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75 ANOS DO ASSASSINATO DE TROTSKI | A última luta de Trotski na IV Internacional

No calor do início da Segunda Guerra Mundial, surge no seio do mais importante partido da recém-fundada IV Internacional uma luta fracional que envolve distintos aspectos. Trotski, em seu exílio no México, acompanhará de perto e opinará sobre cada passo dessa luta, travando o que seria sua última batalha ideológica e política no interior da organização internacional que construiu.

sábado 22 de agosto de 2015 | 00:54

Um dos mais importantes biógrafos de Trotski, Isaac Deutscher, criticou o revolucionário russo por ter dedicado tanto tempo às discussões com pequenos grupos em diferentes países no processo de construção da Oposição de Esquerda internacional dentro da III Internacional dirigida pelo stalinismo e, depois, no processo de construção da IV Internacional. Segundo a opinião de Deutscher, o tempo de Trotski teria sido melhor empenhado escrevendo obras brilhantes como as que nos deixou, analisando politica, social, economicamente a natureza da URSS e da burocracia stalinista, o fascismo, etc., como fez em “A Revolução Traída” ou “A História da Revolução Russa”.

Trotski, contudo, mostrou que não era um literato ou um mero analista político, mas sim um dirigente revolucionário, e por isso dedicou tremendo esforço para aportar concretamente na construção de uma organização revolucionária que pudesse ser uma alternativa à III Internacional degenerada e emergir como uma saída para a organização dos trabalhadores. Alguns de seus mais brilhantes escritos foram justamente a viva polêmica, a intervenção nos acontecimentos no calor do momento, como mostra a compilação de suas cartas sob o nome “Em Defesa do Marxismo”. Nessas cartas, escritas entre setembro de 1939 e agosto de 1940, o revolucionário russo interfere na polêmica que se desenvolvia no seio do SWP (Socialist Workers Party), o partido americano da IV Internacional. Retomamos aqui como alguns dos pontos dessa discussão, como parte de relembrar o legado de Trotski aos 75 anos de seu assassinato.

A natureza da URSS e da burocracia stalinista

Um dos pontos de divergência levantados pela fração minoritária dentro do SWP, dirigida por James Burnham e Max Shachtman, foi em relação à caracterização política da URSS e da burocracia stalinista que a dirigia, a mesma que havia expulsado Trotski do Partido Comunista da União Soviética e o conduzido ao exílio, assassinou massivamente os opositores e a velha guarda bolchevique na Rússia, e foi responsável por afogar em sangue de formas tanto indiretas as revoluções alemã, chinesa e tantas outras, como de forma direta a revolução espanhola, na qual foi diretamente algoz de militantes de esquerda anarquistas e trotskistas, pavimentando o caminho de Franco ao poder.

A atitude de Trotski frente à degeneração da revolução russa sempre foi a de um revolucionário consciente, que procura analisar a situação objetiva entendendo as causas e, a partir destas, elabora o programa e a estratégia corretas para levar à vitória. Foi a ausência disso que criticou em seus adversários na discussão. Disse ele “A conduta de Moscou, que superou os limites da degradação e do cinismo, provoca facilmente a repugnância em todo proletário revolucionário. A repugnância engendra a necessidade de repulsa. Quando se carece de força para a ação imediata, os revolucionários impacientes tendem a recorrer a métodos artificiais. Surge assim, por exemplo, a tática do terrorismo individual.”

E essa “impaciência”, aliada à falta de rigor teórico, de uma visão marxista, que leva a que a fração minoritária do SWP formule caracterizações como a de que a burocracia stalinista deixou de ser uma casta parasitária para se tornar uma classe social, ou de que a URSS passou a ser um “capitalismo de Estado”, ou de que seria um estado “não operário” e “não burguês”, ou mesmo um “Estado operário contrarrevolucionário”. A posição de Trotski, bem como a da IV Internacional, é clara: defesa incondicional da URSS. Isso, em momento algum, quer dizer a defesa da burocracia de Stálin; pelo contrário: o programa para salvar as conquistas econômicas e sociais da revolução é justamente o de uma revolução política que possa varrer a burocracia e devolver o poder político às mãos dos trabalhadores, organizados nos conselhos de base (sovietes). Por isso, Trotski afirma: “O que significa dizer defesa ‘incondicional’ da URSS? Quer dizer que não impomos nenhuma condição à burocracia. Quer dizer que, independentemente do motivo e das causas da guerra, defendemos as bases sociais da URSS se esta for ameaçada pelo imperialismo”.

A ênfase que Trotski dá à defesa da URSS é em oposição às políticas da oposição, que, ao igualar a URSS ao regime fascista ou a um “capitalismo de Estado”, confundiam a burocracia que usurpou as conquistas da revolução com as próprias conquistas. Por isso, Trotski dá muita ênfase em desfazer a confusão disseminada pela oposição de que a posição da Oposição de Esquerda ou de Trotski em qualquer momento tenha sido a de defesa da camarilha burocrática instalada no Kremlin. Desde pelo menos 1932, o programa levantado pela Oposição de Esquerda dentro e fora da URSS era o de uma revolução política contra essa burocracia, organizada pelos trabalhadores. Uma revolução vitoriosa em outro país, como a chinesa, a espanhola ou a alemã, daria um tremendo impulso à revolução política dos trabalhadores contra a burocracia, e foi justamente nisso que Trotski viu a defesa dos interesses da burocracia em afogar em sangue qualquer revolução fora da Rússia, garantindo a estabilidade de seu domínio e mantendo o discurso de que defender a URSS é defender Stálin. Essa nunca foi a política de Trotski. Na verdade, em 1936, em “A Revolução Traída”, Trotski já prognosticava que se a revolução política contra a burocracia não fosse vitoriosa, a restauração do capitalismo na Rússia seria inevitável, como de fato ocorreu décadas mais tarde.

Este ponto crucial é uma das fortalezas do trotskismo na defesa do marxismo e contra todas as suas formas de falsificação por parte da burocracia: como na segunda guerra, em que os trotskistas foram linha de frente do combate em armas contra a Alemanha nazista e em defesa da URSS, aqui se mostra a clareza da necessidade de defesa das conquistas da revolução. Porém, em nenhum momento essa está subordinada à defesa de Stalin e, pelo contrário, reforça a posição de um combate mortal contra a burocracia parasita que se apropria das conquistas dos trabalhadores.

A defesa do materialismo dialético

Conforme os meses se passam a e discussão prossegue, Trotski é primoroso em não se deter na “primeira camada” da discussão, mas sim em procurar suas raízes profundas. De onde vinha a diferença na caracterização da URSS e de sua burocracia? Em dezembro de 1939, Trotski alerta: “É preciso chamar as coisas pelo seu verdadeiro nome. Agora que a posição de ambas as frações em luta se delineiam com perfeita clareza, deve-se dizer que a minoria do Comitê Nacional encabeça uma típica tendência pequeno-burguesa. Como qualquer grupo pequeno-burguês dentro do movimento socialista, a atual oposição se caracteriza pelos seguintes traços: atitude desdenhosa frente à teoria e uma inclinação ao ecletismo; desrespeito pela tradição de sua própria organização; preocupação por uma ‘independência’ pessoal em detrimento da preocupação pela verdade objetiva; nervosismo, em vez de consistência; disposição para saltar de uma posição a outra; falta de compreensão do centralismo revolucionário e hostilidade frente a ele; e, finalmente, inclinação a substituir a disciplina do partido por vínculos pessoais e laços de camarilha.”

A questão abre vários pontos, que não é possível abordar neste artigo. Um deles, contudo, que queremos destacar, é a recusa da dialética. A dialética, parte fundamental do marxismo que este toma da filosofia de Hegel, retirando-lhe de seu idealismo e ligando à concretude da vida humana, é recusada por uma parte da fração minoritária como um tipo de “religião”. É trotski quem vê no debate sobre a dialética um dos pontos fundamentais a ser discutido, e procura iluminar a questão, trazendo-a ao centro do debate. Aí está a raiz teórica que fundamenta divergências políticas como a caracterização da URSS.

Trotski aponta a mentalidade pragmática que vigora nos EUA, e resgata suas raízes históricas, para ver nisso o motivo para a recusa da dialética, e as consequências que disso derivam. Sobre a importância da dialética aos revolucionários, alerta: “Exigir que todo membro do partido esteja familiarizado com a filosofia dialética seria, naturalmente, inerte pedantismo. Porém, um operário que tenha passado pela escola da luta de classes obtém, a partir de sua própria experiência, uma inclinação para o pensamento dialético. Ainda que não conheça essa palavra, está pronto a aceitar o próprio método e suas conclusões. (...) A coisa é muito diferente com a pequena burguesia educada academicamente. Seus preconceitos teóricos já tomaram uma forma acabada, desde os bancos da escola. Por conseguirem aprender uma grande quantidade de conhecimentos, tanto úteis como inúteis, sem ajuda da dialética, acreditam que podem continuar, sem problemas, a viver sem ela.”

A defesa que Trotski apresenta do método dialético – vinculada necessariamente ao materialismo – é uma impressionante aula de marxismo. Discorrendo sobre a aplicação desse método de pensamento sobre a URSS e a sua caracterização política, mostra como a definição de Burnham (“nem Estado operário, nem Estado burguês”) é uma definição que “oscila no ar”, e mostra como analogias baseadas na lógica formal, como a caracterização de que tanto o estado fascista como o soviético são “coletivismos burocráticos”, na verdade nada explicam sobre a natureza desses Estados.

A defesa do centralismo democrático como regime interno do partido

Quando Lenin formulou, nos primeiros anos do século XX, sua proposta de funcionamento do partido revolucionário sobre o regime do centralismo democrático – um regime que combina a atuação sólida unificada do partido “golpeando como um só punho”, mas fundada em uma profunda liberdade de discussão interna – Trotski foi um adversário dessa forma organizacional. Foi a experiência concreta, o desenvolvimento da ala bolchevique do Partido Operário Social Democrata Russo, que levou Trotski a não apenas se convencer, mas a se tornar o mais importante defensor dessa forma verdadeiramente dialética de organização, após a morte de Lenin.

Na polêmica com a minoria do SWP, podemos extrair lições profundas sobre a questão do centralismo democrático. Em resposta a Sherman Stanley, pertencente à minoria, no mês de outubro de 1939, Trotski afirma: “Em sua carta você declara que o principal problema não é a questão russa, mas o ‘regime interno’. Frequentemente, desde o começo da existência de nosso movimento nos Estados Unidos, ouvi esta acusação.” Como Trotski apontou dois meses mais tarde, a crítica ao regime em nome de uma “independência” é característica das frações pequeno-burguesas. Contra a proposta de um referendo em relação à questão da URSS proposto pela minoria, Trotski explica como esse método, em substituição ao centralismo, suplanta a discussão viva e a possibilidade de influência dos centros mais avançados do partido: “Quem quer que esteja a favor de um referendo, deve estar a favor dos mandatos imperativos, isto é, a favor de um procedimento tal, que cada localidade tenha o direito de obrigar seu representante, num congresso do partido, a votar de uma determinada maneira. (...) Em vez de um congresso, torna-se suficiente contar os votos locais. O partido desaparece como conjunto centralizado. Aceitando o referendo, a influência das localidades mais avançadas e dos camaradas com mais experiência e mais destacados das capitais ou centros industriais é substituída pela influência das seções menos experientes, mais atrasadas etc. Naturalmente, estamos a favor de que cada questão seja amplamente discutida e votada por cada organização, cada célula do partido. Mas, ao mesmo tempo, cada delegado eleito por uma localidade deve ter, no congresso, o direito de pesar todos os argumentos relacionados à questão e votar segundo seu próprio juízo político”.

Trotski demonstra, paralelamente, como é esse o regime que dá à minoria todo o espaço necessário para aprofundar a discussão, e que isso é importante e saudável para o partido, inclusive para a educação das novas camadas de militantes na política revolucionária. Em carta ao dirigente da maioria, James Cannon, diz: “(...) é necessária uma luta ideológica muito séria (...) seria extremamente prejudicial, senão fatal, ligar esta luta ideológica com a perspectiva de uma ruptura, de uma purga, ou de expulsões e tudo o mais. (...) Vocês possuem muitos militantes novos e jovens inexperientes. Necessitam de uma discussão educativa e séria à luz dos grandes acontecimentos. (...) Se (...) a direção abre uma forte luta contra as concepções idealistas pequeno-burguesas e preconceitos organizativos, mas assegura, ao mesmo tempo, todas as garantias necessárias para a discussão e para a minoria, o resultado seria não só uma vitória ideológica, mas um crescimento importante na autoridade da direção.” E, mesmo tendo sido realizado um congresso do SWP pouco antes, e em vista dos enormes custos e dificuldades para a realização de um fórum desse tipo, Trotski afirma que “(...) vocês não podem evitar um novo congresso lá pelo Natal mais ou menos. (...) acredito que a maioria (...) pode propor à minoria um novo congresso baseado em duas plataformas, com todas as garantias organizativas à minoria.”

Trotski a todo momento insistiu em mostrar como como a questão da luta fracional possuía uma âncora na questão da classe, da composição social das frações: “Toda luta fracional séria dentro de um partido é sempre, em última instância, um reflexo da luta de classes. A fração da maioria estabeleceu desde o inicio a dependência ideológica da oposição ante a democracia pequeno-burguesa. A oposição, ao contrário, exatamente por seu caráter pequeno-burguês, sequer tentou buscar as raízes sociais do campo hostil.” Mas insiste que a discussão não pode ser feita de forma “ultimatista”, impondo rupturas prematuras sem que o debate se desenvolva adequadamente: “Pode-se colocar a seguinte pergunta: Se a oposição é uma tendência pequeno-burguesa, isso significa que é impossível se conseguir, posteriormente, a unidade? Como reconciliar a tendência pequeno-burguesa com a proletária? Colocar a questão desta forma, equivale a julgá-la unilateralmente, anti-dialeticamente, e por tanto, de forma falsa. (...) A maior parte dos membros da oposição está profundamente dedicada à causa do proletariado e é capaz de aprender. Ligada atualmente a um meio pequeno-burguês, poderá, amanhã, ligar-se ao proletariado. Os inconsistentes, influenciados pela experiência, podem se tornar mais consistentes. Quando o partido chegar a abarcar milhares de operários, até os fracionalistas profissionais podem se reeducar no espírito da disciplina proletária. É preciso dar tempo para que isto ocorra. Por isso, a proposta do camarada Cannon, de manter a discussão livre de toda ameaça de separação, expulsões etc., era adequada e absolutamente correta.”

E, é fundamental atentar, Trotski não via a solução para o impasse apenas no campo da discussão – para o pequeno-burguês, como diz Trotski, “A discussão é seu elemento natural. Nenhuma quantidade de democracia lhes é suficiente. Para sua guerra de palavras, buscam a quarta dimensão. (...) Quer saber qual o programa organizativo da oposição? Consiste na busca aloucada da quarta dimensão da democracia partidária. Na prática, isto significa suplantar a política pela discussão; e suplantar o centralismo pela anarquia dos círculos intelectuais. Quando alguns milhares de operários se unirem ao partido, repreenderão severamente os anarquistas pequeno-burgueses. Quanto antes, melhor.” Ou seja, na composição partidária residia também o fiel da balança: tanto para provar a disposição militante dos elementos intelectuais de origem pequeno-burguesa em se ligar ao proletariado, quanto para tirar a discussão da “quarta dimensão” em que a oposição procurava colocá-la. Por isso afirmou, ao discutir o caráter de classe da oposição: “Eu, pessoalmente, não cheguei ontem a esta conclusão. Eu a expressei dezenas e centenas de vezes em conversas com membros do grupo de Abern. Invariavelmente, enfatizei a composição pequeno-burguesa deste grupo. Propus; repetida e insistentemente, transferir aqueles militantes de trajetórias pequeno-burguesa, que haviam se demonstrado incapazes de captar operários para o partido, da categoria de militantes para a de simpatizantes. Como os fatos demonstraram, cartas pessoais, conversas e advertências, não conduziram a nada — a gente dificilmente aprende com a experiência alheia.”

Lições atuais e necessárias para a construção do partido mundial da revolução social

Essas são, de forma extremamente resumida, algumas das lições que podemos extrair da última luta política de Trotski dentro da IV Internacional. Frente aos imensos desafios que estão colocados para os trabalhadores e para a construção de organizações revolucionárias no próximo período, sem dúvida é revigorante ler as cartas de Trotski para aprendermos com sua experiência. Muitos erros podem ser evitados aprendendo com nossa tradição. Ao mesmo tempo, a tenaz luta ideológica contra uma fração partidária no seio da IV Internacional deve servir de lição e alerta de que não há nada de simples, linear ou evolutivo na construção de uma organização revolucionária: será sempre fruto de rupturas e fusões, de uma ferrenha e encarniçada luta política, de provas concretas que a realidade coloque diante das organizações. Em tempos como os nossos, nunca é demais lembrar isso e seguir escrupulosamente, como Trotski, na luta cotidiana pela construção dessa imprescindível ferramenta para a emancipação humana.




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