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25 de julho: ESPECIAL MULHERES NEGRAS | As lutas das mulheres negras pelo direito à educação

Não podemos falar de democratização do sistema educacional se não consideramos o local de marginalização social, econômica e cultural de que partem os negros comparados àqueles ditos como privilegiados. O que não quer dizer que em seus contextos sociais mais específicos não há uma cultura complexa e de resistência que deva ser apreendida e servir de base para fortalecer as lutas por um novo projeto de mundo livre de toda exploração e opressão.

sábado 25 de julho de 2015 | 03:15

Os diversos eixos de opressão (sexista, racista, classista e lgbtfóbica) e suas expressões são constantemente invisibilizados, levando-nos a acreditar num caminho universalizante da experiência de ser mulher ou homem, negro ou branco. A pobreza e as consequentes inoportunidades são historicamente racializadas e precisam ser entendidas como tal.

Para o capitalismo se desenvolver foi necessário um processo de acumulação de riqueza que só foi possível graças ao sequestro de africanos para serem escravizados nas colônias dos países imperialistas e à espoliação de seu continente. Ou seja, a escravidão foi base estrutural da constituição do capitalismo. Não é por acaso que a Inglaterra foi o polo da Revolução Industrial e era quem monopolizava o tráfico negreiro. Negros trabalharam nos latifúndios, extraíam o ouro, amamentaram os filhos das sinhás, foram estupradas por seus sinhôs. Não eram considerados humanos, recebiam todo tipo de tortura, não recebiam salários e entregavam todo fruto de seus trabalhos aos seus donos. Quando fugiam para quilombos eram caçados por capitães do mato, mortos pelos bandeirantes.

Ao ser abolida a escravidão, a vida não significou liberdade, mas sim outra situação de precariedade: sem qualquer ressarcimento por parte do Estado, sem os direitos que os brancos tinham, as possibilidades de sobrevivência que lhe restavam advinham de trabalhos sub-humanos, morar em zonas periféricas, preconceito. Ou seja, o racismo institucionalizado e expresso nas relações sociais foi a herança passada às gerações, o que se repercute, material e subjetivamente, no acesso pleno aos direitos ditos essenciais e à reprodução de desigualdades, como a educação.

O racismo institucional impede formação mais qualificada de negros e negras, quando coloca-os no ensino básico de baixa qualidade e quando sequer apresenta a formação superior como uma possibilidade real, delegando-os postos de trabalhos precários e mal remunerados enquanto rebaixa os salários de conjunto dos trabalhadores, já que há um enorme mercado de homens e mulheres que podem trabalhar por um preço muito menor. Se não houvesse lucro sobre o racismo, este não se manteria.

Ainda que com muitas limitações, o aumento da oferta da formação no nível superior se deu a partir da ampliação da rede federal e, sobretudo, da rede privada. Nos anos 2000, ganharam força as ações afirmativas nas universidades públicas, com a implementação de cotas ou bônus para estudantes de escolas públicas, negros e indígenas. A Lei de Cotas passou a ser implementada em 2012. Mesmo assim, as universidades de maior prestígio, como a USP e UNICAMP, seguem resistindo à implementação desta lei e de qualquer política de inclusão a essas populações.

Há pouquíssimos negros estudando nessas universidades devido a anos de educação precária e a um filtro social altamente eficaz: o vestibular. Dos que entram, menos ainda seguem seus cursos, uma parcela ainda mais minoritária avança para a pós graduação e raros chegam a ser professores. Do acesso à permanência e continuação da carreira acadêmica, as possibilidades vão se afunilando. Na USP, por exemplo, que reunia em 2005 4,7 mil professores, o número de negros não chega a dez (0,2%) - dados do livro “Inclusão Étnica e Racial no Brasil”, de José Jorge de Carvalho, professor da UnB e pesquisador do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico).

As cotas raciais cumpre papel importante ao desmascarar a falácia da democracia racial, de que não existe racismo, transferindo o resultado de uma política de mais de 500 anos de genocídio e descaso social em mera incompetência do povo preto. Assim, é uma demanda extremamente necessária e deve estar diretamente ligada à luta pela defesa de uma universidade pública, gratuita e de qualidade a serviço da classe trabalhadora. Mas elas por si só não resolvem os problemas dos negros que sequer completam a educação básica senão atreladas às demandas de democracia universal. É preciso defender um programa que leve até o fim a democratização da educação, que se choque diretamente com os interesses da burguesia e leve ao questionamento da lógica mercadológica cuja educação está submetida, a partir de bandeiras como a estatização das universidades privadas sob administração dos funcionários e estudantes.

Contudo, pode ir ainda mais longe. Ao levantarmos a necessidade de cotas proporcionais ao número de negros de cada estado brasileiro, colocando a proporção de negros e brancos de fora, lá dentro das universidades, impõe-se ao espaço acadêmico a contradição que se expressa em toda a sociedade e se acirra a disputa do conhecimento lá produzido. É preciso disputar o espaço acadêmico e combater o racismo estrutural que se expressa desde a discrepante composição social de trabalhadores e estudantes negros e brancos até o currículo que nega a história de luta e a pesquisa e extensão completamente alheias às demandas deste setor, plenamente subordinados aos interesses de empresas privadas.

Com o aumento das vagas surge o fenômeno chamado da hierarquização, onde estabelecimentos da educação são valorizados a partir de uma escala e os de posição mais alta se mantêm exclusivos de um grupo seleto. Um exemplo disto é na divisão entre instituições públicas e particulares e de cursos “femininos” ou “masculinos”, com mais ou menos inserção mercadológica. Segundo o IPEA, de 2004 e 2009, a matrícula de mulheres no ensino superior público cresceu cerca de 12%, enquanto os homens aproximadamente 25%. Historicamente, o ingresso de estudantes negros nas instituições de ensino superior público relaciona-se à persistência e, diante de vias mais rápidas e menos custosas de ingresso devido ao aumento de vagas no ensino privado ou através de programas como o ProUni e o FIES, os estudantes reconduzem seus esforços para estas novas vias.

“As mulheres que começam a se movimentar para ocupações de nível superior são predominantemente brancas, enquanto há uma forte concentração de mulheres pretas e pardas no serviço doméstico”, aponta a mesma pesquisa do IPEA.

Apesar da taxa de negros ter aumentado mais acentuadamente que a de brancos, deve-se levar em consideração que os primeiros partem de indicadores muito reduzidos quando comparados aos brancos.

No âmbito das escolhas das carreiras, os determinantes sociais pouco variam dos padrões tradicionais. E para compreendermos, é necessário tirar do centro as escolhas individuais, para as quais há muitas explicações, e pensar a partir das bases que alicerçam nossa atual sociedade e suas formas de relações.

Enquanto indivíduos escolhemos, mas a partir de um leque delimitado de possibilidades. Nossas escolhas não são feitas apenas baseadas em nós mesmos nem nas nossas facilidades e competências tidas como inatas. Se assim fosse, como se justificaria as desigualdades, apesar do maior acesso a educação, entre negros e brancos? Em geral, mulheres brancas e negras e homens negros se concentram em carreiras de menor prestígio (ligados ao acesso “fácil” e papéis sociais que comumente ocupam), mas mesmo dentre eles, mulheres brancas ocupam carreiras, na maioria das vezes, melhores que a de mulheres e homens negros.

As instituições escolares com mais prestígio que conduzem às posições de poder econômico e político, seguem exclusivas como no passado. As universidades federais, não por acaso as mais sucateadas (através do REUNI), passaram a receber maior numero de mulheres negras. Universidades de ponta perpetuam mesma composição social e a mesma lógica se aplica à distribuição de cursos: os mais socialmente e economicamente reverenciados pertencem aos mais abastados ainda (medicina, direito, engenharia). Na USP, a atual porcentagem de negros é de 7% e no ano de 2013 teve apenas um aluno preto nos cinco cursos mais disputados (dados da pela Fundação Universitária para o Vestibular – FUVEST).

De acordo com Bourdieu, um importante teórico da educação, o acesso em grande escala ao ensino superior tende a ser mantida em sua essência. Os alunos “bem-nascidos”, que receberam da família um bom investimento, assim como os exemplos ou conselhos capazes de ampará-lo em caso de incerteza, estão em condições de aplicar seus investimentos no momento ideal e no lugar certo. Aqueles que são precedentes de famílias desprovidas são obrigados a se submeter a pressões da instituição escolar ou ao acaso e são conduzidos a investir na hora errada e no lugar errado, um capital cultural (acúmulo de saberes e bens materiais) extremamente reduzido. Por exemplo, uma mulher negra com origens pobres e possibilidades de ensino oriundas de instituições de baixa qualidade que, por ventura, engravida, possui muito menos chances de adentrar ao ensino superior numa escola de qualidade e curso de prestígio quando comparada a um homem branco em situação econômica e social oposta.

As desigualdades mesmo num sistema de ensino aberto a todos não tendem a diminuir espontaneamente, ao contrário, aparenta uma “democratização” quando na verdade perpetua a realidade de reprodução num grau superior de dissimulação e consequente naturalização.

A precarização tem rosto de mulher, e negra. E se hoje não as vemos nas salas de aula, as encontramos 90% das vezes limpando o seu chão, em serviços terceirizados. Uma realidade que tende a aumentar conforme avança a crise econômica que acentua cortes nos direitos sociais, chegando a 9 bi na educação somente neste ano.

Para as poucas negras que adentram às salas de aula, a atual conjuntura nacional de crise na educação se expressa, principalmente através dos cortes nas bolsas de moradia, serviços de saúde, não abertura de vagas nas creches, ou seja, no programa de permanência para seguir os estudos. Nenhum direito é real sem políticas que assegurem sua efetivação. Mesmo com as dificuldades impostas por uma sociedade machista, racista e lgbtfóbica conseguem furar o filtro social do vestibular, conquistam uma vaga e logo de cara vêm seu sonho de ter uma educação de qualidade ir por água abaixo ao passar pelo segundo filtro social, a falta de permanência.

Para fora do contexto universitário (realidade de apenas 19% dos jovens entre 18 e 24 anos, segundo PNAD, 2009), o buraco é mais embaixo. A partir do cruzamento de dados feito pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos (Iesp) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), a pedido da Agência Brasil, revela que dos 5,3 milhões de jovens de 18 a 25 anos que não trabalham nem estudam no país, a chamada “geração nem nem”, mulheres pretas, pardas e indígenas são a maioria (somam 2,2 milhões, ou seja, 41,5% desse grupo). E a realidade que se impõe para muitos é a do crime, tráfico (ser o “aviãozinho”), encarceramento, mortes pelos “auto de resistência”, trabalho precário, marginalização, submetidos a todo tipo de abusos por parte da polícia em cima dos morros, com a liberdade cerceada.

A contra cara da educação é a prisão. Na medida em que as mulheres passam a exercer o papel de chefe de família, buscando, sobretudo no mercado informal de trabalho, obter renda, tornam-se mais suscetíveis à secular criminalização seletiva por crimes. O perfil geral do encarcerado em uma sociedade patriarcal, racista e capitalista não foge a regra: são mulheres jovens, pobres e negras. De acordo com a CPI do Sistema Carcerário, elas têm entre 20 e 35 anos, são chefes de família, pouco estudo e pelo menos dois filhos menores de idade. E segundo o InfoPen, 85% delas cometeram crimes relacionados a entorpecentes ou contra o patrimônio, sem violência, dito em outras palavras, estão presas por crimes que se relacionam com sua própria condição de vulnerabilidade social.

O sistema penal, através de seus mecanismos de controle social oficial (forças policiais, ministério público, juízes) e informal (família, escola, religião, comunidade, mídia), seleciona os indivíduos e seus crimes. E, comparativamente aos homens, as mulheres estão submetidas absurdos ainda mais alarmantes: superlotação, divisão de celas com homens, violência sexual e obstétrica, violações dos seus direitos reprodutivos, menor número de visitas (a solidão da mulher negra se expressa também nesta situação), dentre outras. E é ainda mais chocante a gravidade da situação de mulheres trans submetidas ao encarceramento em estabelecimentos masculinos. Todas dificilmente podem pagar um advogado ou a fiança, correndo maior risco de permanecer mais tempo em prisão preventiva. São mais de meio milhão de mulheres presas, número que duplicou nos últimos cinco anos.

E como podemos resistir à situação de marginalidade que se encontra a população negra desde o momento em que nasce?

A organização combativa desses setores em seus locais de trabalho e estudo aponta o caminho. Retomar métodos de luta baseados na democracia operária tomando pra si as demandas dos oprimidos é ser tribuno do povo, é hegemonizar as demandas dos setores de negros que, inclusive, estão furtados desta possibilidade por pertencerem a geração “nem-nem”. Aqueles que detêm o poder político econômico (burguesia) não podem entregar aos negros e negras, depois de séculos de expulsão do ensino básico para forjar mão de obra semi-escrava para o trabalho precário, ensino laico, gratuito e de qualidade desde a infância até a vida adulta.

E a real democratização não ocorreu nem se dará pela via exclusiva do sistema educacional, senão através da organização pra luta em diversas frentes simultaneamente. Devemos ter plena consciência que fazer justiça aos pretos e pretas significa fazer uma transformação radical na sociedade, que vai desde a reforma agrária e urbana até o fim da violência policial e do sistema prisional. E a luta por melhores condições na educação para os pretos não pode estar desligada de todas as outras, porque a falta de moradia, o genocídio da população preta, principalmente de sua juventude, seu encarceramento, a necessidade de trabalhar desde cedo, a ocupação dos cargos mais precarizados, etc, fazem parte do conjunto de fatores sociais que tiram esses jovens das escolas desde a cedo e que não permitem que os mesmos entrem nas universidades, ou sequer vejam o ensino superior como algo possível.

Temos que seguir o exemplo de Zumbi de Palmares, Dandara, Malcolm X, Panteras Negras, e tantos outros que se armaram contra a opressão ao povo preto. É preciso entender que devemos lutar pelo necessário, não pelo possível na legalidade de um poder que nos aprisiona, e que nossa luta deve ter como norte a certeza de que só seremos livres com a libertação de toda a humanidade, com o fim de toda forma de opressão e exploração da classe trabalhadora.

Referências:

ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Pelas mãos da criminologia. Revan, 2013.

http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/livros/livros/livro_dossie_mulheres_negras.pdf

http://www.tonorumo.org.br/2014/03/desigualdades-de-raca-e-genero-afetam-caminhos-profissionais/

http://www.tonorumo.org.br/2013/11/mais-de-70-dos-jovens-que-nao-estudam-nem-trabalham-sao-mulheres/

http://blogueirasfeministas.com/2013/02/mulheres-e-prisao/

http://www.pragmatismopolitico.com.br/2013/05/usp-teve-apenas-1-calouro-negro-entre-os-cursos-mais-disputados.html

https://www.revistaensinosuperior.gr.unicamp.br/artigos/acesso-ao-ensino-superior-no-brasil-equidade-e-desigualdade-social

http://noticias.universia.com.br/destaque/noticia/2005/12/26/454107/professores-negros-so-menos-1-nas-universidades.html




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