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As raízes do bolsonarismo

Danilo Paris

Ilustração: Isadora de Lima Romera | @garatujas.isa

As raízes do bolsonarismo

Danilo Paris

Neste domingo irá se decidir quem será o futuro presidente do Brasil para os próximos quatro anos. Evidentemente, seus resultados vão ser fundamentais para uma nova correlação de forças que irá se conformar no país. No entanto, independente disso, há um fator que merece ser estudado e interpretado: o enraizamento social da extrema-direita e o fenômeno bolsonarista.

Passados quatro anos de uma gestão que atacou os trabalhadores, com uma política sanitária terrível e com índices econômicos poucos satisfatórios, muitos esperavam que Bolsonaro e o bolsonarismo derreteriam pela força da natureza. Essa era a aposta do PT, que previa retornar ao comando do governo como um salvador inconteste de um país em ruínas. No entanto, a política não é como a lei da gravidade que atua independente dos sujeitos políticos.

Já no primeiro turno expressou-se uma eleição em que os setores alinhados ao atual presidente, além dele próprio, obtiveram resultados importantes. O apoio que conquistou em importantes alas do Centrão e, também, entre os militares foi decisivo para o governo conseguir se recuperar de crises e conquistar bons resultados eleitorais. Dos legislativos aos governos estaduais, foram muitos os que se elegeram a partir do apoio a Bolsonaro. Com vetor invertido, os partidos da assim chamada “centro-direita” obtiveram resultados catastróficos, entre os quais o PSDB, símbolo de sua decadência e fragmentação. Parte de sua base eleitoral histórica migrou para Bolsonaro, seja por considerá-lo mais consequente contra o PT ou por ser o único que pode evitar que Lula retorne ao poder. Outra parte, aqueles que romperam com Bolsonaro sem alinhar-se à Lula, tiveram pouca ou nenhuma expressão eleitoral.

Há razões conjunturais que explicamos neste artigo, que são importantes para entender o porquê isso se deu. O país atravessar uma pandemia e, posteriormente, o estouro da Guerra na Ucrânia, produziu efeitos contraditórios para o governo, o que acabou por gerar uma forma de preservação de Bolsonaro. Por isso, a ideia de que governou em uma situação historicamente adversa é explorada fartamente em suas peças publicitárias, e que parece ter encontrado eco entre seu eleitorado, como revelaram as urnas.

A economia também foi um fator. Bolsonaro contou com um desempenho econômico melhor do que o esperado. O PIB deve crescer 2,8% este ano, segundo o FMI. A retomada econômica após a pandemia gerou novos empregos. O saldo entre admissões e desligamentos foi positivo em 1,853 milhão de vagas de janeiro a agosto. Esses empregos, mesmo que temporários e precários, são suficientes para gerar alguma sensação de melhora. Segundo o Banco Central, o investimento estrangeiro direto subiu para 74 bilhões de dólares até setembro, ante 50 bilhões do ano anterior. A inflação, que chegou a 12% em abril, caiu para 7,2% em setembro. Ainda que seja uma recuperação parcial e precária, com sinais de piora, o conjunto desses elementos ajudou no caminho para recompor os votos que havia perdido.

No entanto, isso não explica tudo. Há fatores estruturais que são importantes para dar forma a esse complexo quebra-cabeças do atual regime político brasileiro e, em particular, uma das suas faces mais macabras: a ascensão, permanência e institucionalização de uma extrema-direita que não irá desaparecer após as eleições. Sem a pretensão de juntar todas as peças, apresentamos algumas que são relevantes para sua interpretação. Em especial, as operações políticas para sua ascensão e dois pilares do seu enraizamento social, a saber: os militares, o agronegócio e o neopentecostalismo.

1. A ascensão

No início dos anos 1990 até 2016 o regime político passou por um período marcado por sucessões entre PSDB e PT no comando do país. No entanto, há uma clivagem depois disso: a chegada de Bolsonaro ao poder. Para interpretá-la é preciso buscar fatores externos e internos para tanto. Voltemos então ao prelúdio de sua ascensão.

Em seu livro Lulismo em crise: Um quebra-cabeça do período Dilma (2011-2016), lançado em 2018, André Singer define que Dilma buscou promover um “ensaio desenvolvimentista”. Ainda que não seja o objetivo desse artigo, vale notar um certo exagero nessa definição, por serem medidas tímidas e parciais que, talvez, por sua natureza, merecessem outra definição.

Segundo ele, a partir da desvalorização cambial, redução dos juros, desonerações, incentivos fiscais e algum investimento estatal, ela propunha uma política econômica para favorecer os setores industriais. Contudo, ele afirma que, de maneira paradoxal, esse setor econômico ao qual ela buscava favorecer foi se afastando cada vez mais, até ser um dos setores que encabeçaram a mobilização política do seu impeachment.

O que, então, ocorreu? Dilma assumiu a presidência após um crescimento de 7,5% do PIB, com uma uma taxa de desemprego de 5,3%. Cinco anos depois, sofreu o impeachment com um PIB que havia passado por um tombo de 3,8% e com o desemprego voltando a casa de dois dígitos. A sentença econômica também foi política e a ex-presidenta amargou 70% de rejeição.

A enorme crise econômica que teve seu estopim em 2008 alterou profundamente o panorama político e social. A queda abrupta da taxa de lucro levou a uma radicalização de frações burguesas internacionais. Nesse esteio se ancoraram diversos ramos da extrema-direita internacional. Além do próprio Bolsonaro, Donald Trump, Viktor Orban, VOX espanhol, Alternativa para a Alemanha (AfD), Democratas Suecos e, recentemente, Georgia Meloni são expressões dessa nova forma política para dar vazão a ânsia burguesa da hiperexploração.

Retornando ao Brasil, o discurso petista busca atribuir às mobilizações de junho de 2013 um caráter de direita, que teria redundado no golpe e no bolsonarismo. Nada mais distante da realidade, como já debatemos por exemplo aqui. Em 2013 eclodiram demandas sociais legítimas, em primeiro lugar da juventude, e que expressavam o choque entre as expectativas de melhora gradual de vida, que o próprio lulismo tinha alentado, e os limites a essas expectativas, ou seja, os limites de uma política de conciliação de classe, em um momento de crise econômica, com o PT administrando o Estado e a política de preservação dos lucros capitalistas.

Mesmo depois disso, Dilma ganhou sua segunda eleição prometendo que não atacaria “nem que a vaca tussa”, contando inclusive com os votos da juventude de junho contra a política neoliberal tucana. Ao fim e ao cabo, a vaca tossiu tanto que até mesmo o neoliberal Joaquim Levy foi para o Ministério da Fazenda, o mesmo que integraria, anos depois, a equipe de Paulo Guedes, chefiando o BNDES durante o governo Bolsonaro. Isso foi parte fundamental do que abriu espaço para a direita capitalizar a insatisfação com o PT, apoiando-se na Lava-Jato e na imensa campanha midiática em torno dela.

Ainda sim, vimos a maior paralisação nacional dos últimos 30 anos, diante das reformas antioperárias de Temer em 2017, o que mostra como é falsa a explicação petista de que “o povo é de direita”, culpando os trabalhadores. Naquele ano, de novo, foi o PT quem, à cabeça das grandes centrais, abortou a segunda paralisação nacional e deixou a reforma trabalhista passar, em nome de um acordo pelo financiamento sindical que nem vingou. Mesmo depois disso, em 2018, Lula era favorito e precisou ser preso e proscrito em uma operação política em autoritária.

Tudo isso precisou acontecer antes que Bolsonaro vencesse a eleição e o petismo pudesse declamar triunfante seu “eu avisei” sobre 2013, embandeirar-se de sua profecia autocumprida sobre o caráter de direita daquelas manifestações populares e, agora, justificar as alianças cada vez mais à direita como supostamente “o único caminho frente ao direitismo do povo” expresso nas urnas, no âmbito de uma consciência de massas em que a luta de classes aparece como se não estivesse no horizonte.

Além de Levy, diversas outras figuras do esgoto bolsonarista germinaram no jardim dos governos Lula e Dilma. General Heleno chefiou as tropas brasileiras no Haiti, que também contou com a participação de Tarcísio de Freitas. Marcelo Crivella, bispo poderoso da Igreja Universal, foi ministro da Pesca de Dilma. Marco Feliciano presidiu a Comissão de Direitos Humanos com o apoio do PT, para o qual fez campanha, acompanhado por Magno Malta. Ciro Nogueira, o poderoso ministro da Casa Civil de Bolsonaro, estava com Haddad em 2018 e até de fascista chamou seu agora candidato. Todo esse arco de alianças, que hoje são peças chave para a campanha de Bolsonaro, ganharam musculatura e poder político antes da chegada de seu mandatário ao poder.

Vários desses que, hoje, são fortes figuras do bolsonarismo se gestaram nos mandatos anteriores ao seu legítimo representante e, quando viram uma janela de oportunidade, deslocaram-se para a oposição e foram parte dos que encabeçaram o golpismo. Mas Bolsonaro não era o dirigente desse processo. O plano inicial daqueles que arquitetaram o golpe institucional era eleger Alckmin em 2018 após os bons serviços prestados por Michel Temer, para assim inaugurar uma nova era dos legítimos representantes do neoliberalismo. Para isso, dedicaram força em disseminar o anti-petismo e o lavajatismo, regidos sob a batuta do STF que promoveu as maiores arbitrariedades para garantir que não haveria um novo governo do PT. Não fosse a monstruosa ação do judiciário brasileiro, toda a história seria outra. Toda essa operação recebeu o íntimo apoio do imperialismo dos EUA, inclusive no governo do Partido Democrata, treinando Sérgio Moro e seus procuradores, em um contexto que buscou influenciar em diversos países da América Latina para colocar governos defensores de uma política econômica de ataques e devastações dos direitos sociais.

Porém, não contavam com a máxima clausewitziana que diz que os planos de guerra nunca são idênticos à guerra propriamente. Quem melhor encarnava essa radicalização burguesa era o grotesco Bolsonaro e não o insosso Geraldo Alckmin. O feiticeiro já não controlava a magia que produziu e, apesar dos pesares, a burguesia brasileira atuou quase que inteiramente unificada para eleger o capitão que, poucos anos antes, louvara o sanguinário e torturador Brilhante Ustra durante seu voto no impeachment.

Portanto, o paroxismo não explicado por André Singer na realidade é a afirmação da escolha de um projeto econômico muito mais violento do que Dilma poderia aplicar. O autor dá excessiva importância a uma política errática de Dilma, desvalorizando os deslocamentos de classe produzidos pela crise capitalista internacional e, em particular, o esgotamento da política de conciliação pelas novas condições econômicas. Acompanhando esse movimento, a FIESP e os industriais brasileiros prefeririam o fim da CLT, a terceirização irrestrita, a reforma previdenciária, o teto de gastos, entre tantos outros ataques, que apequenaram as benesses que poderiam ser geradas pelos “ensaios rooseveltianos”, como definiu Singer. Mais uma vez, a ilusão desenvolvimentista em um país como o Brasil se desfez como poeira e a extrema-direita apresentou suas credenciais para o serviço que a burguesia desejava.

2. Os três pilares do enraizamento

2.1 Agronegócio

Por anos, Bolsonaro permaneceu com um deputado do baixo clero com pouca relevância política. Sua base política era o Rio de Janeiro, apoiado em setores das polícias e milicianos, representando um estrato lúmpen-militar com atuação localizada em algumas regiões. Ao se alçar como o representante do antipetismo em 2018, foi abraçado, ao menos momentaneamente, por setores do capital de maior relevância e expandiu sua sustentação de classe. Ainda que uma parte dele – a fração majoritária do grande capital financeiro – tenha se deslocado para a chapa Lula-Alckmin, uma parcela permanece em seu apoio. Entre outros, destaca-se a atuação política de grandes parcelas do agronegócio na campanha de Bolsonaro. Basta ver que entre os 50 maiores doadores da campanha de Bolsonaro, nada menos do que 33 são oriundos do agronegócio.

Um estudo realizado pela Esalq-USP junto à Cepea mostra a força que vem ganhando esse segmento. Considerando toda a cadeia produtiva, isto é, somando insumos, produção primária, agroindústria e agroserviços, o agronegócio brasileiro emprega 19 milhões de pessoas. Ou seja, estão inclusas também a produção de alimentos e agricultura familiar, que sozinha emprega 11,5 milhões desse contingente.

Considerando esse setor, o agronegócio absorve quase 1 de cada 3 trabalhadores brasileiros. De acordo com dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), 32,3% (30,5 milhões) do total de 94,4 milhões de trabalhadores brasileiros eram do agronegócio no ano de 2015. Desses 30,5 milhões, 13 milhões (42,7%) desenvolviam atividades de agropecuária, 6,43 milhões (21,1%) no agrocomércio, 6,4 milhões (21%) nos agroserviços e 4,64 (15,2%) na agroindústria. Uma enorme capilaridade de um setor que está espraiado em ramos diferentes do agronegócio.

Nos últimos anos esse setor conquistou um peso cada vez maior na produção nacional. Em 2021, a soma de bens e serviços gerados no agronegócio chegou a 27,4% do PIB brasileiro. É importante considerar que neste montante também estão inclusas a agroindústria, portanto não é apenas a produção de itens primários. Ainda sim, essas patronais possuem relações de interesse mais próximas do que a indústria dos grandes centros urbanos tradicionais. Se “da porteira para dentro” a produção for alta, “da porteira para fora” a demanda será maior.

Além da importância econômica, esse é o setor com as maiores bancadas na Câmara e no Senado. São poderosas as suas confederações, articuladas e com forte atuação política. Além disso controlam jornais, rádios, entre outros veículos de imprensa em um sem número de municípios do país. Ou seja, a influência econômica também é política e cultural, em diversos municípios brasileiros.

No primeiro turno, esse peso econômico comprovou sua capacidade de influenciar nos resultados eleitorais. Nas cidades e regiões onde há muita presença do agronegócio, Bolsonaro foi melhor que Lula. Dos 100 municípios brasileiros que estão entre os maiores produtores deste setor, ele ficou à frente em 77. Desses municípios, todos os que Lula venceu estão na região Nordeste, região onde o candidato do PT tem seu maior peso proporcional. No Sudeste, o mesmo movimento pôde ser verificado. Enquanto em Ribeirão Preto, considerada a capital do agronegócio, Bolsonaro teve 52,56%, Lula teve apenas 36,62%. Já na capital paulista a situação se inverte. Lula teve 47,54% do total e Bolsonaro ficou com 37,99%.

Daí toda ênfase no armamento, defesa da propriedade privada, ataque ao MST, aos povos indígenas e quilombolas, desregulamentação ambiental e exploração de reservas ambientais. Um programa ultra-reacionário que soa como música aos ouvidos de grandes parcelas do agronegócio, que de quebra seduz garimpeiros, madeireiros e todos o ramos extrativistas, legal e ilegal, os quais também se benecefiam economicamente com essa medidas.

2.2 As Forças Armadas, polícias e grupos armados

O esgoto bolsonarista não ganhou vida por geração espontânea. É possível encontrar suas origens na história, em particular na transição pactuada com o fim da ditadura que manteve impunes torturadores e grande parte do aparato repressivo daquele regime. Esse espectro político se manteve em estado de latência durante a maior parte do período dito democrático, anterior ao surgimento do bolsonarismo como fenômeno. Naquele momento, os militares não deixaram de ser um fator político, no entanto, atuavam nos bastidores do regime. O enorme questionamento à ditadura, iniciado pelo maior ascenso operário da história do país, não permitia espaços para serem protagonistas da política brasileira.

Isso começa a mudar após a segunda eleição de Dilma, contexto onde há um deslocamento de classes e uma política do imperialismo para alimentar o golpe institucional, como já descrevemos. A maior discrição, por assim dizer, que marcava o momento anterior, passou a ser suplantada por entrevistas e declarações públicas de importantes generais. Declarações e atuação política dos generais como Villas Boas, Etchegoyen e Mourão passaram a ser mais frequentes e naturalizadas por grande parte da mídia. No governo Temer os militares voltaram ao protagonismo político, ocupando dois cargos que eram de civis: o Ministério da Defesa e o Gabinete de Segurança Institucional. Manifestações políticas coordenadas pelo Alto-Comando, como o tuíte do então comandante do Exército, general Villas Bôas, passaram diretamente a influenciar e constranger outros poderes. Sobre esse episódio ele mesmo admitiu que “o texto teve um ‘rascunho’ elaborado pelo meu staff e pelos integrantes do Alto Comando residentes em Brasília”.

O próprio Bolsonaro faz questão de sempre salientar que o começo de sua ascensão para a presidência foi um discurso que proferiu na formatura de cadetes na Academia Militar das Agulhas Negras, ainda em 2014. Como demonstramos, Generais e inclusive o Alto Comando foram fundamentais para sua ascensão e sustentaram o governo em diversos momentos críticos. O mais emblemático deles se desenvolveu durante a crise da CPI, quando as três forças e o Ministério da Defesa atuaram abertamente pela preservação de Bolsonaro, mas também de seu próprio projeto, já que estavam muito comprometidos com a condução da pandemia. No entanto, vale considerar que não há unidade completa entre Alto Comando e Bolsonaro. São muitos os motivos para isso, entre os quais podemos destacar o papel de influência histórica que o imperialismo dos EUA exerce sobre a caserna brasileira. Em última instância, nos momentos mais críticos, a última palavra sempre foi a de Washington. Durante todo o governo não foram poucas as emissões de advertência da Casa Branca contra a linha política de Bolsonaro. Representantes da CIA e militares estiveram no país, a Casa Branca e o Senado soltaram notas de advertência contra as declarações golpistas que semeavam desconfiança no processo eleitoral brasileiro. Obviamente que isso ocorreu não por um valor democrático, mas através de um imperialismo que promoveu e sustentou ditaduras militares na América Latina. Antes, essa posição se explica por não quererem maiores instabilidades no maior país da América Latina e pela política do Partido Democrata, que buscou minar as forças de um aliado de Trump no cone sul.

Nos últimos anos a caserna passou a atuar na política pública, em uma magnitude sem precedentes desde a constituinte. Alguns generais passaram a ser articuladores e fiadores, até mesmo dentro das academias militares e quartéis, da candidatura de Bolsonaro, quem retribuiu os favores prestados após eleito, criando e mantendo o governo com mais militares desde a ditadura.

Dados publicados pelo Tribunal de Contas da União (TCU) mostram que, no primeiro ano do governo Bolsonaro, 3,5 mil militares ocuparam cargos no governo. Já em 2020, o número mais que dobrou, chegando a 6,175 mil. E as benesses e privilégios não param por aí. Enquanto centenas de brasileiros se aglomeravam em filas do osso e do lixo, o Ministério da Defesa dobrava as refeições feitas com filé mignon e picanha para as Forças Armadas, segundo dados do mesmo TCU. A grotesca usurpação dos recursos públicos teve ainda episódios mais extravagantes, como a aquisição de viagras e próteses penianas, além de supersalários de generais que ultrapassam o teto do funcionalismo, entre eles do próprio Braga Netto. Além desses, a preservação dos militares da reforma da previdência é mais dos incontáveis benefícios que tiveram com o governo Bolsonaro.

Mas a farra não para por aí. O recurso para o Ministério da Defesa se multiplicou durante o governo Bolsonaro. O orçamento aprovado em 2021, para execução em 2022, previa novos investimentos de 997 milhões de reais. Mais da metade desses investimentos foram para a Defesa, totalizando 627,5 milhões de reais. O exército assumiu obras em diversos estados, atuando como uma verdadeira empreiteira, colhendo os frutos dessa empreitada altamente lucrativa.

E os militares não pretendem retroceder dessas posições conquistadas. Foi sintomático o documento “Projeto de Nação” apresentado pelos militares através do Instituto Villas Bôas. Com quase 100 páginas, o plano expressa o projeto de país dos generais, traçando objetivos até 2035 e recheado de propostas privatistas como cobrança de mensalidades em universidades públicas e nos atendimentos do SUS. É a arquitetura social que querem moldar, com uma força bonapartista que pretende se postular como “poder moderador”, ressuscitando essa prerrogativa do Brasil Império.

Esse projeto se apoia em um efetivo militar e policial de grandes proporções. Segundo o 15º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, em março de 2021 o país tinha um efetivo de 555 mil policiais militares, civis e bombeiros militares. Segundo dados do Ministério da Defesa, as Forças Armadas contavam, em 2021, com 356 mil militares na ativa, sendo 215 mil no Exército, 76 mil na Marinha e 65 mil na Aeronáutica. Se ainda adicionar reservistas e aposentados a “família militar” sem dúvida ultrapassa, e muito, 1 milhão de indivíduos espalhados por todo o território nacional. Em sua esmagadora maioria são apoiadores de Bolsonaro, com inclinações ideológicas que se localizam na extrema-direita de sua base social.

Ainda é possível adicionar as milícias, em especial no estado do Rio de Janeiro, compostas por policiais e narcotraficantes. Um relatório do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos, da Universidade Federal Fluminense (Geni/UFF), mostra que o crescimento territorial dos milicianos no Rio de Janeiro foi de 387% em 16 anos. Com 256,28 km², ou 10% do estado, o domínio corresponde a quase duas vezes o tamanho da cidade de Niterói. Na capital, 30% das cidades são controladas por algum grupo armado, e 74,2% deles são áreas dominadas pelas milícias. Ainda que a milícia não seja um grupo homogêneo e alinhado, é conhecida pelas relações históricas da família Bolsonaro com vários milicianos. Adriano da Nóbrega, por exemplo, ex-PM e miliciano, teve familiares empregados no gabinete de Flávio Bolsonaro, além de ter sido condecorado por ele na ALERJ (Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro). Além de outros fatores, isso é parte de entender porque Bolsonaro obteve 51,09% dos votos dos eleitores do estado do Rio de Janeiro, contra 40,68% de Lula, além de ter apoiado a candidatura de Cláudio Castro como governador que foi eleito com quase 60% dos votos.

Como parte dessa base social armada, podemos adicionar os chamados CACs, proprietários de armas registradas por caçadores, atiradores e colecionadores. Esse setor quase triplicou desde a eleição de Bolsonaro e suas medidas de flexibilização do acesso e quantidade de armas, atingindo quase 1 milhão de pessoas, segundo dados do exército que foram obtidos por meio da Lei de Acesso à Informação pelos institutos Igarapé e Sou da Paz. Esse setor é composto por militares e civis, portanto não é possível fazer uma soma simples com o contingente militar e policial, mas são números relevantes e aumentam esse segmento armado apoiador de Bolsonaro.

Entre esses, ainda que não exclusivamente, está parte importante da fração mais fascistizante da base bolsonarista, em especial por sua capacidade militar, nem sempre bem vista pelo Alto Comando, que tenta instrumentalizá-la a seu favor. Olavistas, trumpistas, supremacistas entre mil e uma gradações de ideologias reacionárias compõem esse setor social, que ainda que minoritário comparativamente a base eleitoral de Bolsonaro, é atuante, fiel e radicalizado. As rajadas de metralhadora e granadas atiradas por Roberto Jefferson buscavam ativar esse setor, e talvez fazer dele um mártir desse bloco social. O episódio acabou sendo muito ruim para os objetivos eleitorais de Bolsonaro, que rapidamente teve que condenar o ataque e se separar de seu antigo aliado. No entanto, vários desses podem promover ações de distúrbio frente aos resultados eleitorais, e seguirão “fazendo barulho” e promovendo ações reacionárias, independente do governo que seja eleito.

2.3 O neopentecostalismo

Outro fator de destaque nas eleições foi a atuação do segmento evangélico, em particular o chamado neopentecostalismo. Mais uma vez mostram força política, deixando fortes marcas no processo eleitoral, em particular no apoio de setores majoritários a Bolsonaro. Na chapa opositora vimos a carta ao povo evangélico e as reiteradas declarações contra o direito ao aborto para conter o avanço de Bolsonaro no segmento.

Esse é um eleitorado em franca expansão. Pesquisas feitas por amostragem indicam que, hoje, o percentual de evangélicos é maior do que há 12 anos, data do último Censo do IBGE, quando 22,2% dos brasileiros se declararam evangélicos. O Datafolha, por exemplo, estimou em 2019 que os evangélicos são 27% do eleitorado.

A campanha aberta de bispos e pastores por Bolsonaro não foi sem resultados. Há dados que relacionam os votos obtidos por Bolsonaro e Lula em 5.564 cidades agrupadas em cinco faixas conforme a concentração de evangélicos. É possível verificar que o desempenho de Bolsonaro no primeiro turno das eleições tem correlação direta com o percentual de evangélicos em cada um dos municípios brasileiros.

Em 1.418 cidades com até 10% de evangélicos as urnas revelaram 24,79% para Bolsonaro e 69,67% Lula. Em outras 2.254 cidades, com uma população evangélica que varia entre 10% a 20%, Bolsonaro obteve 38,23%, enquanto Lula, 54,43%. Já em 1.378, com 20% a 30% de evangélicos, Bolsonaro obteve 46,69% e Lula 43,65%. Aumentando a proporção de evangélicos de 30% a 50%, 482 municípios registraram 51,25% de votos para Bolsonaro e 40,80% para Lula. Por fim, naquelas cidades com mais de 50% de evangélicos, que no total são 32, Bolsonaro obteve 64,73% e Lula 28,24% dos votos.

Sem querer entrar em todos os detalhes de um tema complexo, apontaremos alguns fatores que são importantes para compreender a identificação entre a parte majoritária dos setores evangélicos e o bolsonarismo. As pautas morais e dos costumes são um ingrediente fundamental para essa química. Direito ao aborto, da população LGBTQIAP+, debates de genêro e sexualidade nas escolas são apenas alguns dos tópicos elencados como de primeiro ordem por esse público. Contudo, há um outro componente, com maiores entranhas para explicar a conexão entre Bolsonaro e esse setor.

Podemos apontar, neste sentido, que uma das raízes que deu uma estatura robusta ao ódio contra as mulheres, negros, indígenas e LGBTQIAP+ foi o forte movimento, especialmente de mulheres, que irrompeu em nível internacional na última década. As demandas por igualdade, ainda que como parte de um movimento policlassista, tomaram as ruas e, inclusive, impuseram pautas e, de alguma forma, obrigaram empresas a adequarem seu discurso ao “politicamente correto”, o que apareceu como uma enorme ameaça justamente a todos esses valores da família tradicional brasileira. Então, podemos dizer que o bolsonarismo foi também uma reação a este movimento feminista e de todos os setores oprimidos na defesa de uma política conservadora de perpetuação do machismo, do racismo e da LGBTfobia. No seio deste movimento todas as pautas se misturam, como se fossem imposições das mal chamadas “minorias” ao conjunto da sociedade. Buscam inverter a lógica da opressão e, assim, levantam a bandeira da defesa da família, quando na realidade o que está por trás é justamente manter os setores oprimidos no seu lugar de opressão nesta sociedade capitalista.

Em um interessante artigo do antropólogo Ronaldo de Almeida, intitulado Evangélicos à direta, é apresentada uma articulação entre o discurso evangélico e neoliberal que é importante para entender essa relação. Ressaltando os limites da força eleitoral desse programa, o autor relaciona a dimensão dos costumes com a econômica, em especial para o neopentecostalismo. O artigo apresenta uma reflexão desenvolvida por Wendy Brown, afirmando que a premissa para essa relação “não se trata apenas da proteção da família tradicional contra o avanço da moralidade liberal, mas de que seus valores devem referenciar o ordenamento público e ser a instituição social de suporte de políticas econômicas que diminuem a proteção social que relaciona a pauta neoliberal com o tema da corrupção”.

Esses foram dois temas chaves da campanha de Bolsonaro. O discurso religioso é inseparável da retórica do presidente. Michele Bolsonaro foi escalada para dialogar especificamente com esse público. É difícil imaginar que as reacionárias marchas do 7 de setembro poderiam ter o peso que tiveram sem o apoio orgânico das igrejas evangélicas. Ao seu modo, e na ausência de ter um partido, na sua acepção tradicional, Bolsonaro se apoiou nas estruturas e no enraizamento das igrejas para cumprir esse papel.

Por outro lado, a temática da corrupção segue sendo uma bandeira que a extrema-direita continua carregando e que, no último período, recebeu o reforço de Sérgio Moro para enfatizar o legado da Lava-Jato. Entre votantes do Bolsonaro, o primeiro argumento é que “não vota em ladrão”, para justificar sua predileção pelo atual presidente, em detrimento de Lula. Não à toa foi um tema abordado fartamente nos debates e nas suas campanhas.

As recentes declarações de Guedes, favoráveis à desvinculação dos aumentos de salários, pensões e aposentadorias da inflação é uma expressão que o discurso neoliberal, nu e cru, não só não tem apelo como foi capaz de trazer danos às intenções de voto de Bolsonaro. Por isso, articular a perspectiva neoliberal, a partir da “defesa da família” e com o centro de combate a corrupção é uma questão chave para que haja algum nível de aceitação social desse programa econômico em defesa do “Estado mínimo”, em especial nos setores mais precários.

3. Como combater o bolsonarismo?

Como argumentamos, o bolsonarismo é uma expressão do capitalismo em crise, e que não irá desaparecer com as eleições. Seu enraizamento social é significativo, e não vai sumir com mudanças eleitorais. Acreditar nisso é uma utopia reacionária que só vai servir para desarmar a luta contra a extrema-direita, que só pode ser combatida a partir de um programa que responda aos interesses das grandes maiorias populares e trabalhadoras. Sem que estes se coloquem em movimento, a partir de seus próprios métodos de luta, os mercadores da fé, o agronegócio e os militares continuarão buscando ampliar sua influência sobre camadas amplas da população. Precisamos de organização e de luta, com um programa que combata o bolsonarismo em suas raízes. Sem isso, ele continuará se disseminando feito praga alimentada pela crise capitalista.

Ao mesmo tempo, esses setores podem se adaptar frente à administração Lula-Alckmin, buscando relações pragmáticas com o novo governo em favor dos seus interesses. Lula já demonstrou mais de uma vez que não tem problemas em ter boas relações com todos esses, no entanto, isso não vai fazer com que abandonem seu reacionário projeto social. Vão ser um fator real de pressão à direita no regime político, e não vão hesitar em seguir apoiando seus próprios representantes.

Para combater a política reacionária encabeçada pelo agronegócio bolsonarista não temos que buscar sua ala supostamente progressista, como faz a campanha de Lula através de Simone Tebet, Alckmin e Kátia Abreu. A ilusão de frações progressistas da classe dominante desaparece frente às crises econômicas, como foi na queda da própria Dilma, e o prognóstico é que elas se aprofundem. Ao contrário, é preciso se apoiar na enorme potência dos trabalhadores da cidade e do campo, no amplo proletariado das indústrias de maquinário agrícola, fertilizantes e insumos, nas camadas mais pobres da população, defendendo que a grande empresa do agronegócio seja colocada em função da produção de alimentos, e não do interesse de poucos grupos econômicos. Só assim será possível golpear esse bastião de classe do reacionarismo que seguirá sua sanha por ataques e autoritarismos.

Contra os empresários da fé, como Silas Malafaia e Edir Macedo, é necessário mostrar que estiveram a favor de todas as reformas e ataques. É preciso efetivamente separar Igreja e Estado, contra essas forças que sonham com um regime teocrático. Essas igrejas lucram vendendo a ilusão do paraíso no céu porque são parte daqueles que semeiam as misérias no mundo. As cartas e mais cartas de compromissos ao “povo” evangélico, na realidade são endereçadas em especial às cúpulas de Igrejas, para manter intactos seus interesses materiais, enquanto as maiorias populares estão em uma situação de cada vez maior precariedade e miséria. E isso ao custo de rifar os direitos dos oprimidos, que mais sofrem com esse sistema de exploração e opressão, e assim desmoralizar os setores que, por isso mesmo, têm tudo para estar na vanguarda da luta da nossa classe, à cabeça da força que realmente pode derrotar a extrema-direita.

Para dar um basta aos militares na política é necessário defender a punição de todos os torturadores da ditadura, o fim da lei de anistia que os preservou e protegeu, a abolição dos tribunais militares e de todos os privilégios da caserna. Lutemos para desmantelar todo o entulho ditatorial remanescente da ditadura, como a ABIN e todos os órgãos de espionagem e repressão, assim como o reacionário artigo 142. Sem um programa como esse, levantado por setores de massas, os militares continuarão sendo uma força no regime político, independente de quem seja eleito.

É preciso consolidar a auto-organização e a luta dos trabalhadores. Sem essa força, dos “de baixo”, não será possível combater o enraizamento do bolsonarismo. Em cada local de trabalho, bairros e locais de estudo é possível construir uma força que de fato se enfrente com o bolsonarismo. Contra a ditadura militar, foi a insurgência poderosa das greves, piquetes e passeatas organizados pelos trabalhadores que fez tremer esse regime autoritário. Na contramão dessas tarefas estão burocracia sindicais que se negam a unificar efetivos e terceirizados, trabalhadores formais e informais, a partir de um programa que responda aos problemas estruturais do país e, inclusive, às demandas mais imediatamente sentidas pela classe. Estão completamente afastados de suas próprias bases e cumprem um papel central de frear a luta de classes. Estão em uma verdadeira trégua com o governo há muito tempo, o que na prática proporcionou tempo para Bolsonaro se recompor e avançar em suas recomposição de votos como se expressou no primeiro turno.

A radicalização burguesa, produz uma direitização do conjunto do regime político, incluindo os partidos que se colocam como sua ala à esquerda. Novamente a conciliação de classes, agora com o grande capital financeiro, é apresentada como o único remédio para barrar a extrema-direita. Ao contrário, essa é a política que a fortaleceu. Seus efeitos novamente se expressaram no primeiro turno, com o fortalecimento e institucionalização da extrema-direita.

A contenção dos processos de luta e a aliança com a direita, em primeira instância, serve para desarmar a luta de classes e permitir que o bolsonarismo siga se fortalecendo. Não há outro caminho que não construir uma alternativa política com independência de classe e organizar um combate consequente contra a extrema-direita e seu projeto social, articulado com a preparação da vanguarda para lutar contra as reformas, privatizações e novos ataques que estão por vir.


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Danilo Paris

Editor de política nacional e professor de Sociologia
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