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As armadilhas do liberalismo na luta das mulheres negras

Letícia Parks

Flávia Telles

Ilustração: Juan Chirioca

As armadilhas do liberalismo na luta das mulheres negras

Letícia Parks

Flávia Telles

Esse artigo [1] é um capítulo do livro Mulheres Negras e Marxismo, nova publicação das Edições Iskra, que reúne uma série de ensaios e debates sobre o tema, e será lançado neste mês de março.

O ano de 2020, durante o qual revisitamos essa reflexão, iniciada pela primeira vez em 2019, foi marcado por uma pandemia que chocou o mundo e para muitos, significou a gota d’água para o sistema capitalista, que se provou incapaz de impedir a circulação de um vírus e a morte de milhões. Um sistema marcado pelo patriarcado e o racismo, associados de forma voraz à exploração capitalista, fez com que dentre as distintas catástrofes aceleradas pelo vírus, fossem as negras, negros, migrantes, indígenas e trabalhadores quem pagasse mais caro pelos efeitos da economia capitalista sobre a pandemia. Dessa síntese, sensível a setores amplos, surgiu também nesse mesmo ano a maior luta de massas da história dos EUA, tendo como estopim o assassinato de George Floyd e crimes racistas que vitimaram Breonna Taylor, entre outros nomes que jamais serão esquecidos na nossa luta. Uma das marcas mais importantes desse processo de luta, que se tornou mundial, é o questionamento a uma das instituições mais importantes do Estado capitalista que é a polícia, um questionamento que amedronta toda a burguesia que sabe que a partir daí distintos setores podem se aproximar de métodos e questionamentos ao conjunto do sistema capitalista. É por isso que mais do que nunca, teses liberais se infiltram em nossos movimentos buscando nos convencer de que a superação do racismo se dá com alguns assumindo postos de poder enquanto a grande massa de negros e negras seguem exploradas, sem alterar as bases da sociedade, uma armadilha que para nos convencer tem como aliados a grande mídia burguesa, multinacionais e personalidades de destaque da intelectualidade, da política e da indústria cultural.

Nesse artigo, nos dedicamos a debater a perspectiva liberal presente na obra de Djamila Ribeiro, tida como uma das principais intelectuais negras do país. Queremos debater sua perspectiva, pois ao nosso ver estão diretamente ligadas a visão liberal e, portanto, objeto da necessária crítica sob uma perspectiva das e dos trabalhadores, uma perspectiva que se pretende anticapitalista. Sua obra opta por contribuir, direta ou indiretamente, com esse projeto de desvio das nossas aspirações, e nesse sentido, uma abordagem crítica se faz necessária para construir uma fórmula política que unifique a luta contra o racismo e o patriarcado à luta pela superação desse sistema de miséria que é o capitalismo.

A relação entre raça, classe e gênero para o feminismo marxista

Em termos gerais abordaremos esses conceitos que poderiam ser desenvolvidos de forma mais complexa, para que seja possível apresentar os fundamentos que dão sentido ao debate que desenvolvemos mais adiante, no sentido de construir uma perspectiva de combate profundo e radical contra o racismo e o patriarcado.

A relação entre raça, classe e gênero não é a-histórica e natural, mas é determinada a partir das relações sociais construídas, reproduzidas e reinventadas pela sociedade de classes. Assim como afirma Engels [2], ainda que a opressão à mulher seja anterior ao surgimento do próprio capitalismo enquanto sistema econômico, sua origem coincide com o desenvolvimento da sociedade de classes. Em A origem da família, da propriedade privado e do Estado, Engels explica: “o primeiro antagonismo de classes que apareceu na história coincide com o desenvolvimento do antagonismo entre o homem e a mulher na monogamia; e a primeira opressão de classes, com a opressão do sexo feminino pelo masculino” [3].

Já o racismo é um fenômeno datado da acumulação capitalista. O comércio de escravos, como um enorme empreendimento nas Américas, marca de vez as possibilidades da transição do feudalismo ao capitalismo. Enquanto um negócio altamente lucrativo, ele é parte do violento processo da acumulação primitiva de capital, e para sustentar o horror que inaugura o capitalismo é criada uma justificativa ideológica da raça para escravizar os negros africanos, como explica Breitman (2015) em base a diversas leituras da antropologia dedicadas a esse estudo.

É no feroz processo da acumulação primitiva de capital, marcada pela escravidão, o roubo e a pilhagem, que se insere o surgimento do racismo. Com isso, a relação entre gênero, raça e classe está marcada pelo surgimento da sociedade de classes e a análise e a superação da opressão racial e de gênero não pode prescindir dessa relação.

Nas relações de escravidão, mulheres e homens negros foram “igualados”, não pela vontade de um senhor ou outro que não discriminava mulheres negras como “frágeis”, mas porque igualar negras e negros era o que possibilitava ainda mais a exploração do trabalho e, portanto a obtenção de mais lucros [4]. Ou seja, a opressão racial e de gênero é uma ferramenta para a exploração do trabalho, e ainda que tenha suas manifestações na relação entre indivíduos e que transcende as classes sociais, a vantagem da sua existência só se concretiza na relação entre as classes sociais.

Ao contrário do que apregoam as leituras liberais, racismo não é apenas um problema ético, uma categoria jurídica ou um dado psicológico. Racismo é uma relação social, que se estrutura política e economicamente. Por ser uma relação social - portanto, dotada de materialidade e historicidade -, o fenômeno do racismo não escapou das lentes da teoria marxista. [5]

Portanto, como marxistas nós partimos da ideia de que o racismo é estrutural para o funcionamento e manutenção do capitalismo, e apesar de se manifestar também do ponto de vista individual e institucional, é antes de tudo uma relação social que tem origem, se manifesta e tem sua engrenagem na sociedade do antagonismo de classes, no qual o Estado é um instrumento da dominação de uma classe sobre outra. Essa funcionalidade é verificável pelo fato da abolição da escravidão não ter abolido o racismo como ideologia opressora. Se antes ele servia para justificar a escravidão, agora ele é funcional a exploração desenfreada do trabalho assalariado, que se utiliza do racismo e do machismo para rebaixar o valor da força de trabalho e ampliar a lucratividade do capital.

Frente às ondas de luta das mulheres e luta negra nos últimos anos, vimos uma tentativa por parte da burguesia, através da mídia de massas, da criação de produtos dirigidos às mulheres negras, de buscar nos convencer de que haveriam formas de diversificar ou colorir o capitalismo, buscando alterar e rebaixar nosso teto de aspirações, deslocando o que pode ser uma luta e pautas mais massivas à satisfação reduzida de ter alguns representantes em um mundo no qual somos muito pouco representadas. Essa perspectiva vem acompanhada de uma série de discursos políticos e teóricos que cumprem o papel de nos deslocar desse combate massivo a um combate individual, que pouco consegue dialogar com os dilemas vividos pela grande massa de mulheres negras espalhadas pelo nosso país. Analisemos, portanto, esses discursos.

Empresas “antirracistas” e a ilusão de um capitalismo negro

O preconceito racial contra o negro surgiu para justificar e preservar o sistema de trabalho escravista que operava de acordo com os interesses do capitalismo nos estágios pré industriais, e manteve-se ligeiramente modificado pelo capitalismo industrial após a escravidão se tornar um obstáculo para o desenvolvimento posterior do capitalismo e ser abolida. Poucas coisas no mundo estão mais carimbadas pelas características do capitalismo. [6]

No Brasil, as mulheres negras chegam a receber em média 60% a menos que os homens brancos, e representam uma parte enorme da classe trabalhadora. Mulheres brancas recebem 30% a menos que homens brancos, e homens negros também 30% a menos que estes. Ou seja, com o patriarcado e o racismo, a enorme maioria feminina e negra (ambas mais de 50%, sem cruzamento dos dados) recebe salários menores, o que faz com que a própria divisão internacional do trabalho seja calculada também através da distribuição dos setores oprimidos em cada país. O Brasil não seria o país do trabalho precário, dos baixos salários, sem racismo e sem patriarcado e, seguramente, seria mais difícil para empresas como a Ifood, Uber, Rappi ou 99 justificarem a ausência completa de direitos trabalhistas não fosse a marca do racismo disseminada sobre a vida de milhões em nosso país [7].

É por isso que é impossível levar adiante um combate antirracista que esteja associado ou apoiado nas empresas. O racismo se materializa com salários menores e perda de direitos trabalhistas – e também com moradia precária, violência policial, evasão escolar e uma infinidade de efeitos duríssimos na vida de negras e negros. Como é possível contar com aliados uma classe de pessoas – os capitalistas, os banqueiros, os grandes empresários – que são justamente as pessoas que vivem do lucro que vem do ataque a essas condições? As massas trabalhadoras, essa maioria feminina e negra, têm interesses opostos aos capitalistas, inclusive, a nossa história se enfrentou o tempo todo com esses interesses.

O racismo que foi fundado para justificar a escravidão de um continente inteiro nos roubou das nossas terras e serviu para a acumulação capitalista. Depois, já enriquecida, essa burguesia assume o poder e mantém o racismo vivo para justificar o domínio sobre as colônias. São as massas negras revolucionárias no Haiti – junto com as mulheres trabalhadoras francesas – que mostram essa contradição e enquanto a França se torna um dos primeiros países em que a burguesia alcança o poder político, haitianas e haitianos apontam a contradição e pela sua própria liberdade, se separam da burguesia escravocrata francesa.

A nossa luta, hoje, separada das empresas, incansável na denúncia dos bancos que terceirizam mulheres negras, das empresas por aplicativo que retiram direitos e o salário da juventude negra, da mídia burguesa que promove racismo institucional e apoia reformas contra a classe trabalhadora, serve para apontar um caminho da grande aspiração histórica que podemos ter: derrotar esse sistema capitalista e abandonar a divisão do mundo entre classes, e nesse caminho, varrer todo racismo da sociedade.

A burguesia dos dias de hoje é herdeira de séculos de escravidão. Os corpos e o trabalho negro e indígena foram partes constitutivas da acumulação primitiva de capital que permitiu um salto na produção de riquezas nunca antes visto pela humanidade. Ser antirracista e contribuir com os grandes empresários, como banqueiros e empresas de aplicativos é uma contradição em si mesmo. Apesar de parecer que esse caminho, trilhado por alguns intelectuais e artistas, seja uma forma de apaziguamento do racismo, a ideia de que seja possível construir um projeto em comum com os maiores defensores do sistema tal como é – os capitalistas – se constitui como uma das armadilhas intelectuais mais importantes que atuam no caminho oposto de uma perspectiva teórica e política que se apoia exclusivamente na força da classe trabalhadora – uma maioria feminina e negra – para mudar essa realidade. Assim, damos seguimento a esse artigo em um debate com uma das maiores defensoras desse caminho, a filósofa Djamila Ribeiro.

Qual caminho?

O último livro da filósofa Djamila Ribeiro, intitulado Pequeno manual antirracista, foi recorde de vendas no Brasil. Esse dado mostra a fome de milhares de atuar de imediato contra essa doença social que é o racismo, que atinge o conjunto da vida cotidiana, da entrevista de emprego às festinhas com amigos. E Ribeiro debate sobre cada um desses espaços, numa obra acessível a muitos tipos de público leitor. Entretanto, a autora que é conhecida por uma espécie de radicalismo antibranco (com afirmações fortes de rechaço às opiniões de pessoas brancas em debates sobre racismo, entre outras verificáveis em suas matérias publicadas na Folha de São Paulo), nessa pequena obra anuncia um novo curso para a orientação política de quem a lê.

A associação aberta às empresas compõem algumas das sugestões do manual, mostrando que para ocupar o espaço que lhe foi oferecido pela mídia burguesa de massas, foi necessário um rumo pró-capitalista de seu discurso político. No livro, ela diz:

Se você tem ou trabalha numa empresa, algumas questões que você deve se colocar são: qual a proporção de pessoas negras e brancas em sua empresa? E como fica essa proporção nos cargos mais altos? Como a questão racial é tratada durante a contratação de pessoal? [...] Se quisermos pensar essa questão pelo viés econômico, vale lembrar que uma equipe diversificada aumenta seu potencial produtivo: segundo estudiosos do tema, como Reinaldo Bulgarelli, um ambiente diverso estimula a criatividade. [8]

Fica evidente que o objetivo do texto é a construção de uma abstrata diversidade nas empresas, que teriam como efeito o aumento da “produtividade” das mesmas. Onde se lê produtividade, é importante entender que se trata de um objetivo abertamente capitalista. O aumento de produtividade é a capacidade que tem os capitalistas de, em uma dada jornada, a partir de nova maquinaria, tecnologias e outros recursos, aumentarem o trabalho excedente, ou seja, o montante de mais-valia, o que leva a aumentar a massa de lucro. Produtividade é a matéria-prima da mais-valia, ambas resultantes da exploração do trabalho humano, a estrutura social que mantém o capitalismo vivo e que é constantemente alimentada pelo próprio racismo e o patriarcado [9].

A contradição inerente ao texto de Ribeiro é que um dos elementos mais “produtivos” do capitalismo e toda empresa altamente lucrativa é o fato de que se apoiam justamente no racismo para isso. Empresas com enorme composição negra, por exemplo, são as terceirizadas de limpeza, que pagam salários de miséria para negras e negros. Empresas como Walmart ou Carrefour, onde mesmo que existam negras e negros em cargos de chefia, as caixas, faxineiras, vendedoras, balconistas, continuam sendo uma enorme maioria negra que recebe os salários mais baixos já que numa sociedade racista, é natural para qualquer capitalista que se possa pagar menos a negras e negros porque a relação entre salário e custo de vida permite que, ao viver em condições de vida piores, negras e negros recebam também salários menores.

Seria possível ter medidas que melhoram as condições de trabalho e combatem o racismo nos locais de trabalho com o intuito de fortalecer os trabalhadores numa perspectiva antirracista. Ainda que as propostas de Ribeiro pareçam as mais “viáveis” para melhorar a situação dos negros, há uma série de medidas que poderiam fazer parte de um manual da luta antirracista ao lado dos trabalhadores que devem ser recuperados na tradição da luta da nossa classe e colocados na ordem do dia dos combates em nosso tempo. Em 1922, o IV Congresso da III Internacional votou uma resolução sobre a questão negra em que defendem, por exemplo, a igualdade salarial imediata entre negros e brancos em todas as empresas, uma reivindicação que colocou o marxismo na ofensiva como a primeira tradição da classe trabalhadora a se enfrentar contra o racismo em uma resolução internacional e com uma perspectiva proletária, que é necessariamente a única que consegue ser massiva. Essa perspectiva se complexifica durante o século XX e terá em Leon Trótski e no seu Programa de Transição a forma mais acabada do que pode ser um programa efetivo de luta contra todas as opressões e contra o capitalismo, com propostas “viáveis” a partir da luta organizada da classe trabalhadora. Unificando a tese de 1922 da III Internacional com o Programa de Transição de Trótski é que hoje cabe a qualquer socialista antirracista defender a efetivação das terceirizadas, todos os direitos e salários dignos a entregadores e domésticas, entre outras medidas que os capitalistas que se dizem “antirracistas” se recusam a fazer.

Nós como marxistas não estamos contra a elevação da produtividade em geral, mas entendemos isso como produtividade de riquezas que estejam em prol do desenvolvimento humano, da melhoria nas condições de trabalho e do intercâmbio equilibrado com a natureza, o que em tudo é oposto à produtividade capitalista. Em outras palavras, a chave não é aumentar a “diversidade”, que como mostrada acima, está muitas vezes a serviço da super exploração. A verdadeira diversidade, que perpassa igualdade de condições de trabalho, de direitos, tem uma solução de fundo que passa pela planificação da economia e o socialismo, porque isso trará uma racionalidade e elevação da produtividade muito superior à existente no capitalismo, mesmo imperialista, de modo a responder às necessidades da humanidade e elevar as condições de existência do conjunto da população mundial. Mas para isso acontecer é preciso acabar com a propriedade privada dos meios de produção, que está na raiz da exploração capitalista.

Como explica Marx em Salário, Preço e Lucro, “O valor da força de trabalho se determina pela quantidade de trabalho necessário para a sua conservação, ou reprodução, mas o uso desta força só é limitado pela energia vital e a força física do operário” [10]. Os capitalistas compram um tempo específico de nosso trabalho, e utilizam da nossa força de trabalho muito mais do que nos pagam em comparação com o que se produz. Nisso que se chama produtividade, elogiado por Ribeiro, se produz o lucro, que é um verdadeiro roubo da nossa força de trabalho e do nosso tempo.

O racismo produz uma redução do cálculo da vida de milhões de não brancos no mundo. Se os salários de negras, negros, árabes, migrantes, orientais... pode ser menor, significa que os capitalistas produziram as condições para que nossas vidas valessem menos para serem reproduzidas e mantidas, e isso se dá através de nos condicionar a viver em condições desumanas de vida: sem saneamento básico, sem água potável, sem alimentos de qualidade, sem lazer. Quando se vê que uma mulher negra recebe 60% a menos que um homem branco no Brasil, uma média do salário nacional, é preciso entender que racismo e patriarcado atuam juntos para promover uma reprodução de vida extremamente barata para toda uma parcela da população trabalhadora nacional, ou dito de outra forma, pros capitalistas, mulheres negras não valem nada mesmo. [11]

A ideia de aumentar a diversidade para aumentar a produtividade é, portanto obviamente pró-capitalista e pró-burguesa, mas para, além disso, nutrir as ilusões de que empresas possam ser antirracistas é não apenas uma contradição de termos como uma mentira desavergonhada. A essência de toda empresa é o capitalismo, a lucratividade, a produtividade, e, portanto, por mais que temporariamente ou individualmente um empresário possa escolher contratar negros e brancos com salários iguais, isso não muda o funcionamento do sistema capitalista de conjunto, que depende dessa desigualdade para existir. O racismo e o patriarcado são elementos constitutivos do sistema capitalista, independente da vontade de Ribeiro ou da camiseta antirracista de Paulo Skaf, industrial brasileiro que sabe que se não fosse o racismo o Brasil não teria ocupado por décadas o polo mais atrativo de trabalho precário que mantém médias salariais “competidoras” para o investidor e os capitalistas de praticamente todas as multinacionais presentes no território nacional.

Os negros no topo e o desejo de se ver representado

A ausência de negras e negros em cargos de comando de empresas ou de representação política é um dos efeitos óbvios do racismo: sem direito à escolaridade, à moradia, à saúde e à participação política, é muito mais difícil para que as mulheres e os negros estejam em cargos de poder ou comando de empresas e em órgãos públicos. Por isso, é compreensível que haja o desejo massivo de se ver representado, um desejo que alimentou uma série de batalhas pelo direito ao voto, a se apresentar como candidato, entre outras lutas que foram levados a ferro e fogo por distintos setores do movimento negro. Esse desejo legítimo, que tem a ver com a angústia pela percepção de si como ser humano, ou seja, como capaz de atingir os cumes da humanidade, não pode ser transformado em uma reivindicação do mérito individual nos marcos do capitalismo, onde o topo de alguns é sempre a miséria de milhões.

Mas o que significa falar de topos no sistema capitalista? O capitalismo é um sistema dividido em classes, fazendo com que o conjunto da população trabalhadora esteja afastada do comando da sociedade porque o poder está nas mãos da burguesia - detentora dos meios de produção - e de seus representantes políticos, que variam em seu conteúdo, defendendo as estruturas mantenedoras da sociedade de formas mais à direita ou mais ao “centro”. O que se chama de topo precisa ser entendido como cargos de poder político ou econômico, no último caso, seja como burgueses diretamente (donos dos meios de produção) seja como diretores, CEOs e chefes de empresas de destaque. Não se trata, portanto nesse artigo de debater a ausência de negras e negros médicos, advogados, com formação intelectual, diplomas universitários. Trata-se de debater o sentido vazio da ideia de que chegar ao topo capitalista transformaria o capitalismo, sendo que a divisão entre topo e chão deve ser entendida como a divisão entre burguesia e proletariado.

Mas muito mais do que o problema, a ausência de negro nos topos é diagnóstico. É quase como se ao identificar uma insônia originada por estresse ou depressão, oferecemos como solução um sonífero, e um sonífero que não pode ser comprado por todos, apenas por uma pequena parte da população. Por mais que possa ajudar a dormir, o sonífero vai atacar apenas um sintoma de um problema enorme, muito maior do que a insônia, e que certamente traz outros efeitos do que apenas a falta de sono. No capitalismo, apoiado no racismo como ideologia fortalecedora da exploração, a ausência de representatividade negra e feminina é apenas um sintoma de uma sociedade cujos efeitos do racismo são visíveis por todos os lados. A representatividade, além de não atacar os problemas mais de fundo que mantém e reproduzem o racismo, carrega dentro de si uma contradição profunda que é a lógica essencialista.

O essencialismo do século XXI prega uma suposta característica comum que unifique todo um grupo social e que mantém a sua integridade como bloco e tem sido alvo de questionamentos no interior do movimento feminista e negro. Anne Phillips em seu ensaio What ’s wrong with essentialism [12] descreve quatro tipos de essencialismo que nos afastam de uma precisão política sobre os grupos sociais. Seriam elas: 1) a vinculação de uma característica a todo um grupo social, por exemplo, ‘todas as mulheres são doces’; 2) a atribuição dessas características à categoria, de forma que se naturalizam essas características e a própria categoria humana, e se retiram todas as construções sociais que compõem a formação dos indivíduos; 3) a invocação de uma categoria humana como sujeito político de forma totalizante, como grupo social atribuído de um conteúdo político a priori; 4) “O policiamento dessa categoria coletiva, o tratamento de suas características supostamente compartilhadas como definidoras que não possam ser questionadas ou modificadas sem que se enfraqueça a reivindicação do indivíduo de pertencer a esse grupo” [13].

As distintas formas de essencialismo descritas por Phillips são verificáveis no cotidiano da política. Enquanto as formas 1 e 2 são frequentes nos discursos que se consideram abertamente patriarcalista ou racistas, a 3 é frequentemente base da reivindicação abstrata de diversidade ou de representatividade, como se a negra ou negro fossem necessariamente combatentes antirracistas apenas por se identificarem como parte desse grupo social, ou pior ainda, como se a presença dessa negra ou negro, independente de sua política ou discurso, fosse um avanço político no sentido de uma sociedade menos desigual, um argumento que esvazia o sujeito de seu conteúdo e transforma sua mera aparência em essência, objetificando e totalizando essa aparência como essência política coletiva. O ponto 4 diz respeito à fiscalização dessas categorias, e é necessariamente derivado do 3. Na medida em que se iguala e totaliza os indivíduos através de sua essência/aparência e através exclusivamente da aparência se lhes atribui um conteúdo político unificador e que permite o pertencimento a esse grupo social, conteúdos advindos de pessoas não negras são considerados alheios a esse grupo social, essencializando, portanto, o conjunto do pensamento filosófico, político e cultural. Marxismo é erroneamente chamado de “teoria branca” e jogado na lata do lixo, como se a essência de suas teses pudesse ser definida pela cor da pele de quem escreveu [14] (e ignorando os milhões de marxistas negros que já passaram pelo mundo). De forma, portanto, essencialistas, a “polícia” da identidade aparece para dizer que só se pode ser negro se não se questiona o que há de mais hegemônico na conjuntura especifica dos debates de negritude, excluindo uma vasta elaboração antirracista que segundo esse discurso hegemônico não seria negro. Assim, ao se questionar ou modificar determinadas categorias, perde-se o direito de ser negro.

Essas formas de essencialismo estão presentes nas obras de Djamila Ribeiro sempre que reivindica os negros no topo, ou quando questiona a identidade de pessoas negras por serem parte de outra vertente política ou teórica. É frequente também o uso do colorismo em seu discurso [15] para atribuir maior legitimidade teórica ou política a si mesma, como se o tom da pele – aparência – indicasse uma maior essência antirracista [16].

A cor da nossa pele ou o gênero que a gente escolhe ter não nos faz necessariamente favoráveis a liberdade das negras e negros ou das mulheres ou das LGBTQ+. Em São Paulo, o vereador do Movimento Brasil Livre (MBL) Fernando Holiday, por exemplo, adora defender pautas de deslegitimação da luta negra, sendo autor, por exemplo, do projeto que acabaria com as cotas raciais. Nos EUA, país em que Trump governou com um ódio racista explícito, já houve um presidente negro, Barack Obama, que ordenou invasão e guerras contra países oprimidos, servindo como um agente da opressão imperialista em várias regiões do mundo. Apesar de toda a aparência simpática e o discurso orientado às negras e negros, foi durante o governo dele inclusive que surgiu o movimento Black Lives Matter, quando Eric Garner foi assassinado pela polícia. Para ocupar os topos capitalistas, negros e negras devem estar embebidos de ideologia capitalista, chave para poder cumprir um papel muito importante para o grande capital, que é servir como apaziguadores dos movimentos sociais.

Com a onda crescente do movimento de mulheres e do movimento negro no mundo, o desespero capitalista faz com que os próprios partidos e corporações mais reacionários precisem colocar alguém com a nossa cara para comandar os interesses deles, porque isso pode criar a ilusão em muita gente de que as angústias que nos levaram para as ruas foram solucionadas, mas isso não aconteceu. A chapa Biden-Harrris veio concorrer contra Trump com esse objetivo, buscando resolver eleitoralmente o fenômeno histórico de luta negra através do usa da figura de Kamala, uma mulher negra ex-policial e uma das grandes representantes a nível nacional de um projeto de criminalização da juventude negra [17]. A verdade é que ao passo que aumenta a representatividade, aumentam também os golpes, o reacionarismo, os ataques contra a classe trabalhadora e o povo pobre, aumentam as mortes pelas mãos da polícia, aumenta o trabalho precário.

O que se desenha como um conservadorismo político – o aconselhamento burguês de diversidade para aumentar a produtividade – é também parte de um conservadorismo intelectual, filosófico e estratégico, e explícito respectivamente: no campo intelectual, se limita a definir teoria e política através da cor da pele e busca encobrir pensamentos e opiniões divergentes, calando intelectuais e sujeitos políticos através do menosprezo de sua identidade negra; no campo filosófico, nega as vertentes filosóficas mais progressistas do nosso tempo que sobrepõem decisão individual e cunhagem social às supostas formações de opinião de fora pra dentro (ou seja, não pensamos através da cor da nossa pele, somos sujeitos da formação do nosso pensamento); no campo estratégico, compartilha de uma ilusão de que haveria uma suposta humanização do capitalismo enquanto o que estamos vivendo é justamente o oposto disso, e limita a nossa atuação a meras pressões e aconselhamentos sobre a burguesia e seus políticos, quando nossa classe tem a força de transformar absolutamente tudo através de uma estratégia orientada à derrota da burguesia com a revolução e a tomada do poder.

Do ponto de vista desse debate de estratégias, não nos serve ver essas duas coisas separadas, a representação e a vida das massas, porque elas são parte de uma mesma operação. Não são dois mundos separados, o topo e o chão. Do topo, ao olharmos o chão, ele ainda vai estar sujo de sangue negro e operário, feminino, LGBTQ+. O liberalismo tem uma armadilha ideológica. Ele é o racismo brutal e ao mesmo tempo uma outra ala do próprio capitalismo que se coloca como o contrário, antirracista, com igualdade de oportunidades. Essa é a grande armadilha: eles colocam dentro do sistema, canalizam para dentro de si mesmos, o rechaço ao que ele tem de mais perverso e brutal.

Por outro lado, cada negra ou negro que se torna uma liderança operária em sindicatos, tribunos do povo, como intelectuais orgânicos dos trabalhadores, grandes artistas que emergem denunciando as mazeleas sociais nos bairros e comunidades e não abrem mão dessa luta, são todas importantes conquistas, porque não é alcançar o topo capitalista, mas o contrário, ser uma liderança dos trabalhadores é ser orgânico, é estar lado a lado, é viver seus dilemas, é colocar o corpo na frente no momento da repressão e tocar junto o seu samba, e nós batalhamos pelos negros estarem na vanguarda dessas necessárias e entusiasmantes lutas, e não servindo às empresas como conselheiros para colorir e servir de exemplo para o grande capital, que são parte da perpetuação do racismo. Obviamente, como proprietários apenas de nossa força de trabalho, toda mulher ou homem que nasce no capitalismo como um trabalhador precisa vender sua força de trabalho, mas o que alguns setores liberais estão propondo é não que sejamos trabalhadores que lutam por uma profunda transformação social, mas sim porta vozes das empresas e negociadores em nome do grande capital.

É um discurso ideológico burguês a busca de chegar ao topo, lembremos que se há topo há chão, se há quem venceu, há milhões que “perderam”, e nessa eterna competição, seguem sendo nossas irmãs e irmãos negros, trabalhadores e pobres os que se culpam pela sua falta de sucesso, acreditando veementemente numa suposta meritocracia, na qual quem chegou ao topo é porque se esforçou, escreveu livros e fala várias línguas, visita presidentes em Paris e Milão. Não. Não queremos isso. Não há perdedores na nossa classe e não podemos aceitar que se lance sobre nenhum de nós a culpa pela miséria desse sistema.

É inegável que entre as massas negras, haja diferentes experiências com o racismo, influenciadas por todo tipo de fatores. Ser mulher negra não é o mesmo que ser homem negro, ser LGBTQ+ e negro, ter a pele mais clara ou mais escura também não é a mesma coisa. Tampouco as experiências são exatamente as mesmas a partir de um determinismo fenotípico. Mas essas diferenças devem servir para nos unificar na luta contra o racismo e não nos separar numa escala de sofrimento que somente serve para nos dividir. Deve servir para fortalecer a nossa luta contra o sistema capitalista e todos os seus políticos, desde a direita asquerosa do Bolsonaro, até o autoritarismo dos militares, dos juízes eleitos por ninguém do Supremo Tribunal Federal (STF) e dos golpistas que tentam aparentar serem “democratas” quando na verdade são articuladores dos grandes ataques que destroem as nossas vidas, como o Rodrigo Maia com a Reforma da previdência, ou Sérgio Moro e a Lava Jato, que abriram caminho para todos esses ataques.

Por isso, não se trata de escolher um punhado de pessoas que são mais negras, ou que são verdadeiramente negras, para falar no nosso nome. Trata-se de massificar uma luta contra o racismo que é vivido por pessoas com vários tons de pele e com várias experiências particulares, organizar essa luta, unificar essa luta, defender suas pautas e lançar nossas vozes num só grito contra esse sistema de miséria e opressão que é o capitalismo. Nesse sentido, não nos serve colocar negros contra brancos de forma essencialista, como viemos debatendo, porque não há acordos que possamos chegar com aqueles que defendem o capitalismo e a ilusão de um capitalismo negro. O único caminho que teses como essas podem nos levar é a partir de uma crença numa “bondade” inerente dos setores vítimas de opressão, apostar que o caminho da nossa estratégia para superar a opressão seria colocar negros contra brancos, homens contra mulheres, quando nosso inimigo é outra classe, não outra cor ou outro gênero, nos levando, portanto, a debater a diferença fundamental entre opressão e exploração.

Do “lugar de fala” a um manual antirracista conselheiro da burguesia

Compreender a diferença entre o que significa opressão e exploração é fundamental para que possamos ver que não há luta das mulheres negras por fora da luta de classes. Ao tratar raça, classe e gênero como experiências opressivas que terminam dando lugar a uma estratégia na qual se perde a raiz dos problemas sociais e assim as vias de combatê-lo.

Um exemplo importante disso é a ideia de “lugar de fala”. Na sua obra que leva o nome O que é lugar de fala?, Ribeiro defende que todos possam falar a partir da sua localização social e assim é possível que grupos subalternizados, como são as mulheres negras, possam ao falar sobre si “refutar a historiografia tradicional e a hierarquização de saberes consequente da hierarquia social”. A chave da interpretação que faz Ribeiro está colocada sempre do ponto de vista discursivo. “Se pessoas brancas continuarem falando sobre pessoas negras, não vamos mudar a estrutura de opressão que já confere esses privilégios aos brancos. Nós, negras e negros, seguiremos apartados dos espaços de poder” [18].

Então a solução que dá é a que pessoas negras possam falar sobre elas mesmas, ocupando a partir desse lugar exclusivo de fala, lugares de poder social. Para se defender das críticas de que a ideia de “lugar de fala” seria individualizada, Ribeiro se utiliza da teoria do ponto de vista feminista de Patricia Hill Collins [19], para dizer que o lugar de fala não se trata sobre os indivíduos, mas sobre grupos sociais e as condições a que são submetidos.

Mas a questão é que Ribeiro com sua leitura do “lugar de fala” vê a sociedade dividida entre “discursos”, “lugares de fala”, grupos com “experiências” distintas, em que uns podem falar e produzem um discurso hegemônico e outros não podem falar por si. Segundo ela, trazer à tona essas experiências é o que permitiria “romper com o silêncio instituído para quem foi subalternizado”, e poder “romper com a hierarquia”. Nota-se assim como a dimensão da exploração não é um balizador da perspectiva teórica de Djamila Ribeiro. Essa separação entre os que “podem falar” e os que “não falam por si” também está presente na crítica das teorias pós-coloniais à historiografia tradicional. Ainda que estas sejam correntes muito diversas entre si, os teóricos pós-coloniais e decoloniais têm como denominador comum o apontamento da necessidade de uma releitura histórica dos povos oprimidos a partir de seus relatos e vivências. Esse apontamento é relevante, haja vista a indicação de CLR James de que os negros só não se rebelaram nos livros de história dos capitalistas. No entanto, o problema que se coloca em parte dos autores de tais correntes é o fato de alguns localizarem o marxismo como parte das “teorias colonizadoras”, sobretudo pela origem européia de Marx e seu caráter universalista. Com isso, terminam negando a luta de classes e a ligação entre luta anticolonial, antirracista e antiimperialista como parte dos combates que compõem a estratégia marxista de enfrentamento ao capitalismo.

Porém, ainda que Djamila Ribeiro use alguns conceitos caros aos teóricos decoloniais, a sua posição teórica não a coloca como parte dessa corrente, já que se mescla com autores de várias outras matrizes. Djamila Ribeiro se utiliza tanto da teoria do “outro” de Simone de Beauvoir, quanto de teóricas como Grada Kilomba sobre a mulher negra ser o “outro do outro”, levando essas ideias à estratégia de que para combater a dupla opressão a que mulheres negras são submetidas é preciso que produzam falas e discursos sobre si, sem confrontar a base material que sustenta essa dupla opressão. Assim, o terreno de “combate” se desloca da luta de classes para centrar-se no protagonismo da fala. Um dos grandes problemas dessa visão é que o capitalismo pode se apropriar, e efetivamente o faz, de discursos que seriam subversivos para esvaziá-los deste conteúdo e torná-los funcionais para a sustentação do sistema capitalista. Como veremos adiante, isso não é um problema para Djamila Ribeiro, e é aí que reside grande parte da impotência de seu discurso antirracista.

Reconhecer que as mulheres negras têm experiências em comum e enquanto grupo social e que essas experiências têm importância fundamental na luta pela sua emancipação é decisivo. Também compartilhamos com o feminismo pós-colonial a ideia de que as mulheres negras podem falar por si e serem sujeitos de sua própria história e para isso resgatamos neste livro as vozes de Sojourner Truth, Harriet Tubman, Rosa Parks, Dandara, Aqualtune, Luiza Mahin, das mulheres que se enfrentaram com o apartheid na África do Sul, das mulheres que protagonizaram a Revolução Haitiana e das que hoje são parte da luta negra internacional. Usamos a ideia de Leon Trótski de que é preciso “olhar a vida com os olhos das mulheres”, sabendo que num país como o Brasil é preciso que seja a partir dos olhos das mulheres negras.

Mas isso não quer dizer que somente trazer à tona a localização do saber e da experiência de algumas mulheres negras pode levar a enfrentar a estrutura social, ou mesmo “causar fissuras” e “desestabilizar a norma hegemônica”, como diz Ribeiro. Aqui é onde se expressa como sua concepção não é consequente com a denominação do racismo como algo estrutural do Brasil, mas pelo contrário, advoga em prol de uma vertente completamente inofensiva para combater a realidade que cala, humilha, e mata mulheres negras. O que anos de ofensiva neoliberal mostraram é que o capitalismo é capaz inclusive, de colocar sob seu guarda-chuva vozes dissonantes para retirar qualquer potencial contestatório que pudessem ter. É esse hoje todo movimento que faz o establishment norte-americano diante da fúria negra nos EUA, ao tentar canalizar o potencial de enfrentamento que tem a luta “Black Lives Matter” para interesses eleitorais e de manutenção do regime.

Essa perspectiva que coloca as opressões como uma “disputa de narrativas” e por “espaços de poder” acaba por cumprir um papel coligado ao da atomização e individuação neoliberal de que fala Dardot e Laval [20], assumindo assim uma saída política completamente impotente, ainda mais diante de governos de extrema direita como o de Trump, Bolsonaro, Witzel e tantos outros pelo mundo, que lidam com as mulheres negras não com disputas de narrativas apenas, mas com armas nas mãos, produzindo feridas como o assassinato de Marielle Franco.

Ler dessa forma em nada significa ignorar que o racismo se manifesta no seio das relações individuais. Mas o que queremos aqui dizer é que ainda que seja fundamental combater as manifestações do racismo individualmente, regular comportamentos não seria capaz de alterar a realidade profunda e estrutural que mantém a existência do racismo. Esse tipo de saída contribui apenas para reorganizar o próprio discurso capitalista, na medida em que ao não atacar as bases do capitalismo e contrapor-se a seu Estado – um balcão de negócios da burguesia que negocia as vidas das mulheres negras como a carne mais barata – concentram-se apenas num combate às práticas e comportamento dos indivíduos, oferecendo como programa o poder ou a fala das mulheres negras dentro dos espaços já oferecidos pelo capitalismo. Assim, acaba por reforçar mecanismos individualizantes do próprio neoliberalismo.

Portanto, apesar de reivindicar um olhar interseccional das opressões e de constar marginalmente nos seus escritos a ideia de racismo enquanto estrutural, todo o sentido que Djamila Ribeiro confere se liga a uma concepção individual do racismo, negando uma estratégia realmente capaz de questionar a raiz da estrutura sobre a qual o racismo se sustenta: o capitalismo. Dessa forma, termina fortalecendo como perspectiva um feminismo antirracista de mercado, em que a busca deve ser por ascensão social, em uma concepção meritocrática típica de um feminismo liberal.

O debate que fazemos aqui é imprescindível para que avancemos como mulheres negras, junto à classe trabalhadora, sobre qual a estratégia que pode levar não a um “capitalismo negro”, mas a uma definitiva superação da opressão racista e exploração capitalista. Ainda mais porque a ilusão de um capitalismo negro é utópica tendo em vista que primeiramente a ascensão de uma mulher negra, ou mesmo de uma parcela delas, não equivale à superação do racismo para todas as negras, em especial as trabalhadoras, sobretudo em uma situação de crise econômica como a que se coloca nacionalmente e internacional.

Os desafios das mulheres negras e a luta por um feminismo socialista

Ribeiro faz uma crítica à esquerda – sem citar de quem exatamente está falando, e ajudando a confundir a esquerda com o que foi a visão mecanicista e superficial entre classe, raça e gênero que o stalinismo [21] defendeu durante décadas, de que a grande dificuldade de parte da esquerda é querer eleger classe como o mais importante, sem entender raça e gênero. Mas longe de uma visão estanque das identidades, compartilhada por setores que reivindicam o legado do stalinismo e se negam a reivindicar as demandas negras como parte fundamental de um programa para a revolução, é preciso compreender as implicações da ligação entre raça, classe e gênero num país como o Brasil. Trata-se de um país em que quase metade da classe trabalhadora é mulher e dessas, 20 milhões são negras, em que 75% dos mais pobres são negros, sendo também os mais desempregados, em que 48,3% dos negros sofrem com a informalidade e que as taxas de homicídio de mulheres negras são 71% maiores que as de mulheres brancas, e que os que mais morrem por Covid são negros, a relação entre classe, raça e gênero é indissociável. Portanto se falar de classe é falar de racismo e machismo, falar de mulheres negras também é falar de classe.

Mais do que falar de um feminismo que entende a relação entre raça, classe e gênero na vida real de um batalhão de mulheres negras trabalhadoras, deve levantar um programa sério que possa enfrentar a realidade da opressão e exploração e lutar pela construção, junto com as mulheres brancas, de uma força política que leve à frente esse programa. Deve-se colocar a tarefa de ligar, na luta de classes, os combates contra o racismo, machismo e o capitalismo.

Batalhar para que as agonias e dramas das mulheres negras sejam pauta de todo o movimento operário, estudantil e de direitos humanos significa fazer da fala das mulheres negras parte do sentido de existência da luta revolucionária de nossos tempos. Significa reconhecer não apenas que essa dor existe, mas também que somos parte dessa classe internacional, e que nosso desespero por uma nova vida pode ser capaz de reenergizar e dar mais um sentido para o combate da nossa classe contra o capitalismo, a exploração e a opressão, essa última um combustível presente como nunca nas fileiras da classe trabalhadora, de forma que a história nunca viu.


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FOOTNOTES

[1Essa é uma elaboração desenvolvida a partir de uma reflexão inicial aberta no artigo Raça, classe e gênero: a luta das mulheres negras por um feminismo socialista, das mesmas autoras, publicado no Esquerda Diário e no livro A precarização tem rosto de mulher (organizado por Diana Assunção), publicado pelas edições Iskra em 2019. Agradecemos a enorme contribuição de Diana Assunção e Simone Ishibashi nesse artigo.

[2ENGELS, Friedrich, A origem da família, da propriedade privada e do Estado, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1984. Disponível em < https://professordiegodelpasso.files.wordpress.com/2016/05/engels-a-origem-da-familia-da-propriedade-privada.pdf>. Acesso em 18 Jan 2021.

[3ENGELS, Friedrich, A origem da família, da propriedade privada e do Estado, p. 70-71

[4DAVIS, Angela, Mulheres, raça e classe, São Paulo: Boitempo Editorial, 2016.

[5ALMEIDA, Silvio Luiz de, “Marxismo e Questão Racial”, in: Margem Esquerda, São Paulo: Boitempo, n. 27, 2016.

[6BREITMAN, George, Quando surgiu o preconceito contra o negro, in: ALFONSO et al, A revolução e o negro, São Paulo: Edições Iskra, 2019, p. 55.

[7Dados recolhidos pelo Ranking da Desigualdade, elaboração da Organização para Cooperação do Desenvolvimento Econômico (OCDE), 2017.

[8Djamila Ribeiro, Pequeno manual antirracista, Companhia das letras: São Paulo, 2018, p. 24.

[9Sobre a relação entre patriarcado e capitalismo, ver: D’ATRI, Andrea, Pão e rosas: identidade de gênero e antagonismo de classe no capitalismo. São Paulo: Iskra, 2008; e ASSUNÇÃO, Diana, Feminismo e Marxismo. In: ASSUNÇÃO, D. D’ATRI, A .(orgs), Feminismo e Marxismo, São Paulo: Edições Iskra, 2017. p.11-30.

[10Karl Marx, “Salário, Preço e Lucro”, informe pronunciado oralmente em 20 e 27 de junho de 1865, Conselho da Associação Internacional dos Trabalhadores. Disponível em: <https://www.marxists.org/portugues/...> .Acesso em 18 Jan 2021.

[11Letícia Parks, “Morto no mercado: sobre alimentos, racismo, propriedade privada e miséria capitalista” (Ideias de Esquerda, 29/11/2020). Disponível em <https://www.esquerdadiario.com.br/M...> . Acesso em 18 Jan 2021.

[12Anne Philips, What’s wrong with essentialism? in: Distinktion: scandinavian Journal of social theory, nº 11, pp. 47-60. University of Aarhus, 2010. Disponível em <https://core.ac.uk/download/pdf/216...> . Acesso em 18 Jan 2021.

[13Anne Phillips é uma filósofa da teoria do gênero conhecida por uma sistematização crítica do essencialismo na qual nos apoiamos nesse artigo, mas que é defensora de um conteúdo reformista para a luta das mulheres. Uma de suas obras, intitulada Must feminists give up on liberal democracy?, ela reconhece as distintas limitações da sociedade capitalista em relação aos direitos das mulheres sem nunca se apartar de uma concepção de pressões ou reivindicação de uma democracia mais colorida, como se isso fosse um projeto realizável no marco do avanço da crise econômica e da configuração mais à direita de um enorme setor da burguesia mundial disposto a implementar políticas de barbárie em nome de manter seus lucros. Em outros artigos ela chega a reivindicar o socialismo como experiência mais avançada de políticas públicas para as mulheres (em especial a URSS), mas sem se definir como uma feminista socialista.

[14Outra forma de buscar anular as contribuições do marxismo é através de uma visão teórica que questiona as bases econômicas como fundamentais para explicar o desenvolvimento de cada país e como isso afeta seus povos em meio ao capitalismo, substituindo o fundamento econômico pela “cultura”. Esses setores que são antimarxistas querem tratar como se a caracterização de “atraso” das forças produtivas fosse uma categoria moral, então quando se fala que a África era marcada por esse elemento seria uma espécie de desprezo, e não uma categoria para designar o grau de avanço das forças produtivas. Por isso tratam como se o marxismo fizesse parte de um projeto colonialista modernizador tendo como epicentro a Europa. Como se aos demais povos coubesse apenas seguir o projeto de modernização europeu. Se a chave é a “cultura” o atraso é mais relativo. Povos de países atrasados economicamente produziram e produzem no campo da cultura picos inatingíveis, vide o samba e a capoeira brasileiros, o coral sul-africano. Para criticar o marxismo, essas vertentes decoloniais inferem um suposto projeto universalista inexistente na trajetória do pensamento e luta marxista, marcados por duros combates anticoloniais e antirracistas em toda a sua história.

[15Djamila Ribeiro, “Roda Viva” (programa da TV Cultura), exibido em 09/11/2020, disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=jn1...> . Acesso em 18 Jan 2021.

[16Ver Letícia Parks, “Quem é negro no Brasil?”, in: Mulheres negras e marxismo, São Paulo: Edições Iskra, 2021, disponível nesse volume.

[17DEMBY, Gene, The story behind Kamla Harris’s Truancy Program, NPR, publicado em 17/10/2020, disponível em <https://www.npr.org/sections/codesw...> . Acesso em 18 Jan 2021.

[18RIBEIRO, Djamila, Quem tem medo do feminismo negro?, São Paulo: Companhia das Letras, 2018, p. 82.

[19Collins trata mais detidamente o tema do lugar de fala na obra Pensamento Feminista Negro. Neste volume nos referimos à edição estadunidense devido à possibilidade de permitir ampliar as possibilidades de tradução do termo, originalmente utilizado por Collins como standpoint (ponto de vista, olhar, opinião, seriam outras possibilidade de tradução) e com a tradução como lugar de fala acaba por isolar a atuação do conceito sobre a fala, quando Collins trata de forma mais ampla como participação política, opiniões e pontos de vista, e abordando sempre em referência a luta social e a construção das pautas políticas dentro do movimento, e não como subsídio para uma representatividade empresarial ou no poder político e econômico da sociedade, inclusive afirmando que “Já que o lugar de fala de um grupo vem de dentro dele, reflete e ajuda a delinear relações de poder injustas, lugares de fala não são estáticos. Portanto, desafios semelhantes podem proporcionar ângulos de visão semelhantes que orientem um conhecimento de grupo ou um lugar de fala das mulheres Afro-americanas. Ou não” (COLLINS, Patricia Hill, Black Feminist Thought, Routledge, 2000, p. 25, tradução nossa).

[20LAVAL, Christian; DARDOT, Pierre. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016.

[21Chamamos de stalinismo todas as correntes teóricas e políticas que durante a experiência de burocratização da URSS, após a morte de Lênin, defenderam a teoria do socialismo num só país, fundada por Stálin, assim como a perseguição aos divergentes da Oposição de Esquerda, que levou à morte de milhares de militantes que eram críticos à burocratização do Estado Operário. Sobre isso, ver o livro Stálin, grande organizador de derrotas (Leon Trótski, São Paulo, Edições Iskra, 2020).
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