Logo Ideias de Esquerda

Logo La Izquierda Diario

SEMANÁRIO

As heranças modernistas a serviço do proletariado

Afonso Machado

As heranças modernistas a serviço do proletariado

Afonso Machado

Faz cem anos que o céu tremeu mas a terra permaneceu intacta . Na mistura elitista do café com leite, a pátria conservadora das oligarquias( economicamente erguida pela atividade agroexportadora) estava com as mãos trêmulas, mal conseguindo evitar que a xícara batesse contra o pires. Tudo indicava que uma parte da louça poderia ter sido quebrada ou ao menos trincada no Brasil de 1922. Ainda que isto não tenha ocorrido, 1922 tornou-se uma espécie de divisa para representar a rebeldia e a agitação social na história do Brasil. Naquele ano o sopro inflamado da Revolução russa de 1917 acendeu labaredas na consciência do movimento operário brasileiro, ocasionando no mês de março na fundação do Partido Comunista. No mês de julho eclodiria no Forte de Copacabana a primeira manifestação de revolta dos tenentes, que insurgiram-se contra as práticas de corrupção da República do café com leite. Mas como vem sendo demonstrado pelo jornalismo cultural do momento, foi em fevereiro que a tempestade começou: a Semana de Arte Moderna promoveu sob o ímpeto escandaloso a atualização estética enraizada no vanguardismo europeu, desafiando as tradições literárias e plásticas que os modernistas classificavam de “ passadismo “.

Levando em conta que o espectro do comunismo rondou o Teatro Municipal de São Paulo em 1922, por que ele foi ignorado pela Semana de arte moderna? Será que os comunistas brasileiros da década de 1920 prestaram atenção no modernismo brasileiro? Não é possível refletir sobre os limites históricos do modernismo brasileiro sem conceber as relações entre arte e revolução: em nossa Era, o completo florescimento de uma arte libertadora, de uma nova cultura, possui uma profunda conexão com a revolução proletária. Da mesma maneira que uma reforma do verso não acarreta em literatura revolucionária, o reformismo político não possibilita a emancipação da classe trabalhadora; e isto vale tanto para 1922 quanto para 2022.

A assertiva de que os rumos da arte na sociedade capitalista se encontram com a revolução socialista, baseia-se no fato de que o isolamento das revoltas artísticas circunscritas no ambiente das classes abastadas, conduz ao esvaziamento das suas intenções transgressoras originais: a neutralização por meios acadêmicos ou midiáticos é o resultado histórico imposto aos movimentos literários/artísticos que inicialmente rebelaram-se contra a cultura oficial, mas posteriormente foram integrados a ela. As lutas da classe trabalhadora e as formas de oposição artística possuem profundas afinidades. Se hoje desejamos imprimir uma perspectiva cultural definitivamente revolucionária, existe então a necessidade do proletariado manter sua independência política de classe e ao mesmo tempo apropriar-se das revoltas artísticas do passado, inclusive das inovações estéticas do modernismo . É preciso sempre colocar o pingo nos “ii” quando se discute as heranças do modernismo brasileiro.

As noitadas de 13, 15 e 17 de fevereiro ocorridas no Teatro Municipal de São Paulo foram de fato aquilo que na época chamava-se de “ bruta sacudida na arte brasileira “: exposições de pinturas e esculturas, conferências, leituras de poemas e execuções musicais promoviam o enterro da arte clássica/acadêmica. Essa trovoada cultural trouxe hipertensão no público burguês mas passou despercebida pelo proletariado. A cidade de São Paulo em seus primeiros e promissores traços industriais reunia as condições objetivas para a implementação da modernidade, ao passo que esta mesma situação econômica estava em desnível com a mentalidade provinciana, carola e apegada ás tradições conservadoras. Historicamente o modernismo paulista teve a missão de tentar dinamitar a atitude solene e bem comportada da intelectualidade do período.

A grosso modo, os jovens modernistas eram filhos rebeldes da burguesia cafeeira que dissociavam revolução estética de revolução social/política. Diferentemente do que ocorreu na Rússia de Maiakóvski, os modernistas brasileiros inseriam em suas obras os procedimentos estéticos do futurismo, do expressionismo e do cubismo para estabelecer os parâmetros modernos de uma autêntica arte brasileira, mas que contraditoriamente não tratava criticamente do país concreto, isto é, dos dramas das massas urbanas e rurais. Porém, todo este esforço iconoclasta interessa muito ao materialista histórico. A própria radicalização estética e política que algumas expressões do modernismo brasileiro atravessariam entre o final dos anos de 1920 e durante a década de 1930, comprovam este interesse. Mais adiante retomaremos este ponto.

Certamente o abismo econômico e social que separava a classe operária de um lado e o ambiente bem abastado dos modernistas do outro, acarretou na desconfiança e no desprezo das lideranças do movimento operário pelo escândalo modernista. Salvo algumas exceções como Mário Pedrosa, podemos afirmar que a crítica marxista não deu muita bola para o modernismo dos anos de 1920. Com as orientações estéticas do stalinismo cultural a partir dos anos de 1930, parte significativa da esquerda irá dissociar cada vez mais modernismo e marxismo, arte de vanguarda e arte engajada, sendo raros os momentos em que forma revolucionária e conteúdo revolucionário constituíram uma unidade. Durante muito tempo marxistas brasileiros ficaram mergulhados no enfadonho zigue zague entre o Realismo Socialista e o Realismo Crítico. Felizmente nos encontramos hoje numa situação em que a crítica de esquerda pode se modificar, desde que os militantes considerem a necessidade histórica de assimilação das conquistas modernistas por parte dos escritores e artistas da classe trabalhadora.

As realizações modernistas, obviamente datadas, compõem paradoxalmente nos nossos dias uma tradição de ruptura. As condições históricas que geraram o modernismo brasileiro não existem mais, pertencem a um momento específico de nossa história. Outrossim, a produção artística que ignora amarras estéticas e está organicamente ligada aos interesses da classe trabalhadora, precisa cerrar fileiras na luta contra as forças conservadoras do presente. É precisamente neste sentido que pode ocorrer um encontro da atual geração de artistas e militantes de esquerda com o legado modernista. Na organização da tradição cultural revolucionária deve-se abrigar, dentre outras referências históricas, os momentos explosivos das vanguardas europeias e do modernismo brasileiro.

É verdade que dentro das subcorrentes do modernismo brasileiro que se sucedem após a Semana de 22, não raramente simpáticas ao nacionalismo entrelaçado com o conservadorismo político , a perspectiva da revolta e do escândalo presente na modernidade estética, foi reprimida ou posta de lado. Todavia, o caráter transgressor da modernidade seria assumido no final daquela década por outras tendências modernistas, em especial pelo movimento antropofágico capitaneado por Oswald de Andrade. Em sintonia com movimentos culturais europeus subversivos como o Dadá e o Surrealismo, o movimento antropofágico teve sua pedra de toque no Manifesto Antropófago assinado por Oswald e publicado em 1928. Os modernistas antropófagos ressignificam o nosso passado colonial a partir da recusa dos padrões culturais do colonizador europeu, do qual a burguesia cafeeira de 1920 é herdeira: a metáfora do índio canibal com sua moral oposta a do colonizador cristão europeu do século XVI, representava em 1928/30 não apenas a necessidade de uma digestão/assimilação crítica da arte moderna europeia , mas a recusa dos padrões culturais da burguesia. Apesar das suas profundas contradições de classe e confusões ideológicas, Oswald e seu bando conferem um caráter artístico subversivo e uma postura perturbadora, ligadas por sua vez ao pano de fundo da luta de classes. A mesma atitude transgressora é verificável em outras tendências modernistas subterrâneas da época , como ilustra a agitação que intelectuais como Mário Pedrosa e Lívio Xavier realizam na cidade do Rio de Janeiro a partir da influência do Surrealismo. A arte dos antropófagos e dos surrealistas(vide a influência do Surrealismo na ala antropofágica, como atesta por exemplo a colaboração episódica do poeta surrealista e trotskista francês Benjamin Péret no grupo de Oswald) possui conexões com o clima revolucionário que a sociedade brasileira atravessava entre 1929 e 1930.

A crise econômica internacional inaugurada com a Quebra da Bolsa de Nova York em 1929 atingiu o Brasil: a Alta do Café, verdadeira base econômica do modernismo paulista, foi abalada pela Grande depressão, que arrancou os pés de café e queimou seus grãos milionários. Desemprego, fome, falências, proletarização da classe média... A exemplo do que ocorria em outros países capitalistas, a luta de classes se intensifica no Brasil. Porém, a direção política do proletariado em torno do PCB, já sob o influxo stalinista, foi incapaz de liderar as massas para a realização da revolução naquele cenário de intensa agitação social e política. Lamentavelmente a dianteira seria tomada no seio político das oligarquias: as disputas políticas no interior da classe dominante brasileira levariam aquilo que certos historiadores e jornalistas classificam como Revolução de 30, evento que colocou Getúlio Vargas no poder.

Concebendo o movimento dialético neste cenário conturbado de 1929/30, podemos afirmar que a atitude inventiva, provocadora e anárquica de artistas como Patrícia Galvão, Flávio de Carvalho e Oswald de Andrade encontram-se historicamente com a necessidade da revolução proletária, visto que as estratégias artísticas iconoclastas destes(e de outros poucos nomes do modernismo) contribuíam com a crise moral, com o abalo das convenções burguesas e com o descrédito frente aos padrões da cultura dominante. Não por acaso, Oswald de Andrade e Patrícia Galvão iriam sair de dentro dos salões do modernismo para olharem atentamente as ruas, a vida nos bairros operários e logo se engajarem na luta proletária. Antes de Oswald e Pagu, o pintor Di Cavalcanti já havia se aproximado das ideias comunistas. Agora os problemas concretos do Brasil passam a ser representados pela arte moderna brasileira. A pintora Tarsila do Amaral, por exemplo, contribuiu de maneira extraordinária com a arte social, ainda que tenha sido algo episódico em sua obra. O fato é que a aproximação e adesão de parte dos quadros modernistas ao movimento operário, representa um dado político que permanece como paradigma: enquanto os artistas e intelectuais de classe média não saírem dos “ salões “, não ultrapassarem os muros sociais para a realização de uma interação cultural revolucionária com o proletariado, as transformações estéticas na arte e na literatura ficam com o seu movimento incompleto.

Qual poderia ser o interesse de artistas e da juventude de hoje pela Semana de Arte Moderna e pelos desdobramentos históricos do modernismo brasileiro? O que 1922 teria a dizer para 2022? As experiências estéticas modernistas dos anos de 1920/30 acrescentariam exatamente o que para a múltipla e fragmentada produção artística dos nossos dias? O que esperar do futurismo quando este virou passado? Revisitar as contribuições do modernismo brasileiro para a literatura e para as artes é um imperativo de toda pesquisa histórica séria. Entretanto, o pesquisador que tem por objetivo uma intervenção crítica mais direta sobre a vida cultural, precisa se perguntar por que a classe trabalhadora brasileira ainda permanece do lado de fora do Teatro Municipal de São Paulo; quer dizer, como contribuir para que o proletariado estabeleça um contato crítico com a herança modernista. Enquanto que para a classe média de hoje o escândalo modernista de ontem não passa de peça embalsamada e destinada ao diletantismo, para os escritores e artistas populares a herança modernista pode ser um dos alimentos estéticos para a arte revolucionária de amanhã .

Levando em conta que o conservadorismo e o puritanismo atingem hoje parcelas da classe trabalhadora, quem poderia negar a importância libertária e provocadora de um autor como Oswald de Andrade, o nome mais audacioso da Semana de 22, para esta classe? Dentre as obras legadas pelo modernismo paulista seria importante aqui destacar o romance Parque Industrial(1933) escrito por Pagu e assinado com o pseudônimo de Mara Lobo. É fundamental que as mulheres trabalhadoras mergulhem na prosa de Pagu. Este romance, que acaba de ter uma belíssima reedição pela Companhia das Letras, é um exemplo notável de como a inventividade estética reivindicada pelo modernismo articula-se com a denúncia social, com a exposição crítica da exploração e da miséria do proletariado, em especial das mulheres proletárias. Parque Industrial, fruto politicamente amadurecido da rebelião estética iniciada em 1922, permanece(apesar de certos equívocos na leitura política da época) como obra necessária: ao contrário do que alguns marxistas acreditam, a prosa experimental deste romance(que remete por exemplo ao corte cinematográfico) comprova que a literatura de vanguarda pode fortalecer o Realismo social. Nesta obra, marxismo e modernismo se encontram numa boa.

Se muita gente hoje dissocia gênero e classe, Parque Industrial mostra sua unidade a partir da condição da mulher operária. Devemos acrescentar ainda que é uma escritora feminista e marxista quem narra os dramas sociais: a narrativa do materialismo histórico é enriquecida tanto pelas técnicas de vanguarda quanto pelo olhar feminino sobre a luta de classes. E a literatura brasileira da atualidade com isso? Pode-se dizer que diante de tantas ameaças autoritárias e machistas no Brasil, nunca foi tão necessária a presença de escritoras revolucionárias que podem aprimorar o seu oficio com a leitura atenta deste romance. Pagu, que tinha apenas 12 anos quando ocorreu a Semana de Arte Moderna, é um exemplo vivo de que o modernismo pode ser colocado a serviço da classe trabalhadora.


veja todos os artigos desta edição

Afonso Machado

Campinas
Comentários