Logo Ideias de Esquerda

Logo La Izquierda Diario

SEMANÁRIO

A guerra dos chips

Leonardo Vázquez

Foto: Chip de 7 nanômetros, fabricado desde 2018. A taiwanesa TSMC anunciou que começará a fabricar chips de 3 nanômetros a partir de 2022.

A guerra dos chips

Leonardo Vázquez

As tecnologias digitais representam um dos setores mais dinâmicos do desenvolvimento tecnológico contemporâneo, no contexto das dificuldades de recuperação da economia mundial desde a crise de 2008. A velocidade das mudanças que acontecem neste terreno fazem com que suas origens e tendências tenham hoje maior relevância por suas implicações em todas as atividades econômicas, sociais, militares e laborais.

Nesta nota tentaremos apresentar um olhar sobre a evolução da capacidade de processamento da informação desde suas origens, nos centraremos no surgimento da tecnologia dos microprocessadores ou semicondutores, e neste marco analisaremos a atual “guerra dos chips” ou crise dos semicondutores, que concentra uma das preocupações centrais das principais potências devido ao crescimento de sua demanda, potencializada pela pandemia.

As origens

Podemos dizer que toda a informática moderna, comunicações, redes, bases de dados e a chamada “internet das coisas”, presente cada vez mais em quase todos os aparatos, se baseia em três dimensões chave para entender seu desenvolvimento: processamento, armazenamento e transferência da informação. Do avanço nas capacidades e custos nestes terrenos dependem o resto dos desenvolvimentos que permitem que a informação digital substitua cada vez mais processos analógicos em todos os terrenos da atividade humana, gerando por sua vez inovações e possibilidades de desenvolvimento em tecnologia digital impensáveis décadas atrás.

Ainda que iremos nos concentrar aqui na evolução dos processadores, é preciso ter em conta que esta é acompanhada de contínuas melhorias nas memórias, na entrada/saída de dados, transferência de informação e diversas formas de melhorar o hardware, como também as melhoras permanentes a nível de software que fazem uso das novas capacidades e otimizam o uso dos computadores.

Também é preciso ter em conta que estas inovações vão se desenvolvendo no marco das relações de produção capitalista que orientam seus desenvolvimentos e os condicionam de acordo com as necessidades de lucro das empresas ou do interesse dos Estados das principais potências.

Primeiros computadores

Nos anos 1950, apareceram os primeiros computadores digitais de propósito geral que se fabricaram utilizando válvulas (tubos de vácuo ou bulbos). Esta tecnologia gerava tamanhos enormes dos computadores da época, grandes consumos de energia, problemas de aquecimento e uma capacidade de processamento limitada [1].

O transistor assentou as bases para a eletrônica moderna e marcou todos os desenvolvimentos posteriores até a atualidade. A tecnologia dos circuitos de estado sólido baseada em transistores evoluiu nesta década. Desta maneira o uso de transistores permitiu reduzir substancialmente custo, tamanho e peso dos processadores, assim como permitiu conseguir um menor consumo de energia e aquecimento. O emprego do silício (Si) como material semicondutor [2], de baixo custo unitário e com métodos de produção massiva, fizeram do transistor o componente mais usado para o design de circuitos eletrônicos até finais da década de 1950 [3].

No início da década de 1960, a eletrônica de estado sólido sofreu um notável avanço, que permitiu a integração de grandes quantidades de pequenos transistores dentro de um pequeno circuito integrado [4].

Desta maneira se conseguiu uma significativa redução em tamanho, custo e um maior rendimento, comparado aos transistores discretos. Isto porque devido a que os transistores (que constituem os circuitos) se “imprimem” (geralmente mediante fotolitografia) por sua vez sobre um material semicondutor em lugar de construir os transistores individualmente. O que faz com que usem muito menos material, aumentem seu rendimento e utilizem menos potência, pelo menor tamanho e proximidade de seus componentes. Os circuitos integrados ou chips são usados em praticamente todos os equipamentos eletrônicos hoje em dia.

Até os primeiros anos da década de 1970 era necessário utilizar vários chips para fazer um processador de um computador (CPU). Mas em 1971 a norte-americana Intel conseguiu pela primeira vez “imprimir” todos os transistores que constituíam um processador em um único circuito integrado (o Intel 4004). Nascia o microprocessador, sua primeira versão tinha uma frequência de 740 kHz, integrava em um único chip 2.300 transistores e uma tecnologia de 10 micrômetros (10.000 nanômetros), ou seja, na ordem de uns 1.000 transistores por centímetro.

A partir do momento que os microprocessadores foram comercializados, o custo de produzir um sistema de processamento caiu drasticamente. A aritmética, lógica e funções de controle que previamente ocuparam várias e caras placas de circuitos, agora estavam todas disponíveis em um único circuito integrado que era muito caro de desenhar e fabricar, mas barato de produzir em grandes quantidades.

Em paralelo também se lançam os primeiros chips de memória RAM, que permitiram que os dados críticos e de uso recorrente pudessem ser consultados e armazenados muito mais rapidamente pelos computadores. Em paralelo se desenvolveram também tecnologias que permitiram o armazenamento de maiores volumes de informação a um custo mais acessível [5].

Estes avanços, impactaram no desenvolvimento dos grandes centros de processamento com mais capacidade por um lado, enquanto que por outro lado começaram a aparecer os modernos computadores pessoais (conhecidos como PC) que permitiam executar programas destinados tanto a empresas como à informática de consumo massivo.

A informática de consumo surge durante os anos 80. As capacidades de processamento neste momento permitiam executar os primeiros programas de folhas de cálculo, processadores de texto e videogames. Em 1982, se estima que havia uns 15 milhões de PCs baseados no Intel 286, instalados ao redor do mundo [6]. Fruto de maiores capacidades de processamento e menores custos, ano após ano surgem novos modelos de computadores que deixam obsoletos os anteriores.

Durante os anos 90, o incremento das capacidades de processamento e a expansão da internet, além de melhores programas, permitem incorporar os primeiros conteúdos multimídia (imagem, áudio e vídeo) que também começavam a ser compartilhados, primeiramente por linhas telefônicas analógicas de baixa velocidade. A incorporação da fibra óptica permitiu paulatinamente obter uma maior velocidade nas comunicações digitais.

Ao fim da década de 1990, ao redor de 80% do tráfego de dados de longa distância do mundo se transmitia através de cabos de fibra óptica e o uso dos computadores ia se tornando mais massivo. A quantidade de computadores conectados à Internet passa de 1 milhão (1992), a 10 milhões (1996), e a 1 bilhão (2005).

Nos anos seguintes se desenvolveu todo tipo de circuitos integrados não somente de propósito geral mas de propósitos específicos, como os processadores gráficos ou GPU (Graphics Processing Unit) que depois serão usados também para servidores, “inteligência artificial” e criptomoedas. Os chips são de tamanho cada vez menor e consomem cada vez menos, como os modelos ARM [7], que permitem ser usados em dispositivos menores com baterias, como os celulares, tablets, etc.

A evolução dos chips também deixam sua marca nos distintos modelos de celulares que também ficam obsoletos ano após ano. Seguem se integrando cada vez mais componentes em um processador [8] e surgem uma infinidade de chips com designs específicos para uma multiplicidade de propósitos. Enquanto isso, se gera a expansão de novas necessidades, mercados e serviços digitais [9].

Junto às capacidades de processamento, cresciam também as possíveis aplicações das tecnologias digitais. No início suas aplicações se centram na possibilidade de realizar grande quantidade de operações matemáticas, complexas e repetitivas em pouco tempo, que permitiam sua aplicação em balística, criptografia, estatísticas, censos e todo tipo de operações matemáticas, contábeis e financeiras. Depois, com o desenvolvimento da Internet e o uso de sistemas nas empresas, começou a se utilizar cada vez mais para o processamento de texto, emails, chats, processadores de texto, folhas de cálculo e o crescimento das bases de dados.

Os primeiros conteúdos de imagem, áudio e vídeo podiam ser compartilhados. Mas seu uso era muito limitado, tanto em sua transferência, quanto no processamento e capacidade de armazenamento, devido ao volume de informação que este tipo de conteúdo requer e ao fato de que os custos dos computadores eram ainda muito altos. Poder substituir processos analógicos, com programas instalados que funcionam agilmente e de maneira econômica, como os arquivos de papel, os telefones, a rádio e a televisão, requer dispositivos com maiores capacidades digitais capazes de processar grandes volumes de informação a baixo custo.

Na atualidade há ainda muitas tecnologias que estão em processo de transição ao digital. Hoje em dia os microchips são usados não só em computadores, telefones, automóveis, maquinarias avançadas e robótica, mas cada vez mais a quase todos os dispositivos, processo que se conhece como “Internet das Coisas” (por suas siglas em inglês, IoT). Mas esse crescimento implica demandas ainda maiores de capacidade de processamento de informação, porque também crescem os volumes de dados que provêm de sensores e bases de dados, que possam servir para tomar decisões e dar respostas em tempo real [10].

Justamente, a possibilidade de automatizar muitos dos processos da atividade humana no futuro dependerá da possibilidade de que os dispositivos equipados com microchips e sensores possam tomar cada vez maior quantidade de “decisões” de maneira autônoma em tempo real (em menos tempo que o ser humano) em base a informação do entorno e a baixo custo [11]. Por sua vez, os dispositivos já equipados com chips, também recebem maiores volumes de informação e demandam mais capacidades para melhores respostas em menos tempo e com maiores graus de autonomia. Como se pode observar, como poderá evoluir a capacidade dos processadores no futuro e quanto poderá se manter esta tendência não é um dado menor.

A “Lei de Moore”

No ano 1965 Gordon Moore, físico, pesquisador e posteriormente cofundador da Intel, escreveu em um artigo de uma revista de eletrônica o que hoje se conhece como a “Lei de Moore”. Ali afirmava que a quantidade de transistores de um processador se duplicaria anualmente nos 10 anos seguintes, ou seja, um crescimento exponencial. Anos mais tarde ajustou este prognóstico a dois anos e esta previsão superou todas as expectativas (incluindo as do próprio autor) sustentando este crescimento por mais de 50 anos até a atualidade.

Ainda que esta previsão não incorpore outros fatores como rendimento efetivo, consumo de energia ou custos, permite ilustrar o ascenso exponencial das capacidades de processamento das tecnologias digitais. Nestes momentos, no muito mais restrito mundo da informática, se tinha claro que a tecnologia digital ia ter importantes avanços pelas vantagens dos chips, os baixos custos do silício e depois da fibra óptica, mas ninguém imaginava um crescimento exponencial semelhante, nem por tanto tempo.

VÍDEO: Evolução dos microchips e a Lei Moore, faltam os dados de 2020/2021 que chegam a 60 milhões de transistores. Tudo parece indicar que a tendência se manterá ao menos por mais alguns anos.

Sobretudo é importante remarcar que a redução do tamanho dos chips implica também um menor consumo de energia e portanto um uso mais eficiente do processador e um menor custo do mesmo. A consequência directa da Lei de Moore é que os preços baixam ao mesmo tempo que as prestações sobem: o computador que hoje vale 3000 dólares custará a metade no ano seguinte e estará obsoleto em dois anos. Isto tem importantes implicações, porque uma empresa que desenvolva uma vantagem neste terreno, terá vantagens qualitativas sobre o restante.

Há anos que se discute quando esta lei chegará a seu limite físico, no entanto até 2020 se mantém e se espera que possa continuar por mais alguns anos. O próprio Gordon Moore estima que poderia chegar até 2025, questão que parece razoável depois dos chips de 5 nanômetros fabricados desde 2020 pela TSMC (Taiwan Semiconductor Manufacturing Company, Limited) chegando aos 60 milhões de transistores. Em 2022 estaria começando a fabricar chips de 3 nanômetros [12], com planos de fabricar chips de até 2 nanômetros para 2024/2025 [13]. Mas anunciaram o que até pouco tempo parecia impossível, que tecnicamente será possível chegar aos chips da ordem de 1 nanômetro [14].

Ainda que ocorra um crescimento mais lento e se chegue a um limite, também se pode esperar melhorias a nível do design e a nível do software que permitam um melhor aproveitamento do hardware. No entanto, cedo ou tarde se estima que se chegará a um limite da tecnologia atual. Há em curso distintas pesquisas que incluem processadores quânticos, estudos de materiais e nanotecnologia, e não se pode descartar que em algum momento surjam novas alternativas que permitam superar os limites atuais. Mas antes há um longo caminho a trilhar nos próximos anos.

A fabricação de semicondutores na atualidade

A indústria dos semicondutores sempre esteve exposta a altas e baixas, mas desde o ano 2016 a demanda não para de crescer. A demanda teve um salto sobretudo desde a pandemia, o que gerou uma crise de escassez de chips que afetou indústrias de todo o mundo.

As empresas do setor estão trabalhando a 100% de sua capacidade mas não conseguem satisfazer a demanda, tendo que atrasar ou recusar pedidos de que dependem outras indústrias [15]. Esta crise dificilmente se reverterá rapidamente pela complexidade que estes processos de fabricação têm, e se estima que só durante 2022 se poderá começar a dar resposta à crise mais aguda de chips, mas que a escassez se manterá pelo menos até 2023.

O mercado da fabricação (conhecido como fundição) de semicondutores é dividido entre muito poucos jogadores. O enorme esforço econômico constante que é necessário assumir para sustentar a inovação e manter a competitividade fez com que somente a taiwanesa TSMC fique com 54% do mercado e a Samsung (Coreia do Sul) com 17% do mercado, concentrando a fabricação de chips de última geração [16].

Muito atrás seguem outras fundições como a UMC (Taiwan) e a GlobalFoundries (EUA) com 7% do mercado e a chinesa SMIC com 5%. Outras empresas como a AMD, NVDIA, Qualcomm, etc., se concentraram no design dos chips encomendados pelas chamadas “fundições” [17].

Desta maneira quem tem uma vantagem indiscutível sobre o resto, em tecnologia e capacidade de produção, é a TSMC, a sexta empresa mais valiosa do mundo, que fabrica em Taiwan seus chips mais avançados. A norte-americana Intel, que soube ser líder no mercado, ficou para trás há muitos anos e hoje tem que recorrer à TSMC para a fabricação. Enquanto que a chinesa SMIC (Semiconductor Manufacturing International Corporation), está ainda muito atrás, apesar das cifras milionárias investidas pelo governo desse país [18].

TSMC tem as fábricas de semicondutores mais avançadas e de maior capacidade, seu modelo de negócios se concentra na fabricação de semicondutores para outras empresas executando os designs por encomenda. Em sua carteira de clientes coabitam AMD, NVIDIA, Qualcomm, Apple, Sony, Huawei, AWS (Amazon), Google, Facebook, Microsoft, Nintendo, Ford, Tesla, entre muitas outras. Não somente é questão de dinheiro, se requer tempo, capacidades industriais acumuladas, pessoal capacitado, fornecimentos assegurados de matérias-primas e fornecedores de componentes de outros países [19].

A importância estratégica que a taiwanesa TSMC tomou, a colocou no centro das disputas geoestratégicas entre EUA e China. No entanto há uma empresa que ocupa um papel ainda mais central na fabricação dos microchips, que é a holandesa ASML (Advanced Semiconductor Materials Lithography) que é a única que fabrica as máquinas de litografia ultravioleta extrema (EUV, Extreme Ultra Violet), com as que se “imprime” os circuitos sobre as bolachas (ou wafers) de silício.

A dependência da ASML e das cadeias de fornecimento

A ASML é uma empresa dos Países Baixos [20] que desenha e fabrica os conjuntos fotolitográficos que os principais fabricantes de semicondutores utilizam em suas fundições. Esta empresa fabrica as únicas máquinas que permitem desenvolver os chips de uma arquitetura de menos de 10 nanômetros. Suas máquinas são enormes e custam uns 150 milhões de dólares. Há quem as defina como as máquinas mais complexas já construídas pela humanidade, que necessitam cerca de 5.000 fornecedores para sua fabricação. Se estima que 75% de sua matéria-prima da mais alta tecnologia provém dos EUA, Grã-Bretanha, Alemanha e Japão. Frente à crescente demanda, a ASML anunciou planos de aumentar sua produção anual de 35 a 55 máquinas em 2022, e mais de 60 em 2023.

Para impedir que a China chegue a esta tecnologia, em 2020 o Departamento de Comércio norte-americano classificou como “risco inaceitável” o possível “uso final militar” da tecnologia da SMIC, o maior produtor de semicondutores da China. O Secretário de Estado Mike Pompeo intercedeu para convencer a Holanda a bloquear a venda de maquinário da ASML para a China, com o objetivo de restringir o acesso da SMIC à tecnologia necessária para a fabricação de chips mais avançados. Previamente, a mesma SMIC já tinha sido afetada pelo bloqueio contra a Huawei, seu maior cliente, responsável por 20% de seus lucros, em 2019, na disputa pelo 5G [21].

Isto mostra tanto as dificuldades da China para poder superar sua dependência devido à enorme interdependência das cadeias de valor internacionais de alta tecnologia, como as preocupações dos EUA para evitar que a China possa fabricar chips mais avançados, enquanto que ambos dependem de Taiwan (uma ilha a poucos quilômetros do gigante asiático, considerada como parte de seu território pela China) para abastecer a suas indústrias e seus armamentos.

Disputa entre EUA e China

Não somente as empresas de tecnologia, senão a criptografia, computadores militares, aviões, drones, os equipamentos dos soldados e todo o armamento moderno mais avançado das principais potências também formam parte da demanda de chips que são necessários em número cada vez maior, menores tamanhos e maiores capacidades.

Ainda que os Estados nacionais sempre tenham tido um papel fundamental na defesa de suas respectivas indústrias, na questão dos semicondutores a intervenção dos Estados passou a desempenhar um papel estratégico central, econômico e geopolítico.

Em meio a esta corrida, os EUA levam vantagem com relação à China, mas o certo é que no momento ambos países dependem da taiwanesa TSMC para a fabricação dos componentes mais avançados que suas indústrias e seus armamentos precisam, e todas dependem da holandesa ASML.

Os planos da indústria

A TSMC não está disposta a perder sua liderança, e anunciou que gastará 100 bilhões de dólares para ampliar sua produção. Já anunciou que abrirá novas fábricas no Japão e Arizona (EUA) que receberão subsídios dos respectivos governos, e também planeja expandir suas fábricas na China, mas seguirá priorizando o desenvolvimento de seus chips mais avançados em Taiwan [22]. Por sua vez, a Samsung, que não quer ficar para trás, anunciou também investimentos milionários e a abertura de novas fábricas [23].

O fato que o mais avançado de sua indústria tecnológica e militar dependa de uma fábrica de Taiwan é uma preocupação central para os EUA e além disso transforma a “disputa por Taiwan” em uma questão geoestratégica de primeira ordem. A possibilidade de uma escalada do conflito da China com Taiwan preocupa também pela capacidade que a TSMC tem. Isto motoriza a tentativa dos norte-americanos de fortalecer a produção nacional destes componentes e a busca da instalação de filiais da TSMC fora de Taiwan. Ainda que os EUA busque apoiar a Intel [24] para recuperar terreno, também tem que se apoiar na TSMC porque depende de seus componentes mais avançados, questão que não poderá ser revertida rapidamente [25].

A China, por mais que não esteja ainda à altura das grandes fundições na fabricação de chips, busca apurar o passo na corrida. Está longe de completar seus planos de “independência tecnológica” em matéria de chips, mas busca seguir apoiando suas empresas mais avançadas como a SMIC e a Huawei apesar dos boicotes norte-americanos e de Taiwan [26], enquanto que, assim como os EUA, busca reforçar sua colaboração mútua com a TSMC, da qual depende, enquanto busca reforçar sua infraestrutura, know-how e cadeias de fornecimento que estes complexos processos de fabricação requerem. Enquanto a disputa por Taiwan também toma maior importância para a China.

Conclusões e perspectivas

Desde o ponto de vista econômico, não se pode descartar que os milionários recursos colocados na competição tecnológica entre as potências gerem novas bolhas, crises de sobreacumulação e sobreprodução, que tentarão descarregar sobre a população.

O desenvolvimento dos microprocessadores é uma questão de primeira ordem para os Estados e burguesias das principais potências, não precisamente para dar respostas aos problemas da humanidade, senão por seus interesses de rapina.

As enormes capacidades e desenvolvimentos tecnológicos da humanidade são postos em função dos lucros de uma classe capitalista cada vez mais concentrada enquanto os exércitos das principais potências que defendem estes interesses se armam com cada vez maiores capacidades de destruição para disputar os mercados.

Os apologistas do sistema sugerem uma espécie de “teoria do derrame tecnológico” no qual as inovações que se desenvolvem cedo ou tarde chegarão a beneficiar o resto da população. Não importa se o desenvolvimento de produção é orientado pelo lucro capitalista e os desenvolvimentos militares das potências, a longo prazo terminará derramando em melhorias para toda a humanidade.

Mas isto não é assim, isto não é o que acontece e fica cada vez mais claro para milhões em todo o mundo depois da pandemia. Aí está o aumento da desigualdade durante décadas para demonstrá-lo. Mas o centro do problema não é somente a desigualdade, a questão é precisamente como se organiza a produção de bens e serviços neste sistema.

O problema não é falta de capacidade de produção [27], mas precisamente o que se produz e para que interesses. É isto o que termina guiando os desenvolvimentos tecnológicos em função da necessidade de lucro das empresas, da precarização do trabalho, do crescente poder destrutivo dos exércitos, da apropriação do conhecimento mediante patentes e o uso dos dados pessoais para publicidade e a geração de necessidades supérfluas [28]. E é isto o que atenta diretamente contra a saúde, a educação, o meio ambiente, o atendimento das necessidades sociais e a redução da jornada de trabalho para o descanso, o ócio, o arte e o estudo. Para isso, não somente as inovações científicas e tecnológicas devem ser patrimônio da humanidade, senão que é necessário terminar também com a propriedade privada dos meios de produção.

Não basta combater a desigualdade, é necessário organizar a produção sobre novas bases. A tecnologia abre enormes possibilidades para uma planificação democrática da economia em função das necessidades sociais. São as e os trabalhadores os que utilizam, produzem e fazem funcionar a tecnologia e toda a economia. É necessário se organizar para enfrentar as consequências deste sistema em decadência, mas do que se trata é de mudar suas bases.

Tradução: Francisco Marques.


veja todos os artigos desta edição
FOOTNOTES

[1Isto se dá tanto nos EUA como na ex-URSS que desde 1948 começa a desenvolver a MESM (Máquina Electrônica de Cálculo Menor) que começa a funcionar em 1950.

[2Os primeiros transistores foram feitos de germânio. Em meados de 1950 foi substituído por silício, que permitia a operação a altas temperaturas. Em 1954, Gordon Kidd Teal da Texas Instruments produziu o primeiro transistor de silício, comercializado em 1955.

[3Em 1965 se construiu o Programa 101 pelo italiano Pier Giorgio Perotto e a empresa Olivetti do mesmo país. Uma das primeiras calculadoras programáveis de escritório com impressora. Ver Documentário Programma 101: A máquina que mudou o mundo. Ao mesmo tempo a ex-URSS lança os primeiros minicomputadores MIR (do russo, Máquina para cálculos de engenharia), que tinham uma implementação de hardware de uma linguagem de programação de alto nível.

[4Em 1960 se começa a desenvolver os primeiros circuitos integrados em meio a disputas de patentes, o primeiro cliente da nova invenção foi a Força Aérea dos Estados Unidos, mas os computadores que usavam começaram a aparecer desde 1963.

[5O primeiro disco rígido, aparecido em 1956, foi o Ramac I, apresentado com o computador IBM 350: pesava uma tonelada e sua capacidade era de 5MB. Maior que um frigorífico atual, este disco rígido trabalhava ainda com válvulas de vácuo e requeria um console separado para seu manejo. Em 1992, os discos rígidos de 3,5 polegadas alojavam 250MB, enquanto que 10 anos depois haviam superado 40GB. Em 2017, já se dispõe no uso cotidiano de discos rígidos de mais de 5TB. Desde o ano 2000 começam a se popularizar as memórias flash, primeiro em cartões SD e depois em discos de estado sólido ou dispositivos de armazenamento SSD. Preço por GB de memórias SSD em dólares: 2004 ($430,27), 2005 ($223,05), 2010 ($2,76), 2015 ($0,25).

[6Por um lado a Apple com seu modelo de negócio integrado entre hardware e software específico e por outro a Microsoft centrada no desenvolvimento de software para arquiteturas x86. Depois o GNU-Linux, que a partir de Unix permite um desenvolvimento de um sistema operativo sólido, aberto, livre de restrições de licenças ainda que durante muitos anos menos amigável para seu uso massivo.

[7A ARM, por sua sigla em inglês, Advanced RISC Machines. Em 2005, cerca de 98% de todos os celulares vendidos usavam ao menos um processador ARM. Em 2010, os produtores de chips baseados em arquiteturas ARM informaram envios de 6,1 bilhões de processadores baseados em ARM, o que representa 95% dos smartphones, 35% dos televisores digitais e os decodificadores e 10% dos notebooks. Em 2011, a arquitetura ARM de 32 bits foi a arquitetura mais utilizada em dispositivos móveis e a de 32 bits a mais popular em sistemas integrados. Em 2013, se produziu 10 bilhões e “os chips baseados em ARM se encontram em quase 60% dos dispositivos móveis do mundo”.

[8Desta maneira também surgem os SoC, do inglês “System on a Chip”, que integram não só um processador senão grande parte dos componentes de um dispositivo digital (como CPU, GPU, RAM, DSP, memória flash e outros módulos) em um único circuito integrado ou chip. Mais informação em Todos querem seu próprio chip ARM: Google, Apple, Huawei e Samsung já fabricam seus SoC.

[9Nos novos setores econômicos e laborais que surgem fruto das tecnologias digitais, a falta de regulações é aproveitada pelas empresas e os Estados para realizar abusos de todo tipo em matéria de precarização do trabalho, práticas monopólicas, violação de direitos à privacidade dos dados, assim como tentativas de frear inovações a todo custo mediante patentes e propriedade intelectual.

[10Um exemplo é a tecnologia do 5G, que nos dispositivos móveis permite maiores velocidades de Internet móvel e maiores resoluções em imagem e vídeo, que gera parte das disputas por chips mais potentes que possam processar maiores volumes de informação.

[11As resoluções de áudio e vídeo fluidos, também têm limites “humanos”, em tempos de resposta e capacidade da vista e da audição que é possível superar, para não falar da informação que cada vez mais sensores colhem em distintos dispositivos, mas que requerem mais capacidade de processamento.

[12Especialistas consideram que os chips de 3 nanômetros que a TSMC anunciou que começará a produzir em Taiwan em 2022, terão até 70% mais capacidade que os hoje mais avançados de 5 nanômetros. A fábrica estará localizada na cidade de Shanhua, ao sul da ilha, e suas instalações ocupam o equivalente a 22 estádios de futebol. A fábrica já construída pode ser vista no Google Maps.

[13Comparando-se com o tamanho de um vírus como o da Covid-19, que tem aproximadamente 100 nanômetros, entrariam uns 20 transistores de 5 nanômetros dos que já circulam no mercado. A quantidade de transistores de um destes processadores supera mais de 7 vezes a população mundial.

[14A TSMC vem fabricando desde 2020 chips de 5 nanômetros como o Apple M1 Max, 57 bilhões de transistores e o Graphcore MK2, lançado no ano 2021 com 60 bilhões de transistores. Os 3nm da TSMC chegarão inclusive antes do previsto: seu CEO afirma que os chips de 1nm são factíveis.

[15A Sony teve que atrasar o lançamento de seus novos consoles PS5. A Microsoft reduziu a produção do XBOX Series X. A Samsung (sendo o 2º produtor mundial) teve que atrasar o lançamento de seu último Galaxy Notes. A Apple atrasou o lançamento do IPhone 12. E aconteceram numerosas suspensões na indústria automotriz, que ao ter menos demanda de chips que o resto foram os primeiros em não receber as encomendas frente à escassez de chips. Eventos que levantaram luzes de alerta nos governos de vários países pelas implicâncias em postos de trabalho.

[16Se estima que 70% dos chips de memória e 83% dos chips de processamento provêm de Taiwan e da Coreia do Sul.

[17Algumas destas empresas compartilham clientes. A NVIDIA, por exemplo, é cliente tanto da TSMC como da Samsung. E a AMD é cliente da GlobalFoundries (nascida a partir desta) mas também é cliente da TSMC em seus chips avançados.

[18A China parte de mais atrás, já que recentemente pôde começar a produzir chips de 14 nanômetros para 2019, duas gerações atrás dos EUA e três gerações atrás de Taiwan. E isto apesar dos investimentos multimilionários do governo chinês nos últimos 20 anos. A China segue sendo um importador neto de microprocessadores (o maior importador de chips do mundo), o que mostra sua dependência neste terreno. Apesar de que aumentou em 20% sua capacidade de produção de chips, chegando a cobrir em apenas 38% de sua demanda interna (se trata de chips menos avançados), mas depende da TSMC para a produção de seus chips mais avançados.

[19Segundo a Medium.com, levantar uma fábrica de semicondutores custa entre 15 e 20 bilhões de dólares. Se não se vende os chips mais avançados do mercado, a fabricação se torna obsoleta, embora a escassez de chips de 28 nanômetros seja a mais pronunciada. Isto faz com que os fabricantes se concentrem nos chips mais avançados (e melhor pagos) relegando a produção de processadores menos complexos, questão que também gera gargalos nos fornecimentos, por exemplo na indústria automotriz.

[20Com participação da Philips, entre outras empresas.

[21Alguns analistas sugerem que bloquear o acesso da SMIC às máquinas da ASML poderia impulsionar a China a desenvolver uma tecnologia própria de litografia ultravioleta extrema, ainda que isto, além de levar muitos anos, implique enormes dificuldades pelas cadeias de fornecimento de alta tecnologia que tais fábricas requerem.

[22Atualmente a TSMC dispõe de uma fábrica em Washington e centros de design no Texas e na Califórnia. A instalação de cada uma destas fábricas mais avançadas não é uma questão nada simples, e se estima que nos EUA estejam operativas somente a partir de 2024 para produzir chips de 5 nanômetros, mas nesta data a TSMC já estará produzindo chips de 3 nanômetros desde 2022 em Taiwan e talvez de 2 nanômetros, anunciados para 2024/2025.

[24A Intel busca recuperar terreno na fabricação de chips, onde foi superada, e anunciou que planeja gastar 95 bilhões de dólares nos próximos 10 anos, mediante dinheiro próprio e subsídios do governo norte-americano. Buscará instalar também duas novas fábricas no Arizona (EUA) para trabalhar junto à TSMC, com o plano de fabricar chips com a tecnologia x86, ARM dos quais se abastece o setor informático, como Amazon, Google, Microsoft, e Qualcomm. Também ampliará a de Novo México (EUA) e abrirá outras na Europa.

[25O governo norte-americano também apoiará outras empresas do setor, como a GlobalFoundries, que anunciou em meados de julho de 2021 que vai construir uma nova fábrica no estado de Nova York, que lhe permitirá duplicar sua capacidade de produção de circuitos integrados. Enquanto que a Texas Instruments iniciou em maio a construção de uma nova fábrica de chips em Dallas (Estados Unidos) que lhe custará 3,1 bilhões de dólares, e confirmou que planeja construir mais outra a curto prazo.

[27Ainda que com a liberação das patentes que freiam os desenvolvimentos das inovações, a cooperação nos processos produtivos, junto da possibilidade de que toda a humanidade possa deixar de viver para a subsistência e possa estudar e capacitar-se, as potencialidades de desenvolvimento tecnológico seriam enormemente superiores às atuais.

[28Por exemplo, os recursos que se destinam para publicidade de todo tipo de necessidades supérfluas são gigantescos, em lugar de uma orientação ao consumo baseado em melhorias para a população. Da mesma maneira, os algoritmos das redes sociais poderiam ser abertos, públicos, orientados em um sentido não comercial, e resguardando a privacidade das pessoas. Não há nenhum impedimento técnico para que isto seja possível, mas é justamente o que guia seus negócios.
CATEGORÍAS

[Guerra comercial EUA x China]   /   [Ideias de Esquerda]   /   [Tecnologia]   /   [Teoria]

Leonardo Vázquez

Comentários