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OBITUÁRIO | Adeus a Maria Alice Vergueiro: de Brecht ao YouTube na contracorrente da indústria cultural

quarta-feira 3 de junho de 2020 | Edição do dia

Maria Alice Vergueiro é parte imprescindível da história do teatro brasileiro. Em 1962 estreia no Teatro de Arena sob a direção de Augusto Boal em “A Mandrágora”, de Maquiavel. Em 1964, pouco após o golpe civil-militar no Brasil, vai aos palcos para encenar “A ópera dos três vinténs”, de Brecht. Por uma década atuou no Teatro Oficina, de Zé Celso, participando de montagens históricas como as de “O Rei da Vela”, de Oswald de Andrade, e “Galileu Galilei”, também de Brecht. Foi fundadora do Teatro do Ornitorrinco com Cacá Rosset. Em 2002, montou “Mãe Coragem”, de Brecht. Foi também professora de na Escola de Comunicação e Artes (ECA) da USP.

Além de ser uma das mais importantes atrizes do teatro brasileiro, Maria Alice se tornou conhecida das novas gerações estrelando um dos primeiros “virais” das redes sociais no Brasil: o esquete cômico “Tapa na pantera”.

Maria Alice Vergueiro vinha de uma família rica e tradicional da classe dominante brasileira, dos barões do café, sendo neta de um dos mais importantes Senadores da época do Império. Mas ela escolheu mandar a secular tradição de sua família como parte da classe dominante às favas, e rompeu com a família, para se dedicar a um teatro que não almejava o sucesso comercial, mas se embrenhava em clássicos revolucionários de Brecht e Maiakóvski, percorrendo grandes peças do nosso teatro como as de Oswald de Andrade e Chico Buarque, passando pelo teatro do absurdo de Beckett e chegando ao experimentalismo de Jodorowsky. Encerrou sua carreira interpretando o próprio velório, por três anos, em “Why the Horse?”

Ironicamente, foi essa origem de classe que permitiu que Alice não se rendesse ao lixo cultural enlatado da indústria cultural brasileira, se mantendo materialmente com a herança familiar e optando por permanecer nos palcos, tendo atuado apenas em uma novela global, a “Sassaricando”, em 1987. O peso que tal tipo de produção exerce sobre os atores, com todo o imenso poder econômico da Globo, pode ser bem medido no fato de que, mesmo tendo apenas esse papel em uma novela, obituários de Maria Alice nos grandes jornais tragam no título “Sassaricando” e “Tapa na pantera”. A brilhante carreira de intérprete das obras de Brecht e tantos outros dramaturgos incríveis é simplesmente enterrada sob o peso do capitalismo cultural: estranho seria se fosse diferente.

Maria Alice é da mesma geração de Flávio Migliaccio, também falecido recentemente, e que expressou de maneira profunda esse dilema em entrevista às pesquisadoras Sara Mello Neiva e Paula Autran, dizendo: “Eu vim do Arena e nunca me acostumei com o jeito de representar que a indústria do espetáculo me obriga a fazer, onde tudo é rápido e os atores não gostam de conversar sobre o ofício. É ‘vamos gravar!’, aí cada um faz do seu jeito. Ninguém discute a cena. Mas eu tenho que saber o que é a cena! Senão fica uma coisa automática. […] Representar mesmo, jogar junto, foi só com meus amigos, no Teatro de Arena”.

O que Migliaccio expressa aqui é justamente a forma como a arte, transformada em mercadoria, sucumbindo à lógica da produção em massa e da divisão social do trabalho, perde aquilo que a faz ser o que é. A verdadeira arte é artesanal, é produto da reflexão, do trabalho, do debate, de uma intenção. Na novela, os atores tornam-se trabalhadores alienados sujeitos a um propósito: o lucro da emissora.

Maria Alice Vergueiro e sua trajetória expressam uma “luta pelo impossível” dentro desse sistema social chamado capitalismo: a busca pela produção da arte. A recusa da indústria cultural – e posteriormente da academia, que a cada dia vem sendo mais e mais enquadrada na lógica da produção capitalista mesmo nas áreas de artes e humanidades – e o mergulho profundo no teatro são as marcas de uma atriz gigante que, tendo as raras condições materiais para fazer isso, se valeu delas para se fazer artista em um mundo sem arte, um mundo de mercadorias culturais.

O mergulho de Maria Alice Vergueiro foi profundo a tal ponto que se via como ela se realizava no mundo por meio de seu trabalho, aproximando-se um pouquinho – o pouco que é possível a poucos – da ideia marxista de que o que nos define enquanto humanos é nosso trabalho, pois é por meio dele que criamos nossa realidade. Em toda a extensa carreira de Maria Alice Vergueiro, pela qual poderíamos ver as marcas desse trabalho em sentido autêntico por toda a parte, podemos destacar sua última obra. Diagnosticada com Mal de Parkinson, e vendo a morte inevitável se aproximar, a atriz decidiu fazer a peça “Why the horse?” em que “encenaria seu velório”, fazendo do palco uma tribuna para a reflexão pública sobre a sua própria finitude, e dividindo com seus espectadores essa experiência que, como debateu Walter Benjamin, de outrora pública, passou a ser cada vez mais individual e privada. O teatro, se há nele algo de imanentemente transformador, possui uma fagulha do coletivo que é o acesso da individualidade extrema do capitalismo contemporâneo. E mesmo ele, em suas vertentes performativas e pós-modernas, já foi imbuído desse individualismo extremo. Em Maria Alice Vergueiro se via outro teatro, um teatro na contramão, que nos convidava a participar em um ritual coletivo, que nos punha a nos questionarmos, que fazia da experiência coletiva um tipo de assembleia onde nos indagamos sobre o sentido da vida. O seu velório público, no qual estrelava como atriz principal, subvertia a “intimidade” da morte dos dias de hoje e nos convidava a habitar esse desafio de se por diante do inefável. Abrir-se ao público assim era fundir o seu trabalho, a sua arte, a sua vida, com a daqueles que tiveram a sorte de partilhar esse momento.

É certamente por essa veia profunda de quem vê a arte fundida à vida na qual corria o sangue de Maria Alice Vergueiro que o “viral” na internet não lhe pegou no contrapé. O YouTube, fenômeno pujante da indústria cultural de hoje, por trás da sua fachada de “liberdade” é tão ou mais tirânico do que já foram seus descendentes, os meios de produção cultural sob a forma da propriedade privada. A “monetização” dos vídeos, as publicidades, os logaritmos, tudo calculado para um “consumismo à la carte”. Maria Alice poderia ter se amargurado sob o peso dos “cinco minutos de fama” do vídeo “Tapa na pantera”, de 2006. Como afirmou seu colega, o diretor Antonio Abujamra, em entrevista na época, “Tapa na pantera […] já foi visto por um milhão e trezentas mil pessoas, mais público do que ela teve numa vida inteira de teatro” (hoje a “versão oficial” do vídeo no canal conta com 8 milhões de visualizações). Mas não: nessa mesma entrevista, ela diz “Quando eu me vejo nesse YouTube, eu falo, ‘olha como eu sou brechtiana, porque, eu, Maria Alice, e a pantera, somos na verdade vasos comunicantes. […] E é isso que o Brecht quer: que você seja você através da personagem.”

E, como tudo que reluz é ouro para o capitalismo, quiseram transformar o sucesso de "Tapa na pantera" em mais mercadorias, como Maria Alice relatou em entrevista à Carta Capital em 2013. A Pirelli a chamou para fazer comerciais interpretando a personagem, e ela simplesmente recusou, e disse que "era um pouco constrangedor, uma coisa que tinha sido tão inspirativa, tão forte no sentido de ideia agora querer virar comercial. Mudar completamente a linguagem". Mais uma vez, a atriz mostrou que era avessa a submeter sua arte ao modelo mercantil.

Assim, no YouTube ou no teatro, Maria Alice foi artista, e com seu trabalho deixou sua marca no mundo. Se foi pouco conhecida do grande público, isso só comprova a perversidade das formas pelas quais a arte e a cultura (não) se produzem em nossa sociedade, e em como elas são apartadas das grandes massas por esse funcionamento nefasto do mundo da mercadoria. O talento gigante de Maria Alice, no entanto, continua a circular, e as marcas de sua arte continuam a traçar, por veias subterrâneas, um caminho até um mundo onde toda a arte poderá ser vivida, livre e plena.




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