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DOSSIÊ 13 DE MAIO: ABOLIÇÃO DA ESCRAVIDÃO | Abolição e pós-Abolição: a dinâmica das classes no Brasil de abolição tardia

Seria um grande erro supor que Abolição foi concedida pela Princesa Isabel em um grande gesto de bondade e caridade, uma mentira que a burguesia brasileira se orgulha em dizer. Uma tese que ignora por completo um fator decisivo que pressionou a monarquia durante anos pelo fim da escravidão, a luta de classes.

Renato ShakurEstudante de ciências sociais da UFPE e doutorando em história da UFF

quarta-feira 13 de maio de 2020 | Edição do dia

Seria um grande erro supor que Abolição foi concedida pela Princesa Isabel em um grande gesto de bondade e caridade, uma mentira que a burguesia brasileira se orgulha em dizer. Uma tese que ignora por completo um fator decisivo que pressionou a monarquia durante anos pelo fim da escravidão, a luta de classes. E mesmo depois dos negros terem conquistado o fim da escravidão, isto marcou profundamente a recém formada república brasileira que apesar da exploração ter deixado de ser base à escravidão negra, a burguesia brasileira elegeu o racismo como o mecanismo chave de dominação

O Império do Brasil surgiu de um processo de independência que se por um lado o desatou dos laços políticos que o subordinava formalmente a metrópole em Portugal, por outro reforçou outros laços de uma nova maneira, colocando o herdeiro direto do trono ibérico como príncipe regente do Brasil e pela contração de dívida, tornando o país uma nova colônia do grande capital inglês primordialmente, em seguida português. Por esse mesmo motivo, as elites senhoriais se forjaram através da exploração do trabalho escravo, submetendo-os sob um nível de exploração extremo, como castigos físicos, mortes e estupros. Não à toa os quilombos, as greves, fugas, paralisações, entre outros métodos de luta e resistência deram o tom do desenvolvimento da classes no Brasil, pressionando desde baixo uma burguesia que diretamente subordinada aos interesses dos capitalistas internacionais.

A história dos quilombos não fugiu a essa regra, ademais as fugas escravas foram um produto desse tipo de colonização sustentada através da mão de obra escrava, um “fenômeno hemisférico”[1] que teve um marcador histórico preciso, a luta e resistência negra nas Américas contra o cativeiro. A primeira notícia de um quilombo formado no país data de 1575 na Bahia, as comunidades de negros fugitivos espalharam-se pelo Brasil, tendo seu exemplo mais emblemático no quilombo dos Palmares em Pernambuco. As autoridades coloniais combatiam os quilombos com muito ímpeto e determinação, não à toa Palmares sofreu inúmeras expedições punitivas e tentativas de prisão de Zumbi, mas o que os trabalhadores escravizados iam deixando registrado na experiência da escravidão negra africana é que os quilombos e as fugas podiam forjar comunidades de negros que subverteram a ordem colonial escravista.

Aos inúmeros movimentos de fugas e formação de quilombos por todo território brasileiro, também juntam-se as revoltas escravas que marcaram fortemente o século XIX e se intensificaram nos últimos anos do regime escravocrata. Na Bahia entre 1807 e 1820 tiveram mais de trinta revoltas, principalmente impulsionados por negros haussás e em seguida por nagôs. A medida em que se intensificava o tráfico de escravos, mais e mais revoltas estouraram e tomavam grandes proporções, em 1820 nessa mesma província houve ao menos 15 revoltas principalmente nas regiões de engenho, onde os negros revoltosos queimavam plantações, casas dos senhores de engenho, senzalas, assassinavam feitores, etc. Para falar de apenas algumas, a rebeldia dos escravos foi visto por todo o território brasileiro, em Campinas (1832) preparada por negros congo; no distrito cafeeiro de Vassouras na província do Rio de Janeiro (1938), liderada por Pai Manoel o Manoel Congo; no Maranhão (1835) liderada pelo negro liberto Cosme Bento das Chagas; os Malês na Bahia (1835); a revolta dos Alfaiates (1814) inspirada na revolução do Haiti; a revolta das Carrancas em Minas Gerais (1833), entre tantas outras[2].

Na segunda metade do século XIX as revoltas se intensificaram, e as organizações de fugas e quilombos passaram a exercer ainda mais pressão pelo fim da escravidão, as greves também entraram como um elemento importante já que podiam levantar demandas diretamente ligadas a escravidão. O movimento de escravos de uma fábrica de vela e sabão na Gamboa[3], região portuária do Rio de Janeiro explodiu por conta da venda de alguns escravos da empresa, a greve dos escravos de ganho na Bahia em 1857 que literalmente cruzaram os braço impedindo a circulação de mercadorias, paralisando por completo as atividades econômicas na província são parte desse processo de como a questão negra ia entrando em cena mais uma vez na luta de classes.

No processo de abolição esses mesmos trabalhadores ajudaram através de sua própria organização escravizados em fuga para os quilombos abolicionistas, essas mesmas associações compravam alforrias, conformavam redes de solidariedade entre trabalhadores “livres” e escravizados e se empenharam na propaganda em prol da liberdade dos escravizados. A abolição da escravidão foi marcada pela participação ativa de negros escravizados e trabalhadores organizados, unindo negros e brancos, que além de lutarem em unidade pelo fim da escravidão não só apoiaram os escravizados em cada fuga, tornando a abolição uma demanda central da classe operária brasileira.

A classe operária no Brasil lutou bravamente pelo fim da escravidão e a imagem criada por historiadores capitalistas que a abolição foi apenas uma disputa parlamentar dirigida por homens letrados brancos e que este foram chave para o fim da escravidão, é uma tese que serve para negar o protagonismo de operários e negros escravizados na luta pela abolição. Além disso, nega qualquer tentativa de criar no imaginário popular que a abolição foi algo concedido por benevolência pela princesa Isabel, herdeira de uma dinastia racistas e escravocrata por sua condição de classes jamais faria isso, ao contrário a burguesia brasileira não conseguiam mais controlar a intensidade das revoltas, greves e fugas que exigiam o fim da escravidão.

O pós-Abolição não deixou de ser marcado por processos de lutas de classes, por greves, motins urbanos e revoltas, que para além das reivindicações imediatas que os movimentos levantavam, haviam as marcas profundas deixadas por 400 anos escravidão. No Brasil o capitalismo havia se desenvolvido de maneira desigual, era um país atrasado em relação a outros países da Europa, com uma classe trabalhadora urbana negra, onde seu desenvolvimento combinava-se com relações de trabalho e raciais herdadas da escravidão, forma encontrada pela burguesia para manter os lucros com o fim do trabalho escravo. Em outras palavras, a abolição havia feito cair por terra o estatuto da escravidão, no entanto a burguesia brasileira não abriu mão da ideologia do racismo para organizar seu poder enquanto classe e manteve sob condições de extrema miséria e pobreza as massas negras recém libertas e os que já vinham da experiência enquanto trabalhadores “livres”.

O pós-Abolição foi marcado por um nível de racismo e exploração que remontavam os tempos da escravidão,e podiam ser notados por todas dimensões do mundo do trabalho: na alimentação, moradia, emprego precário, na estigmatização do negro, nas epidemias e doenças que assolavam a classe operária. Por conta disso, o início do século XX foi marcado por um número crescentes de greves e o surgimento dos primeiros sindicatos, fruto da organização e solidariedade entre trabalhadores “livres” e escravizados. Fato é que mesmo após a Abolição a dinâmica da luta de classes não deixou a cena, continuaram os levantes e movimentos por melhoria de salários, contras as condições insalubres de trabalho, a precariedade dos transportes públicos, a fome, etc. A classe operária no Brasil havia se forjado com as marcas da escravidão negra, a burguesia não só abriria mão do racismo enquanto mecanismo de dominação mesmo depois da abolição, como também soube adaptar rapidamente a ideologia do racismo em um mecanismo para lidar com esses novos batalhões de negros que reforçavam as fileiras da classe operária. Portanto, os primeiros anos da república foram marcadas pela intensa atividade política de sindicatos e trabalhadores que ainda sentiam, muitos deles na pela, as heranças profundas da escravidão.

Essas marcas de um país de passado escravista perseguem os negros até os dias de hoje e o racismo pode ser notado ainda como estruturante da sociedade capitalista brasileira. Os indicadores sociais, nas condições precárias e os baixos salários de trabalhadores de delivery, que são empregadas domésticas e terceirizados são uma mostra de como as heranças ainda permanecem vivas. Os números absurdos de negros assassinados pela polícia, o encarceramento em massa da juventude negra compondo a 3ª maior população prisional do mundo em número total e a perseguição e violência contra religiões de matriz africana, são também outra parte dessa amostra cruel de como o racismo aparece na vida de milhões de negros no Brasil. A transformação do capitalismo no Brasil indicou também que a burguesia necessitou se apropriar do racismo de inúmeras maneiras para manter sua dominação se utilizando de elementos de repressão e precarizando a vida e o trabalho dos negros. Com a pandemia do covid-19 as comunidades negras no mundo inteiro passaram a ser as mais afetadas, nos países africanos e nos EUA os negros, negras e latinos serão os mais afetados pelo coronavírus e sentirão na pele a destruição que a ganância dos lucros pode gerar, sobretudo, em um momento de crise tão profunda como a que vivemos hoje. Por isso, é necessário que derrubemos esse sistema racista, xenófobo e machista, em unidade com todas as fileiras operárias para seguir os exemplos dos trabalhadores livres e escravizados, brancos e negros que lutaram juntos e com os métodos da classe trabalhadora pelo fim da escravidão.

NOTAS

1: Flávio Gomes, “Mocambos e quilombos: uma história do campesinato negro no Brasil”.

2: João José Reis, “Revoltas Escravas” em “Dicionário da Escravidão e Liberdade”.

3: Marcelo Badaró Mattos, “Escravizados e livres: experiências comuns na formação da classe trabalhadora carioca”.




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