílios estatais.

Como resultado de uma combinação de fatores, a inflação também aumentou para valores semelhantes aos dos Estados Unidos (7%). A guerra na Ucrânia representa a curto prazo novos aumentos de combustível e alimentos. A principal contratendência é o preço do cobre, que há quase 2 anos se beneficiou com a demanda chinesa e agora recentemente com a guerra na Ucrânia.

Embora não se saiba de imediato como a economia se desenvolverá e essas tendências contraditórias estejam presentes, o governo já decidiu como vai responder a essa incógnita: respeitando o ajuste fiscal e limitando as reformas estruturais que pretende promover.

A localização do governo Boric no cenário político latino-americano

O Partido Socialista manteve não apenas o Ministério da Fazenda, mas também a pasta estratégica de Relações Exteriores e Defesa. A nomeação de Antonia Urrejola como próxima ministra das Relações Exteriores, assessora de José Miguel Insulza na OEA, já prenunciava o perfil que o futuro governo teria na diplomacia internacional.

A guerra na Ucrânia foi um primeiro teste para o governo de Gabriel Boric, que twittou que "a Rússia optou pela guerra como meio de resolver conflitos. Desde o Chile condenamos a invasão da Ucrânia, a violação de sua soberania e o uso ilegítimo de força. Nossa solidariedade será com as vítimas e nossos humildes esforços com a paz".

Em nenhum momento ele mencionou a palavra OTAN ou a responsabilidade que recai sobre os EUA com a política agressiva que vem promovendo contra a Rússia há anos. Ele pediu a retomada dos canais diplomáticos, mas não disse nada sobre as sanções impostas pelas potências, muitas das quais serão pagas pelo povo.
Depois disso, ele transmitiu o discurso de Zelensky mostrando-o como um herói.

Um perfil “laguista” ou “lulista”? Recordemos que ambos os governos "progressistas" foram obedientes promotores das principais políticas imperialistas na América Latina. Estas são as primeiras declarações, resta saber que medidas tomará o novo governo de Gabriel Boric. Mas já temos as primeiras pistas.

A agenda de "segurança" que pressiona à direita no norte e no sul

A agenda da direita durante 2021 foi destacar a militarização de Wallmapu e a crise migratória no norte para promover um ambiente reacionário contra o povo mapuche e os migrantes e assim a polícia recuperou um pouco da legitimidade perdida após a rebelião. Não está descartado que isso continue se tomarmos o peso maior da extrema direita (que terá ampla representação parlamentar) e também pela posição que a direita teve com Bachelet 2 ao promover o Confepa (direito de "escolher " a educação) e também as mobilizações dos caminhoneiros.

Por enquanto, os principais poderes econômicos e políticos do Chile não querem que o governo de Boric fracasse porque o que está em jogo é a governabilidade (por isso a UDI insistiu que será uma oposição construtiva). No entanto, eles usarão vários mecanismos para pressionar e limitar ao máximo o governo e a Convenção. Ao mesmo tempo que a situação migratória no norte e os confrontos em Wallmapu são dois elos fracos que concentram dois pontos de crise estatal.

Qual será o papel da luta de classes e das mobilizações

Com a pandemia e o toque de recolher, o governo aproveitou para impor o controle das ruas por quase 2 anos; depois uma expressão distorcida contra essa força se deu na ampla votação de Boric contra Kast que lhe deu a vitória e a votação individual mais alta do país na história.

Por enquanto há expectativas e certamente haverá uma lua de mel, mas o governo enfrentará nos primeiros 100 dias a conclusão do processo constituinte e o plebiscito de saída que imporá um primeiro teste e também será visto qual o nível de aceitação ou decepção com a agenda de reformas governamentais mais limitadas.

O que sabemos é que para conquistar plenamente as demandas da rebelião de outubro, não há nada que possa substituir a força da mobilização da classe trabalhadora e do povo. Nem as negociações nos corredores da Convenção para chegar a dois terços, nem o empurra-empurra entre o governo e o parlamento atenderão nossas demandas. Devemos fortalecer a organização independente e preparar o caminho para a mobilização com uma lista de reivindicações para ganhar salários, saúde, pensões, educação, trabalho e todas as reivindicações da rebelião de outubro.

Leia mais: O triunfo de Boric e a luta pelas demandas de outubro


Texto originalmente publicado em La Izquierda Diario Chile




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