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Antonio Candido em tempos de crise

Logo após sua morte, muito se falou nas redes sociais sobre a importância do legado de Antonio Candido em distintas áreas, da literatura à sociologia, passando pelos estudos do nosso Brasil profundo, do socialismo e até as memórias pessoais de tantas pessoas que passaram pela vida do professor. Falar um pouco mais sobre AC nunca é demais e ainda será necessário por um bom tempo.

sábado 13 de maio de 2017 | Edição do dia

Neste texto eu gostaria de situar a importância do seu pensamento para os dias de hoje, dias de crise profunda em todo o mundo pelo menos desde 2008 quando o capitalismo começou a ruir (novamente) nos Estados Unidos.

Crises econômicas e políticas são sempre acompanhadas de crises ideológicas, mas a crise ideológica que vivemos hoje teve seu início a partir do final da década de 1980, quando o muro de Berlim caiu e o mundo observou o neoliberalismo galgar posições pelos quatro cantos do planeta. Com isso veio uma ofensiva ideológica muito brutal, com o “fim da história” sendo vendido, a crítica literária sofrendo o mal do a-historicismo e da desconstrução total de qualquer significado, a indústria cultural colonizando todas as esferas da vida… parecia que o mundo se transformou no slogan do McDonald’s, “amo muito tudo isso” - tudo se transforma em mercadoria - amo muito, logo existo. Parecia que a crítica se desmanchava no ar. Durante todo esse período poucos foram os que resistiram e firmaram pé numa visão de mundo que se negava a acreditar que o capitalismo triunfou, que seremos eternamente sujeitos ao ditame atribuído a Benjamin Franklin de que “tempo é dinheiro”. Como o professor mesmo disse, “isso é uma monstruosidade”.

E por que então Antonio Candido? O que um professor de literatura que escreve sobre sua vizinha anarquista de Poços de Caldas e poemas árcades do século XVIII tem a ver com tudo isso? Bastante! Antonio Candido, na verdade, nunca foi propriamente um revolucionário, ele mesmo se considerou reformista em uma entrevista uma vez, mais adepto de Bernstein do que de Trotski (apesar de nunca ter negado as alcunhas “pejorativas” de “trotskista” vindo da trupe stalinista que reinava na esquerda durante um tempo), menos dialético do que eclético, mas mais dialético do que estruturalista. Entretanto Antonio Candido certamente revolucionou a maneira como lemos a literatura no Brasil. Mesmo sendo um país de iletrados na maior parte de sua existência, estudar literatura no Brasil é basicamente estudar o Brasil. Machado de Assis dizia, no século XIX, que a literatura foi responsável durante muito tempo por investigar a nós mesmos, coisa que geógrafos, biólogos, juristas e tantas outras áreas do conhecimento falharam até então.

Aliás, alguns de nossos escritores escreveram verdadeiros tratados sociológicos em forma de poema, ou de romance, como é o próprio caso do Bruxo do Cosme Velho. Nas Memórias Póstumas representou o Brasil (Brás), (e por extensão os países escravocratas na América Latina, Brasil e Cuba foram os últimos países a acabar com a escravidão no continente), como nenhum outro autor havia representado até então. Segundo Antonio Candido, a formação da nossa literatura acaba em Machado de Assis, justamente na sua segunda fase, com Memórias Póstumas. A contradição fundamental, expressa inclusive por Machado, é de que a nossa literatura se formou, mas o país não - a ideia burguesa de nação não havia se completado, em um mundo de escravos isso era impossível. Daí a ambiguidade do narrador defunto que se forma na medida em que se desforma, que é e não é ao mesmo tempo, que nem o Brasil… É como se Machado estivesse nos falando bem baixinho, para bom entendedor ouvir, que não se deve confiar nem um centímetro na nossa elite porque ela eventualmente vai nos enfiar a faca nas costas. É basicamente a história de nós mesmos dos últimos 517 anos. Mas daí já estou misturando Schwarz, Candido e meus próprios devaneios.

A questão é que só conseguimos chegar a essas conclusões, que Machado antecipou algumas décadas antes de muitos cientistas sociais (e que até hoje a academia pena para reconhecer), por conta da grande obra de Antonio Candido. Uma de suas maiores contribuições foi justamente o método de análise e interpretação que não deixa passar sequer um sopro reacionário. Compreende-se o método lendo um livro que contém uma série de palestras e escritos publicado na década de 1960, logo após o golpe, chamado Literatura e Sociedade. Lá o professor expõe a radical ideia de que literatura e mundo não podem ser separados de maneira dicotômica. Parece óbvia, mas na verdade foi uma grande batalha contra o formalismo duro e a sociologia da literatura, dois opostos que se encontram dialeticamente na elaboração de Candido.

Foi necessário o porte de um Antonio Candido para firmar tradição nesse universo e desde então os estudos literários não são mais os mesmos. Toda uma escola foi formada. E aproveitando o termo, uma escola de “formação” literalmente se desenvolveu sob sua influência - para além da Formação da Literatura Brasileira, vimos também serem publicados a Formação do Brasil Contemporâneo, de Caio Prado Jr., a Formação Econômica do Brasil, de Celso Furtado, Raízes do Brasil, de Sergio Buarque de Holanda… tantas “formações” que exprimem justamente a ideia de que as coisas estão em movimento, que não são estáticas, de que tanto o Brasil, o indivíduo, a métrica e o ponto de vista do narrador estão em constantes transformações.

Polêmicas a parte com cada um desses autores, o que há de valioso é a ideia de que as coisas mudam e possuem um desenvolvimento próprio, racionalmente dedutivo e, portanto, passível de transformação. Contra a filosofia pós-moderna dos “instantes” e dos “momentos” que hoje invadem as universidades, esse tipo de pensamento, dialetizante, foi fundamental para o pensamento crítico brasileiro e, por que não dizer, mundial. Sobre esse aspecto, uma breve digressão - não fosse nossa posição periférica na divisão internacional do trabalho, Antonio Candido seria um pensador renomado do porte de um Perry Anderson, Terry Eagleton, tão conhecido quanto Zizek (não estou comparando os dois hein, Candido é infinitamente superior) ou Chomsky. Mas assim como Drummond injustamente não teve seu devido reconhecimento internacional, Candido ainda se mantém como famoso apenas nos círculos intelectuais brasileiros (salvo algumas exceções).

De qualquer forma, voltando ao aspecto de crítica de Antonio Candido, esse é um dos muitos pontos fundamentais que devem ser constantemente revisitados por todos nós. Com a invasão bárbara do neoliberalismo violento, onde tudo vira mercadoria e o intuito é tirar o couro cada vez maior do peão, esse tipo de pensamento é essencial. Com ele conseguimos, por exemplo, compreender porque e como chegamos aqui, para melhor projetar no futuro uma mudança radical. Inclusive, o pensamento de Candido nos oferece ferramentas para criticá-lo melhor, enxergar seus erros e debilidades para avançar. Como o intuito aqui não é se aprofundar nos erros de Candido (que na vida política se expressaram nos apoios ao PT, por exemplo) e sim resgatar o que eu julgo algumas das poucas coisas essenciais para o seu pensamento hoje, apenas deixarei essa menção contra a patrulha dos chato boys, alcunha que Oswald de Andrade deu ao grupo de intelectuais dos quais Candido fazia parte, que também pode ser bem barulhenta nos dias de hoje.

O essencial é ver no pensamento crítico de Candido, que não tem medo de se dizer de esquerda e socialista, que enxerga na história o motor do desenvolvimento humano, que busca na dialética uma forma de compreensão do mundo, um ponto de apoio para projetarmos o futuro que queremos e que precisamos. Em tempos de crise, a dialética se faz necessária, Candido se faz necessário, até mesmo para superá-lo pela esquerda (e não pela direita como os pós-estruturalistas silenciosamente acreditam fazer). Em tempos de Temer e de tantas reformas que estão arrasando com a vida dos trabalhadores brasileiros, se faz necessário um pensamento e ações radicais

Karl Marx, ao analisar o capital, viu no tempo um dos componentes essenciais para a dominação de classe. A mais-valia é extração do produto do trabalho alheio mediante força e tempo, basicamente. Em suma, a violência, opressão e exploração que caracteriza a sociedade capitalista que vivemos tem no tempo um de seus componentes mais valiosos. Assim também para a humanidade.

E com isso termino essa singela homenagem ao falecido Antonio Candido, mas presença viva na memória de muitos, com uma palavra de abertura a uma palestra no MST, em que o professor fala sobre as agruras de se viver no capitalismo e aponta para uma vida emancipada: “Acho que uma das coisas mais sinistras da história da civilização ocidental é o famoso dito atribuído a Benjamim Franklin, ‘tempo é dinheiro’. Isso é uma monstruosidade. Tempo não é dinheiro. Tempo é o tecido da nossa vida, é esse minuto que está passando. Daqui a 10 minutos eu estou mais velho, daqui a 20 minutos eu estou mais próximo da morte. Portanto, eu tenho direito a esse tempo. Esse tempo pertence a meus afetos. É para amar a mulher que escolhi, para ser amado por ela. Para conviver com meus amigos, para ler Machado de Assis. Isso é o tempo. E justamente a luta pela instrução do trabalhador é a luta pela conquista do tempo como universo de realização própria. A luta pela justiça social começa por uma reivindicação do tempo: ‘eu quero aproveitar o meu tempo de forma que eu me humanize’. As bibliotecas, os livros, são uma grande necessidade de nossa vida humanizada




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