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SEMANÁRIO

A ilusão da revolução através da revolta

Matías Maiello

A ilusão da revolução através da revolta

Matías Maiello

Atualmente, estamos vivendo o segundo grande ciclo de luta de classes desde a crise de 2008. Iniciado no final de 2018 com o surgimento dos Coletes Amarelos, ele vem passando pelas mais diversas latitudes desde então. Chegou fortemente à América Latina, passando por Porto Rico, Honduras, Haiti, Equador; atualmente, tem seu ponto mais alto no Chile, enquanto o recente golpe de Estado na Bolívia, apesar da deserção de Evo Morales e do MAS, desencadeou a resistência.

Essa situação nos coloca um problema semelhante ao que Lenin falava em seu clássico livro Que fazer?, no início do século XX. O "elemento espontâneo" é a forma embrionária do consciente, mas quanto mais poderoso o boom espontâneo das massas, mais se torna necessário o desenvolvimento dos elementos conscientes, isto é, de fortes organizações revolucionárias. No entanto, como naquela época, surgem tendências que sustentam a equação oposta: a de que o boom espontâneo torna possível evitar a luta contra o reformismo e a burocracia.

Essas tendências hoje se expressam em uma adaptação às determinadas formas de revolta que atravessaram e atravessam os processos atuais (que analisamos em "Revolta e revolução no século XXI"), em detrimento da luta pela hegemonia operária. Eles fazem isso justamente quando processos como o chileno indicam a possibilidade de abrir uma etapa superior. Para ilustrar esse debate, tomaremos como exemplo as propostas de Jorge Altamira [1] que, desde a luta fracionária no PO, vem delineando cada vez mais claramente uma tendência desse tipo. Vejamos.

Mobilizações massivas e greve geral política

Em um vídeo recente referente ao processo chileno, Altamira ensaia uma espécie de nova teoria sobre a "assimilação" das massivas manifestações à greve geral política. Segundo indica:

...essas manifestações que não cessam no Chile tiveram a capacidade de paralisar parcialmente o aparato estatal, o que foi alcançado em outras revoluções por meio de uma greve política de massas, talvez [sic!] com mais profundidade do que esta paralisação. Mas podemos assimilar manifestações tão gigantescas, confrontos com a polícia, confrontos com as forças armadas, renovadas mobilizações, podemos compará-las com aquelas revoluções em que o movimento de massas, com greves políticas, conseguiu paralisar o aparato estatal.

É claro que as enormes manifestações que atravessam todo o Chile e sua persistência, como demonstrado novamente na sexta-feira, 15, são elementos decisivos no desenvolvimento do processo atual que assombra o governo Piñera, mas seu efeito pode ser "assimilado" à capacidade de paralisação do Estado que tem uma greve política de massas? A greve geral política - que evidentemente implica também em mobilização - encontrou um substituto relativo que reduz sua importância? Nesse caso, mais de um século de debates sobre o marxismo devem ser jogados no lixo.

Onde Altamira vê "assimilação" é, na verdade, uma das encruzilhadas que o processo chileno está enfrentando e que se expressa em muitos dos processos dos últimos anos: a possibilidade de superar o estágio de ações de resistência ou atos de extrema pressão. Uma das grandes armadilhas nesse caminho responde ao fato de que, na maioria das revoltas dos últimos tempos, o movimento de massas intervém desorganizado, essencialmente de maneira "cidadã". A classe trabalhadora que controla as “posições estratégicas” que fazem a sociedade funcionar (transporte, grandes indústrias e serviços) evita, com exceções pontuais, de alavancar essa força decisiva capaz de quebrar o regime como um todo e intervém como parte da "cidadania" diluída no "povo" em geral.

Porém não se trata apenas de uma força negativa, mas sim de que a intervenção do movimento operário é a que pode aglutinar em torno de si os setores em luta, numa aliança de classes contra o conjunto do regime burguês. O catastrofismo mecânico que Altamira tradicionalmente mantém o impede de ver que a crise histórica pela qual o capitalismo está passando não atinge de maneira homogênea todos os explorados e oprimidos. A burguesia e o regime se baseiam nesta relativa heterogeneidade para manobrar, procurando dividir entre "manifestantes legítimos" e aqueles que ele chama de "violencistas", onde agrupa os pobres da periferia e a juventude que enfrentam a repressão.

A jornada de paralisação da terça-feira, 12, que foi a mais importante desde o final da ditadura, foi uma amostra justamente da importância do que, na análise de Altamira, parece ter um papel acessório: a irrupção (parcial, certamente) do movimento operário com seu próprio peso, não mais simplesmente como parte da "cidadania". Superando o rotineirismo das direções burocráticas do Conselho da Unidade Social, a paralisação foi quase total nos setores da saúde e educação, além de funcionários públicos e municipais, sendo os portuários o setor mais determinado, que paralisou quase 95% dos portos e arrastou consigo, em menor medida, os setores da mineração. No entanto, áreas estratégicas do transporte público, aeroportos, indústrias ou postos fronteiriços, bem como em setores como trabalhadores florestais, permaneceram sem paralisar. Por outro lado, os cortes e mobilizações impediram o funcionamento normal do transporte público terrestre e interurbano. Centenas de cortes e barricadas se espalharam por todo o país, bem como as massivas mobilizações que marcaram uma jornada em que foi demonstrada a força da unidade dos trabalhadores, jovens e setores populares.

Essa demonstração da força operária, parcial e de apenas um dia, marcou um salto em todo o processo. Como se viu no medo que ele instalou no regime. As forças repressivas vacilaram, transcenderam seus atritos internos. Os partidos burgueses imediatamente se trancaram para negociar contra o relógio uma nova grande decepção, o chamado "Acordo para a paz social e a nova constituição", com seus plebiscitos e constituinte fraudulenta, procurando conter o desenvolvimento da luta de classes. Se apenas um dia de intervenção decidida de uma parte da classe trabalhadora - sem a maioria de seus setores estratégicos - unida à juventude e aos setores populares produziu isso, não é difícil imaginar o que aconteceria se a classe operária começasse a superar a burocracia e intervir com todo o seu peso.

Não ver o papel fundamental das posições estratégicas na produção, no transporte, nos serviços, é não pensar uma revolução, mas no máximo em um movimento de extrema pressão. Por exemplo, o que aconteceria se o movimento operário da mineração paralisasse a produção por tempo indeterminado, com as conseqüências que teria, não apenas nacionais - onde a mineração representa cerca de 10% do PIB -, mas internacionalmente, sendo que a produção chilena de cobre, por exemplo, representa mais de 27% do que é produzido no mundo? Ou, seguindo o exemplo concreto da greve geral e dos bloqueios na Bolívia em outubro de 2003 durante a "guerra do gás", podemos ver o que significou a luta em Senkata e sua planta de distribuição de combustível, o desabastecimento. Ou como o desenvolvimento da greve, dos bloqueios camponeses, etc., acabaram derrubando Sánchez de Lozada [2]. Quanto tempo o governo golpista de Áñez se sustentaria com uma greve assim?

Ao contrário do que Altamira insinua, deixando de lado a história do movimento operário no último século, uma greve geral política implicaria uma força enormemente superior a tudo o que vimos até agora. O regime herdeiro do pinochetismo no Chile não duraria mais do que um suspiro. Evidentemente, como Trótski apontou, a greve geral levanta o problema do poder, mas não o resolve. E aqui vamos para a segunda das definições de Altamira.

Conselhos para pressionar ou verdadeiros organismos de auto-organização e autodefesa

O segundo elemento que Altamira destaca é que:

...no Chile, começaram a se formar conselhos ou assembleias populares, o que significa que, de alguma forma, um organismo é estabelecido, se não de poder, das massas perante o Estado, o que de certo modo é um organismo de poder. O que significa "de certo modo"? Que se o Estado disser amanhã que não se pode manifestar e as assembleias populares convocarem para manifestar, o povo respeitará as assembleias populares. Não é suficiente para derrubar um governo nem estabelecer um novo governo, mas o monopólio do poder estatal relativamente extenso diminui. Nessas assembleias populares ou conselhos populares, estão sendo elaboradas reivindicações, proclamações, etc.

Essa abordagem de Altamira não se sabe se é intencional ou responde ao desconhecimento da situação, o que certamente seria compreensível, uma vez que, em 50 anos de existência, o PO não contribuiu em nada na construção de uma organização revolucionária no Chile. Mas a verdade é que os conselhos de cidadãos, longe de serem "de certo modo" organismos de poder, como Altamira diz, são uma política que o Partido Comunista e a Frente Ampla vem impulsionando como parte de sua estratégia de "processo constituinte" nas estruturas do regime atual. Eles são regulamentados como "instâncias de diálogo", "espaços consultivos" onde as proclamações e reivindicações que Altamira aponta são formuladas para serem enviadas aos parlamentares desses partidos.

Chama a atenção que sua reivindicação dos "conselhos" não tenha nada a dizer sobre isso. Poderia-se pensar que é uma imprecisão de um vídeo gravado às pressas, mas o artigo da Conferência sobre a tendência do PO é ainda mais categórico, dizendo que "as assembleias e conselhos no Chile colocam a questão do poder político". Bem, lamentamos dar as más notícias, mas hoje os conselhos não "colocam" a questão do poder. Isso não significa que eventualmente as massas se apropriem deles no futuro e lhes deem conteúdos totalmente diferentes, mas não é a realidade atual, nem muito menos. É claro que, sem a vocação de realmente intervir no processo chileno, você pode dizer qualquer coisa, mas nada acontecerá.

Nossos companheiros e companheiras do Partido de Trabalhadores Revolucionários (PTR), que vem intervindo ativamente no processo em Santiago, Antofagasta, Valparaíso, Arica, Temuca, Puerto Montt, Rancagua e outras grandes cidades do país (intervenção que pode ser seguida pelo La Izquierda Diario chileno, atualmente com 2 milhões de visitas no mês), participam de alguns desses conselhos onde são levados por algum setor para se organizar - o que é a exceção -, mas lutam para dar a eles outro conteúdo que não tenham, para que sirvam para definir o programa da luta e organizar a mobilização. Evidentemente, isso implica uma luta política aberta com o PC e a FA que Altamira, sintomaticamente, ignora.

No entanto, a prioridade do PTR é impulsionar organizações reais de auto-organização. Nesse sentido, há experiências de auto-organização que têm desempenhado um papel importante na luta e são um verdadeiro exemplo nacionalmente. A mais avançada delas é em Antofagasta, cidade de mineração de cobre em uma das regiões que concentra grande parte dos setores produtivos do Chile. Nós nos referimos ao Comitê de Emergência e Abrigo. Um espaço de auto-organização que articula trabalhadores da educação, do setor público, portuários, estudantes, residentes locais, organizações de direitos humanos, do mundo da arte, profissionais da comunicação, organizações sociais e políticas. Realiza assistência médica aos feridos, assistência jurídica contra a perseguição do Estado e vem articulando ações nesta importante cidade. Na terça-feira, dia 12, formou-se uma frente única com setores da CUT que resultou na mobilização de mais de 25 mil pessoas na cidade (que possui um total de 285 mil habitantes) e em piquetes para garantir a paralisação. O Comitê de Emergência e Abrigo, por sua vez, endossou a proposta de uma greve geral com paralisação por tempo indeterminado até que caia o governo Piñera e toda a sua repressão, chamando a não confiar na política do governo com sua farsa de constituinte e a avançar rumo a uma assembleia constituinte livre e soberana onde os trabalhadores e os pobres decidam e organizem as soluções para os problemas da grande maioria.

Certamente, esse tipo de experiência não surge do nada, como parece pensar Altamira, que vê conselhos imaginários que, por si só, "colocam a questão do poder". Junto com a espontaneidade, há muita militância por trás disso, como nas lutas contra a regulamentação do PC e da FA nos conselhos, ou para forjar experiências como a articulada em torno do Hospital Barros Luco, em Santiago, ou a unidade dos estudantes com os portuários de Valparaíso, etc. A pura espontaneidade que Altamira parece imaginar é um mito, como Rosa Luxemburgo já demonstrou em seu clássico Greve de massas, partido e sindicatos. Mas, é claro, pode ser um elemento tranquilizador para justificar a limitação dos comentários diante de um processo do tamanho do chileno, que acontece logo ali atravessando a cordilheira.

Assembleia Constituinte e a questão do poder operário

Por fim, Altamira destaca que no processo chileno:

...há uma consigna de poder. E essa consigna de poder que as próprias massas iniciaram na luta não é transferível para o poder, por exemplo, uma Constituinte.

Em seguida, contrapõe corretamente a proposta da Assembleia Constituinte às diferentes versões do "processo constituinte" dentro do regime. A este respeito, estamos de acordo. Atualmente, nossos companheiros e companheiras do PTR estão levando adiante uma dura luta política contra as tentativas de desvio do regime.

Mas o que significa a afirmação de Altamira de que a constituinte é uma "consigna de poder"? E se é uma "consigna de poder", que relação ela tem com a proposta de um "governo dos trabalhadores"? Elas se combinam, se substituem, são as mesmas? Não se sabe. Para acrescentar confusão, em um artigo recente dedicado ao Chile, ele argumenta que devemos lutar por "uma assembleia constituinte soberana que assuma a direção política do Estado". Mas de que estado? De um estado burguês? De um estado operário? Parece que não é relevante o suficiente esclarecê-lo. Assim, Altamira lança ao mar mais de um século e meio de discussões sobre o marxismo revolucionário, neste caso sobre o Estado.

Se com “consigna de poder” queremos dizer que nenhuma instituição do regime burguês teria que limitá-lo, rever ou vetar suas decisões, que envolve a queda de Piñera e se constrói sobre as ruínas do regime atual, que deve ter total liberdade para lidar e resolver todos os grandes problemas do país, poderíamos concordar. Mas algo muito diferente é que uma Assembleia Constituinte tenha o poder de impor efetivamente suas resoluções, ou seja, de superar a resistência (das forças repressivas e quadrilhas paraestatais) que a burguesia empregará contra qualquer medida que vá contra seus interesses fundamental. Com o atual retorno dos exércitos à intervenção direta contra as massas em diferentes países da região, não parece necessário esclarecê-lo. Para lidar com esses ataques (armados), é necessário um poder alternativo que também seja capaz de garantir a autodefesa do movimento de massas.

A luta por uma Assembleia Constituinte livre e soberana, que, como observou Trótski, é "a forma mais democrática de representação parlamentar", pode desempenhar um papel fundamental porque na própria luta para colocá-la em pé e, se implementada, na luta para impor suas resoluções contra a resistência dos capitalistas, setores cada vez maiores do povo trabalhador podem fazer sua experiência com a democracia representativa até o fim e ver a necessidade de superar o lugar do "cidadão" atomizado e se organizar a partir das empresas, fábricas, dos transportes, escolas, faculdades, etc., com delegados eleitos para desenvolver seus próprios organismos democráticas de poder (conselhos ou sovietes) e suas próprias organizações de autodefesa. Os quais, diga-se de passagem, são os pilares do governo dos trabalhadores pelo qual lutamos.

A proposta de Altamira de "uma assembleia constituinte soberana que assuma a direção política do Estado" sem especificar de que tipo de Estado estamos falando, por mais que à mesma se incorpore a consigna de "cordões industriais" ou organismos desse tipo, deixa em aberto um buraco estratégico fundamental, nada mais nem nada menos do que em torno da questão do caráter de classe do poder pelo qual se luta [3]. Não se sabe ao certo a diferença entre a abordagem de Altamira e aquelas como a do “Estado Combinado”, segundo o qual os conselhos (sovietes) são simples instâncias anexadas a um Estado (cujo conteúdo de classe não se sabe) que se dedicam simplesmente aos "assuntos dos trabalhadores". Teoria que obviamente se opõe a um verdadeiro poder com o qual os trabalhadores podem governar, definindo os rumos políticos da sociedade, bem como o planejamento racional dos recursos econômicos com base na propriedade estatal dos meios de produção.

Ilusão revoltista e luta política

Agora, se, como diz Altamira, as mobilizações massivas, mesmo que tenham caráter cidadão, são suficientes para paralisar o Estado, por que seria fundamental a luta contra a burocracia do Conselho de Unidade Social pela perspectiva de uma greve geral política? Por que esforçar-se para impor uma Frente Única Operária? Se os conselhos cidadãos que elaboram solicitações são "em certo ponto" organismos de poder, por que a luta política contra o PC e a FA para desenvolver verdadeiros organismos de auto-organização seria tão indispensável? Se uma instituição parlamentar - mesmo que seja a mais democrática possível - como uma Assembleia Constituinte é em si mesma uma "consigna de poder", por que a hegemonia da classe operária seria tão insubstituível?

A verdade é que os três elementos apontados por Altamira em relação ao processo no Chile levam à mesma consequência: liquidar a luta dos partidos com o reformismo e a burocracia sindical. Essa abordagem pode servir para criar a ilusão de que não é tão indispensável construir fortes organizações revolucionárias - nacional ou internacionalmente. Mas a realidade mostrada pelos processos da última década é muito diferente, com processos importantes que terminaram em desvios “à esquerda”, como o caso da Grécia com o Syriza - no qual Altamira chamou o voto na época - que acabou aplicando o ajuste e preparando o retorno do Nueva Democracia; ou do Podemos com relação ao 15M espanhol, que atualmente entrou no governo com o PSOE. Ou podem ainda serem capitalizados politicamente pela direita, como aconteceu parcialmente na França nas últimas eleições, onde Le Pen canalizou o "voto útil" contra Macron; ou como o junho de 2013 no Brasil que, diante dos ataques do PT e da ausência de uma esquerda que fosse uma alternativa, acabou retrocedendo e deixando seu lugar para as mobilizações da direita, nas quais se baseou o impeachment e, após, o golpe institucional. E assim poderíamos continuar os exemplos.

Altamira, em vez de propor partir do que há de mais avançado desse movimento espontâneo para superar seus limites, transforma esses últimos em virtudes para diluir a luta contra o reformismo e a burocracia. Ele não é o primeiro nem será o último a fazê-lo. Nahuel Moreno, em sua época, já havia argumentado que a revolução era um "trem" imparável que, por seu próprio impulso, ía além das intenções das direções do movimento de massas, fossem pequeno-burguesas ou burguesas. Consequente com isso, ele concluiu que: "não é obrigatório que seja a classe operária e um partido marxista revolucionário que dirijam o processo da revolução democrática para a revolução socialista..." [4]. Esta teoria fracassou estrondosamente. Altamira, que geralmente adjetiva seus adversários como "morenistas", deveria levar isso em conta [5].

Lenin tinha razão

A abordagem de Altamira sobre o processo chileno que criticamos nessas linhas não é diferente da que vem expressando, em um contexto diferente, nos debates sobre a situação argentina. Nesse caso, ele tenta diluir a importância da luta política com o kirchnerismo e a burocracia sindical. A responsabilidade de ambos em abandonar a convocação para qualquer luta minimamente séria após as jornadas de dezembro de 2017, deixando todos os ataques passarem sob a consigna de “há 2019”, parece não ter tido importância na configuração da situação atual.

No mundo de Altamira, a política é apresentada como um conjunto de "cadáveres não sepultados". A saber: a) "Os resultados das eleições do domingo, 27 de outubro, enterraram o corpo do macrismo há muito morto"; b) "A concepção do peronismo como um ’cadáver não sepultado’ faz parte da história da PO"; c) “nesta eleição aconteceu um enterro, vamos chamá-lo de honorável, de um regime que era um cadáver”. Estas são algumas das nefastas frases de artigos recentes com os quais a tendência de OP parece olhar para a realidade política.

Nesse contexto, não é estranho que, para Altamira, o problema da esquerda (e do movimento de massas) na Argentina seja reduzido, mais ou menos, a adotar a fórmula mágica de “fora Macri e assembleia constituinte”. Não ter adotado essa abordagem teria transformado o FIT-U em "uma força politicamente esgotada" (felizmente ainda não entrou na categoria de "cadáveres não sepultados"). No entanto, o mais ilustrativo é o fundamento com o qual ele propôs esse consigna como chave para a agitação da Frente de Esquerda.

Segundo Altamira, a proposta de “Fora Macri, Constituinte Soberana, Governo de Trabalhadores” era:

...o método próprio de diferenciação do kirchnerismo, porque se opõe a dois programas e dois métodos de ação em oposição ao governo macrista. O procedimento de diferenciação que consiste em denunciar todos os protagonistas da política (Macri, K, Massa, governadores, intendentes, o Papa, Lavagna, etc.) marca um nível grosseiro de despolitização e funciona como uma autoproclamação de uma esquerda que segue sendo o extremos minoritário de todo o arco político [6].

No entanto, esse "procedimento de diferenciação" que para Altamira parece ser "despolitização grosseira", Lenin considerou o principal objetivo da intervenção eleitoral. Assim, ele dizia em 1912, diante dos mencheviques que não queriam enfrentar os liberais progressistas, que:

...para os marxistas, o principal objetivo da campanha eleitoral consiste em [esclarecer] ao povo qual é a [essência] dos diferentes partidos políticos, [esclarecer quem] se pronuncia e porque, que interesses vitais efetivos guiam um ou outro partido e que classes da sociedade se ocultam atrás de um ou outro rótulo [7].

A campanha do FIT-U seguiu esse segundo caminho, buscando “esclarecer” na agitação em massa, a “essência” do macrismo como representante direto do capital financeiro, como a do PJ/kirchnerismo como representante da burguesia “nacional”. Ou seja, não os igualando, mas colocando o que cada um realmente é. Tendo mantido uma posição intransigente diante do PJ/kirchnerismo, a FIT-U buscou abordar aqueles que tinham expectativas nele. Tudo isso se refletiu na agitação, nos spots e nos debates eleitorais. Isso nos permitiu ampliar nossa audiência, respeito e conhecimento de nossas ideias (influência política), apesar do declínio nos votos no contexto da polarização.

Agora, essas lutas, que Altamira parece não querer dar, vão muito além das eleições, pois não resta mais do que enfrentar os "cadáveres não sepultados". No caso dos processos mais agudos da luta de classes, como vimos no Chile, a abordagem de Altamira se torna muito mais perniciosa, pois leva ao abandono da luta pela hegemonia operária, fundamental para o triunfo dos processos revolucionários. Infelizmente, não existe um trem imparável que nos leve por seu próprio impulso até a vitória da revolução socialista. Embora o capitalismo gere seus próprios coveiros, aos partidos revolucionários não resta escolha a não ser construí-los.


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FOOTNOTES

[1fundador do Partido Obrero da Argentina

[2Gonzalo Sánchez de Lozada Bustamante é ex-presidente da Bolívia. Governou de 1993 à 1997, e depois de 2002 à 2003, quando foi derrubado após orquestrar um massacre às revoltas populares, que resultou em mais de 80 mortos.

[3Como Trótski ressalta sobre a política que tiveram com Lenin na Revolução Russa: "Estávamos levantando o problema de uma insurreição que transferia o poder ao proletariado através dos sovietes. Quando perguntados o que faríamos, neste caso com a Assembleia Constituinte, nós respondemos: ‘Veremos; talvez a combinemos com os sovietes’. Para nós, isso significava uma Assembleia Constituinte reunida sob um regime soviético, no qual os sovietes eram maioria. E, como isso não aconteceu, os sovietes liquidaram a Assembleia Constituinte. Em outras palavras: tratava-se de elucidar a possibilidade de transformar a Assembleia Constituinte e os sovietes em organizações de uma mesma classe, jamais combinar uma Assembleia Constituinte burguesa com os sovietes proletários”.

[4Moreno, Nahuel, “Escuela de cuadros - Argentina, 1984. Crítica a las Tesis de la Revolución Permanente"

[5O profundo objetivismo expresso por Altamira, onde a luta pela hegemonia operária não tem a menor relevância, é a outra face de uma análise profundamente normativista e subjetivista das revoluções, como ele deixou estabelecido em seus textos sobre Cuba. Neles, ele define o Estado que emergiu da revolução com a estranha fórmula - do ponto de vista do marxismo - de "estado burocrático pequeno-burguês". O fundamento, de acordo com Altamira é que, diferentemente da Revolução Russa, "a expropriação do capital pela Revolução Cubana criou uma sociedade intermediária que já não é mais propriamente capitalista, mas muito menos socialista" (Altamira, Jorge, "A Revolução Cubana: um lamentável retorno ao morenismo”). Trótski combateu as visões que apresentavam a URSS como uma sociedade socialista e nem por isso negou o caráter "operário" do Estado. Trótski debateu na época contra visões subjetivistas como as de Altamira. Em polêmica com Burnham e Carter, e diante da brutal degeneração do Estado operário russo liderado por Stalin, Trotsky afirma: “isso significa que um Estado operário que entra em conflito com as demandas do nosso programa, deixa de ser, portanto, um Estado operário? Um fígado que sofre de malária não corresponde a um tipo normal de fígado, mas nem por isso o deixa de ser [...] O caráter de classe do Estado está determinado por sua relação com as formas de propriedade dos meios de produção”. E acrescentou: "enquanto essa contradição não passar da esfera de distribuição para a de produção e não destruir a propriedade nacionalizada e a economia planificada, o Estado continuará sendo um Estado operário". Particularmente contra a (in)definição de Burnham e Carter, ele afirma: “sua definição antimarxista da União Soviética como um Estado não-burguês e nem operário, abre a porta a todos os tipos de conclusões. É a razão pela qual essa definição deve ser categoricamente rejeitada” (Trótski, León,“Nem um Estado operário nem um Estado burguês?”, Trotsky, León, “¿Ni un Estado obrero ni un Estado burgués?”, Escritos de León Trotsky 1929-1940 [CD], Libro 5, Buenos Aires, Ediciones IPS-CEIP León Trotsky, 2000). Um caráter "antimarxista" bastante semelhante tem a definição esboçada por Altamira para o Estado que emergiu da Revolução Cubana.

[7Lenin, V. I., “Liberalismo y democracia”, Obras Completas, Tomo XVII, Buenos Aires, Cartago, 1960, p. 544.
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