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Amilcar Pereira: "O 13 de Maio, para o movimento negro dos 70, tornou-se uma data de denúncia da existência do racismo no Brasil"

Redação

Amilcar Pereira: "O 13 de Maio, para o movimento negro dos 70, tornou-se uma data de denúncia da existência do racismo no Brasil"

Redação

Ideias de Esquerda entrevista Amilcar A. Pereira, Professor Associado - Faculdade de Educação e dos Programas de Pós Graduação em Educação e em Ensino de História do Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Antirracista (Gepear-UFRJ) da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ.

Ideias de Esquerda: A 3ª geração do movimento negro recuperou em seu repertório político a imagem e memória de luta de Zumbi dos Palmares e fez uma esforço bastante importante para estudar e pesquisar a memória e o passado de luta e resistência dos escravizados contra a escravidão e os senhores de engenho incorporando como parte da luta daquela geração. Queria que você pudesse comentar isso à luz do 13 de Maio.

Amilcar Pereira: Uma das mais importantes características do que chamei de movimento negro contemporâneo no Brasil em minha tese de doutorado, publicada em livro em 2013, foi justamente esse investimento na contrução de outra perspectiva sobre o papel da população negra na História do Brasil. Investimento que é simbolizado na criação do 20 de Novembro como "Dia Nacional da Consciência Negra". O 20 de Novembro foi uma construção que revela um esforço político e intelectual de indivíduos e de amplos setores do movimento negro brasileiro dos anos 1970 em diante no sentido de contar outra História do Brasil e, assim, de "educar" a sociedade brasileira através do conhecimento sobre as histórias de luta e as conquistas da população negra em nosso país. Até aquele momento, e em grande medida ainda hoje em muitos lugares, o pouco que se sabia sobre a história da população negra estava restrito à histórias da violência e à dor do período da escravidão. A celebração do protagonismo da população negra no processo da abolição, cantado em versos como "Valeu Zumbi, o grito forte dos Palmares, que correu terra, céus e mares influenciando a abolição", como diz o samba-enredo da Vila Isabel no Carnaval de 1988, traz ao mesmo tempo a possibilidade de "reavaliação o papel do negro na História do Brasil", como demandava o Movimento Negro Unificado, em sua Carta de Princípios, escrita ainda em 1978, e também coloca em xeque o papel das elites brancas, personificadas na figura da Princesa Isabel, no processo da abolição. O 13 de maio, para o movimento negro nos anos 1970, tornou-se uma data de denúncia da existência do racismo na sociedade brasileira.

IdE: Gostaria que você pudesse comentar acerca da categoria que desenvolve para compreender as relações sociais, culturais, políticas, etc., o Mundo Negro, nos anos 70 e a relação que encontrou entre a militância antirracista e os espaços culturais e políticos naquele período.

Amilcar Pereira: Entendo o movimento negro como um movimento político-cultural transnacional. A expressão "mundo negro", que dá título ao meu livro, já mencionado, era usada desde o início do século 20 pelo movimento negro e simboliza ainda hoje justamente essa perspectiva transnacional utilizada pelo próprio movimento na luta antirracista. "The Negro World", "Mundo negro" em inglês, era o título do jornal publicado em Nova York pelo famoso líder panafricanista, Marcus Garvey, desde 1918, e também era o título da coluna publicada em São Paulo por José Correia Leite, que se entendia um "garveysta", em seu importante jornal, o Clarim d’Alvorada, no início dos anos 1930. Nos anos 1970 a expressão ganha novos sentidos, por exemplo, na canção de Paulinho Camafeu que embalou o primeiro carnaval do primeiro bloco afro da Bahia, o Ilê Aiyê, em 1974: "que bloco é esse? Eu quero saber. É o mundo negro que viemos mostrar pra você! Somos criolo doido, somos bem legal, temos cabelo duro, somos blequepau". Defendo em meu livro a existência de uma circulação de referenciais que alimenta e fortalece a luta antirracista na diáspora africana. O movimento negro brasileiro recebia muitos referenciais nos anos 1970, como o blequepau, ou Black Power, que circulava até nos blocos afor que se proliferaram pelo país naquela altura, mas o movimento negro brasileiro também produziu muitos referenciais, especialmente no que diz respeito à organização da luta política numa sociedade estruturada pelo racismo, que foram acionados como exemplos a serem seguidos por negros estadunidenses, como por exemplo nos anos 1930 com a Frente Negra Brasileira que mobilizava milhares de militantes e tornou-se um partido político negro em 1936, exatamente 30 anos antes do Partido Panteras Negras, e inspirava muitos negros nos Estados Unidos, como mostrei em meu livro; mas também no início do século 21, por exemplo com a criação da Lei Federal n°10.639/03, conquista histórica do movimento negro que, três décadas antes havia instaurado em âmbito nacional a discussão sobre a importância da agência histórica negra através da criação de disseminação do 20 de Novembro. Esses dois exemplos de organização da luta política, produzidos pelo movimento negro brasiliro foram e são vistos como referenciais para a luta antirracista em outros contextos nacionais. O mundo negro é isso, simboliza essa produção e circulação de referenciais político-culturais que alimenta a luta antirracista no mundo.

IdE: O debate entre raça e classe, pode ser considerado uma das marcas dintitivas da 3ª geração do movimento negro, você poderia desenvolver a importância dessas discussões no bojo da reorganização do movimento negro nos anos 70?

Amilcar Pereira: A articulação entre raça e classe na luta política antirracista implementada pelo movimento negro nos anos 1970 foi crucial para o próprio crescimento e desenvolvimento do movimento naquele contexto de lutas contra a ditadura então vigente. Muito além de ser somente uma estratégia de luta política, a articulação entre raça e classe vai tornar-se uma característica importante e majoritária no movimento negro que se constitui naquele período. O debate entre raça e classe vai alimentar, por exemplo, já com força nos início dos anos 1980, a discussão protagonizada pelas mulheres negras sobre a necessidade de incorporação da questão de gênero para combater o racismo e também o machismo e o sexismo no Brasil, inclusive dentro do próprio movimento negro. Aliás, uma evidência encontrada na última grande pesquisa que coordenei sobre o movimento negro brasileiro, em 2018, é justamente o protagonismo das mulheres negras na construção do movimento negro no século 21. Mas essa é uma outra história...

IdE: Amilcar, você é um grande pesquisador de temas referentes à questão negra e educação, há um debate de longa data sobre as potencialidades e limites sobre a lei 10.639. No marco do governo Lula-Alckmin e da Frente Ampla que reúne no próprio governo empresários da Educação e da Reforma do Ensino Médio que Lula já disse que não vai revogar, como você vê a questão do ensino de história afro-brasileira e indígena?

Amilcar Pereira: Como diria o grande Gonzaguinha: "Eu acredito é na rapaziada, que segue em frente e segura o rojão!" Entendo que o processo, desencadeado pelo movimento negro nos anos 1970, como disse antes, exigindo e lutando pela "reavaliação do papel do negro na história do Brasil", que resultou entre outras coisas na criação e implementação da Lei 10.639/03, é um processo sem volta, um processo que vai continuar em curso através da luta política, cultural e também acadêmica que tem produzido "cultura de luta antirracista", como diz Thayara Silva de Lima em seu livro que será publicado com esse título neste ano de 2023, quando se completam 20 anos da criação da Lei 10.639/03. Há muito o que se fazer para que a educação, ainda eurocêntrica e informada pelo racismo, seja transformada no Brasil. Mas, por mais que haja empecilhos e dificuldades — que de maneiras diferentes, em maior ou menor grau, dependendo das contingências e possibilidades de cada tempo, sempre existiram —, eu continuo cantando como Gonzaguinha e acreditando na luta antirracista realizada pela rapaziada, que ironicamente tem sido protagonizada por mulheres negras no século 21. O fato é que os avanços obtidos nos últimos 40 anos nessa luta pelo movimento negro foram realmente importantes, inclusive no âmbito de muitos setores das esquerdas que antes não reconheciam a importância do debate sobre o racismo no Brasil e hoje estão engajadas na luta antirracista, graças ao que Nilma Gomes tem chamado de "Movimento Negro Educador". Entendo que não podemos subestimar os avanços e nem superestimar as dificuldades. Como disse, o processo relacionado a Lei 10.639/03 tem sido tocado pelo movimento negro há décadas e, se levarmos em consideração as mudanças tangíveis obtidas a partir da luta nesse processo, compreendo que avançamos e que continuaremos avançando. Vejo esse processo como irreversível, uma verdadeira necessidade para um país estruturalmente racista, com uma educação ainda eurocêntrica mas que se quer democrático.


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