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ANÁLISE | A encruzilhada do imperialismo alemão no mundo da Covid-19

O principal imperialismo do continente europeu se vê diante de um conjunto de ameaças às suas posições econômicas e geopolíticas, uma série de grandes desafios cujos desenvolvimentos podem ser determinantes para muito mais do que a Alemanha e a União Europeia.

segunda-feira 11 de maio de 2020 | Edição do dia

A pandemia do coronavírus e o concomitante aprofundamento da crise econômica internacional desacorrentaram uma série de medidas nacionalistas e reconfigurações desde os primeiros estalos na Europa. Um continente já atingido pela desaceleração do pós-crise de 2008 agora mergulha, junto ao conjunto da economia mundial, em uma perspectiva de depressão econômica profunda. Aparecendo em um período já de incertezas como mais um grande catalisador, a crise pandêmica e econômica mundial tem acelerado como não se via há décadas o desenvolvimento das tendências disruptivas e centrífugas apresentadas pelo capitalismo. Nesse contexto, o principal imperialismo do continente europeu se vê diante de um conjunto de ameaças às suas posições econômicas e geopolíticas, grandes desafios cujos desenvolvimentos podem ser determinantes para muito mais do que o tabuleiro local da Alemanha.

Como já colocamos em artigos anteriores aqui no Esquerda Diário, a crise sanitária na Europa atingiu com maior força inicial a Itália, primeiro país a entrar em isolamento completo, com fechamento de fronteiras, empresas, e um forte policiamento e militarização nas ruas. Tais medidas não foram suficientes e o sistema universal de saúde italiano se viu colapsando, após décadas de precarização neoliberal. Diante desse cenário no país vizinho, os países da UE, em um primeiro momento e com alguns elementos que se estendem até hoje, efetivaram uma verdadeira “retirada nacionalista” e deixaram a Itália e outros países mais atingidos à própria sorte.

A trapalhada causada pelo desespero generalizado das lideranças nacionais, apesar das demonstrações de solidariedade póstumas (baixada a poeira inicial do surto do vírus e diante do repúdio generalizado), e a predominância dos interesses das burguesias nacionais das grandes potências europeias, abriram mais uma ferida no já hemorrágico multilateralismo europeu. Um exemplo disso é a avaliação de mais da metade da população italiana, que passou a considerar mais “amigos” do povo italiano países como Rússia e China (que sagazmente buscaram preencher o espaço de influência desocupado) do que estados nacionais do bloco, como Alemanha e Holanda, de acordo com uma pesquisa realizada no país.

A Alemanha, particularmente, ocupou um lugar de destaque na retirada nacionalista e na posterior briga pelo destino da UE. Um Estado que barrou a exportação de insumos quando países vizinhos mais precisavam, instaurou medidas policialescas para impedir protestos e impor seu autoritarismo, e deu uma luta até o final para não se comprometer financeiramente com os auxílios aos países do bloco mais atingidos pelo vírus e pela crise econômica. Essa mesquinhez capitalista não se trata de um problema moral da elite germânica, mas de uma luta pela própria vida em meio ao tabuleiro do grande jogo capitalista mundial, envolvendo economia, geopolítica e luta de classes.

Seguindo as tendências abertas pela crise de 2008, o cenário financeiro e geopolítico do pós-Lehman vinha sendo de visível exacerbação das disputas entre as principais potências imperialistas. O protecionismo nos principais países industrialmente desenvolvidos - que não havia sumido totalmente, mas se escondia por trás do discurso multilateral e globalizante - teve um crescimento acompanhado do aumento da predação neoliberal sobre os países subordinados. Por sua vez, em 2012, em meio ao desenvolvimento da crise do euro, Juan Chingo apontava que as relações entre Alemanha e EUA se desenvolviam no sentido de um importante cisma geopolítico entre as potências, com a Alemanha buscando conformar e liderar uma entidade política influente na Europa e com interesses distintos dos estadunidenses [1]. De lá pra cá muitas foram as tentativas de conformar um pólo de influência mais ampla independente dos Estados Unidos, uma diretriz estratégica que se mostra até agora sem grande sucesso, para além de fatos episódicos [2], e a atual crise do bloco europeu, a maior da sua história, parece diminuir ainda mais as margens para isso.

A crise estrutural não-resolvida e o estancamento relativo das economias no pós-2008 já tiveram relevância central nos giros nas relações interestatais no período anterior. Isso se expressa, por exemplo, no desenvolvimento da competição EUA-China como um fator determinante no tabuleiro internacional e na posição defensiva ocupada pela Alemanha no mercado mundial tomado por essa disputa. Na sequência do aumento das suas dificuldades comerciais, o capital alemão (com seu gigante setor de montadoras, indústrias químicas e um poderoso setor financeiro) já se encontrava sob ameaça de ser espremido pelos capitais estadunidense e chinês. Uma condição agravada ao passo que o país se mostrava como o principal perdedor da “guerra comercial” entre as duas potências estrangeiras.

Vale lembrar o cenário histórico do início do ano, quando o valor da Apple (EUA) atingiu $1,42 trilhões e superou sozinho as 30 maiores companhias alemãs (reunidas no índice DAX30). Como bem colocava o Financial Times na época, essa relação entre a gigante do mercado estadunidense e a nata do capital industrial alemão mostra a diferença de investimento entre o Vale do Silício e o país europeu. É um entre outros diversos indicativos de que, no universo do capital financeiro, as indústrias que antes dominavam, hoje se tornaram relativamente pequenas e frágeis em relação aos tubarões da tecnologia.

Essas mudanças no mercado mundial promovidas pelo desenvolvimento tecnológico recente, como os serviços de aplicativos, o comércio digital, o 5G e a inteligência artificial, são setores em que a Alemanha está para trás. Há também o risco crescente de que os grandes monopólios tecnológicos do Vale do Silício engulam setores inteiros da indústria alemã e com imensa facilidade. Isso é, o capital alemão teme ser espremido na competição entre os capitais estadunidense e chinês, na medida em que fica pra trás na corrida tecnológica e perde competitividade, assim como ao passo que a indústria de alta tecnologia aumenta sua cadeia de valor. É um risco para a indústria alemã que as empresas estrangeiras de software se insiram nas relações produtor-consumidor e tornem-se intermediárias obrigatórias nessa relação, ganhando influência decisiva na economia exportadora alemã.

"Nos últimos dois anos eu ouvi muitos CEOs alemães dizendo: "se não mudarmos agora, nós podemos estar fora do mercado nos próximos cinco ou 10 anos’" - disse um consultor de branding europeu .

Essa posição de debilidade ressurge em meio à pandemia e à histórica crise econômica. Para a Alemanha, um país que tem 50% do PIB dependente de exportações, a contração do seu mercado mundial - em especial o chinês - é um desafio vital, principalmente diante do cenário de recessão global e de prazo indeterminado disseminado pelo vírus. Observemos que, se em 2019, a economia alemã já havia sofrido uma importante contração, as novas perspectivas não são nada melhores.

A indústria automobilística alemã retirava 1/3 de seus lucros das exportações para a China, um mercado que vinha em retração, despencou com as medidas de lockdown e agora passa a esboçar uma instável recuperação. Outro aspecto da relação sino-germânica são as 5000 empresas alemãs operando na China, muitas delas que tiveram de ser paralisadas pelo surto de coronavírus e agora reativam-se em meio a uma histórica queda na demanda. Nada interessante para quem já queria esquecer 2019. De fato, as perspectivas dos empresários europeus para a economia alemã vão de “provavelmente pior do que o significado tradicional de horrível” a “escorregando rumo ao abismo”, como podemos conceber pelo conjunto dos fatores.

Mas, não apenas das rosas da exploração do trabalho e do comércio mundial vive a relação Alemanha-China, como indica a definição oficial da Bundesverband der Deutschen Industrie (Federação das Indústrias Alemãs), que toma o gigante asiático como “competidor estratégico que utiliza todas as alavancas para ganhar supremacia tecnológica sobre seus parceiros comerciais”. Como colocaram em março o ministro da economia da Alemanha, Peter Altmaier, como também a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, o capital europeu está determinado a impedir que suas empresas estratégicas sejam compradas ou influenciadas por investimento estrangeiro - visto que o colapso da economia colocou diversas empresas do continente em risco, derrubando seus valores no mercado. Altmaier anteriormente até mesmo propôs um “fundo de estabilização econômica” voltado à compra de empresas nacionais de tecnologia “crucial para a competitividade no futuro”, uma iniciativa elaborada após a venda do maior grupo de robótica germânico, KUKA, para a chinesa Midea, em 2016.

Da parte dos Estados Unidos, como colocamos anteriormente, as gigantes da Big Tech norte-americana (internacionais do ramo tecnológico, como Microsoft, Apple, Amazon, Google etc.) e sua flexibilidade e capacidade de investimento - com a artilharia de Wall Street - ameaçam as posições alemãs. Pelo tamanho e pela versatilidade dos empreendimentos, a Big Tech estadunidense (e chinesa) ameaça entrar e dominar outros ramos, utilizando de sua imensidão de dados para fazer isso da forma mais eficiente possível.

A estadunidense Tesla, por exemplo, do segundo semestre de 2019 para o início de 2020, superou o valor de mercado da alemã Volkswagen - além de recentemente ter aberto uma "gigafábrica" inédita em Berlim (que já foi motivo para diversos protestos contra a drenagem excessiva das fontes de água locais), no que vem sendo reconhecido como uma audaciosa declaração de guerra aos gigantes automotivos alemães. Também empresários da indústria farmacêutica temem que o desenvolvimento de gigantes como a Google (através da plataforma Google Health) venham a realizar um processo de "uberização" e controle de seus mercados. Em março, Trump foi acusado pelo governo alemão de oferecer “grandes quantias de dinheiro” ao laboratório alemão CureVac, em troca da exclusividade dos direitos sobre uma possível vacina contra o coronavírus. O episódio marcou um acirramento dos atritos entre as duas grandes potências, agravados pelo vírus.

Ainda que os EUA de Trump estejam, no imediato, mais preocupados com a crise no mercado do petróleo e, principalmente, com o controle da pandemia e da atividade econômica em seu próprio país - atual centro mundial do vírus - nem por isso deixa de debilitar o concorrente alemão. O capital financeiro a oeste do Atlântico (JPMorgan, Goldman, Bank of America etc.) vêm dando passos atrás em seus investimentos na Europa, recusando-se a conceder novos empréstimos aos seus tradicionais clientes europeus. Entre as principais prejudicadas se encontram gigantes alemãs como a BASF (indústria química alemã que é líder mundial na área), a Adidas, a Daimler-Benz e a Thyssenkrupp. Essa mudança sincronizada de modus operandi dos bancos estadunidenses pode indicar um maior alinhamento destes com a política do “America First” de Trump, convenientemente retirando seu financiamento às empresas europeias e debilitando a capacidade de recuperação destas, em um momento de reduzida atividade produtiva e consumo rastejante.

E as dificuldades econômicas não param por aí. Se com as economias do mundo todo ainda semi-paralisadas e sob a perspectiva sombria de uma depressão, as cruciais exportações estarão comprometidas, o cenário interno também não parece agradável. O país é o primeiro entre os europeus atingidos pelo Covid-19 a reabrir parte considerável do comércio - e nesse sentido também é um dos primeiros experimentos para o conjunto da Europa. As primeiras semanas dessa reabertura, porém, foram um total fracasso, visto que as empresas estão abrindo (e perdendo o direito ao subsídio de crise do governo) apenas para perceberem a queda drástica no número de turistas e de consumidores locais para seus produtos. Por isso, no próximo período, a pretensa recuperação econômica pode dar lugar a uma onda de demissões e falências no varejo, incrementando ainda mais o desemprego. Os dados atuais já indicam que, no geral, 1 em cada 5 empresas no país demitiram funcionários - com setores como restaurantes e hotéis onde metade das empresas realizaram demissões. Além disso, a reabertura obviamente também trás consigo o risco de um novo crescimento das contaminações - o que pode levar inclusive à necessidade de novas quarentenas - um medo compartilhado por epidemiologistas e por Merkel.

Estamos falando de uma economia que mundialmente, diante das quarentenas do coronavírus, vem sofrendo uma crise sem precedentes, possivelmente superando a crise de 1929. Nesse cenário, a Alemanha prevê uma queda de 9,8% no PIB no segundo trimestre do ano, e o FMI prevê uma queda anual de 7% do PIB para o país. Os economistas do Deutsche Bank estimam um aumento para no mínimo 8,5% no desemprego (alto para os padrões europeus), um salto freado parcialmente pela mistura de uma injeção massiva de capital com o mecanismo de precarização do trabalho conhecido como “Kurzarbeit” (trabalho a curto prazo), que permite que empresas com redução da atividade aluguem seus trabalhadores para outros setores com maior demanda - mediante uma redução de 40% nos salários e ⅔ de subsídio estatal. Atualmente, 10,1 milhões de trabalhadores se encontram sob esse regime de trabalho, enquanto mais de 3 milhões se encontram no desemprego (com 300 mil novos desempregados só em abril). O Deutsche, porém, também prevê que, caso ocorram novos surtos do vírus e novos lockdowns sejam aplicados, os 8,5% de desempregados podem subir para 13%. Também estima-se que consequências mais graves da profunda queda no consumo interno possam se apresentar nas próximas semanas, na medida em que as médias e pequenas empresas em crise se apresentam incapazes de “amortecerem” o declínio do mercado de trabalho alemão (o que habitualmente acontecia quando a indústria de exportação sofria uma redução). Ou seja, a redução generalizada no número de postos de trabalho está ultrapassando todos os mecanismos de manobra de que a Alemanha vêm se utilizando há décadas.

Ainda assim, como é lei no capitalismo, o grosso da catástrofe tende a pesar muito mais sobre os de baixo do que os de cima. É em tempos de crise assim que Estados imperialistas, como o alemão, mostram à quem realmente servem. Olaf Scholz, do Ministério das Finanças, garantiu ao capital alemão que disponibilizaria empréstimos “infinitos” para salvá-los da crise, e Altmaier (economia) já falou inclusive de nacionalizar empresas centrais de infraestrutura, para garantir soberania estratégica caso o colapso se estenda. Ambos mostram que a tradicional política de austeridade fiscal alemã é uma determinação flexível quando seus grandes capitalistas nacionais se encontram ameaçados, mas um decreto inalterável quando se trata de política externa, principalmente para os países do sul da UE.

Nos últimos meses, o debate acerca da gestão coletiva da crise na União Europeia gira ao redor das disputas sobre quem pagará por um aclamado fundo de resgate unificado. A previsão para o conjunto do bloco para este ano é de uma inédita queda de 7,4% no PIB, afetando principalmente as economias mais debilitadas e levantando mais uma vez o endividamento público como uma polêmica central dentro do bloco. A tendência observada por Bruxelas é de que as economias mais potentes, como a Alemã, tenham melhores condições de recuperação, enquanto outra parte do bloco convulsiona devido ao estancamento permanente no investimento e no colapso da indústria do turismo. Em um novo relatório sazonal recentemente divulgado pela Comissão Europeia, chamado “Uma profunda e desigual recessão, uma recuperação incerta”, o organismo reflete a profunda crise em que se vê mergulhado o bloco. A comissão urge para uma saída coordenada e proporcional, no medo das atuais “severas distorções no interior do mercado único e nas divergências econômicas, financeiras e sociais entrincheiradas entre os estados membros da zona do euro que podem ao fim ameaçar a estabilidade da união econômica e monetária”.

A alta capacidade financeira dos países mais ricos da UE para salvar suas empresas poderá significar um gigantesca desproporção no interior do bloco, na medida em que os países mais endividados se apresentam incapazes de realizar a mesma proporção de resgate e se tornam ainda mais debilitados competitivamente. Para estes últimos países, a moeda e o mercado unificados da União Europeia podem se tornar pesos ainda maiores para a recuperação e a soberania dos capitais, pressionando por rupturas no bloco. Ao mesmo tempo, a crise leva as potências a procurarem reforçar suas posições nas esferas regional e internacional, assim como a se prepararem para uma concorrência agressiva na disputa pelo acesso aos mercados e às matérias primas. Nesse sentido, os maiores beneficiários da União Europeia não irão desistir facilmente das vantagens que o bloco lhes proporciona - e possíveis rupturas levadas adiante pelo fortalecimento dos nacionalismos podem reconfigurar dramaticamente a geopolítica do continente e do mundo [3].

Tamanha crise contribui para que os governos e as patronais europeias pressionem pelo retorno à atividade econômica - mesmo nos países mais atingidos pelo vírus e onde a crise pandêmica ainda não está resolvida - convocando os trabalhadores que não foram demitidos a retornarem aos locais de trabalho sob o risco de novas contaminações e aproveitando a calamidade para aplicarem novos ataques e mecanismos de precarização do trabalho. Porém, desde as primeiras semanas da pandemia e das medidas de quarentena, por todo o continente os trabalhadores se mobilizam contra a ganância das patronais, a conivência dos governos e em defesa de seus empregos e vidas, dando seguimento à onda de luta de classes iniciada pelos Coletes Amarelos em 2018 e que varreu o mundo em 2019. Tais enfrentamentos através dos métodos de luta da classe trabalhadora abrem uma saída alternativa para a crise, se enfrentando com os planos capitalistas.

Na Itália, os trabalhadores transformaram a raiva em luta contra os empresários que mantiveram as atividades industriais não-essenciais em meio ao ápice do contágio na região, exigindo licenças remuneradas e pelo cumprimento das medidas de segurança e higiene nos locais de trabalho essenciais, passando por cima das direções sindicais que negociavam com as patronais e obrigando-as a convocação da greve geral do 25 de março. Recentemente nesse mesmo país, os trabalhadores da logística FedEx-TNT responderam a demissão de 60 colegas com 3 dias de greve nacional contra a patronal e a “Fase 2” de recuperação econômica, uma ofensiva das patronais e do governo para restaurar o lucro dos capitalista italianos.

Na Espanha, entre as diversas categorias que se mobilizaram nos últimos meses, os trabalhadores da Telepizza ganharam um destaque especial. São os setores mais precarizados da classe trabalhadora, os “perdedores absolutos” da globalização”, os que se mobilizaram em paralisações contra a cumplicidade do governo com as empresas que obrigam seus funcionários a trabalharem sem as mínimas condições de proteção, e avançaram à debater que as empresas de fast-food deveriam ser postas sob controle dos trabalhadores, para passarem a garantir alimentação de qualidade e via delivery para os mais afetados pela crise. Uma tremenda demonstração de combatividade contra os inimigos de classe e de solidariedade com todos aqueles que veem suas vidas arruinadas pelo vírus e pelo capitalismo. Na França, a precarização dos sistemas de saúde e as medidas de restrição impostas pelo Estado fizeram com que o vírus viesse acompanhado da militarização e da repressão estatal nos bairros periféricos, majoritariamente habitados por imigrantes e descendentes de imigrantes, onde muitas famílias viram suas já baixas rendas sumirem. Lá a juventude protagonizou noites de revoltas contra a opressão policial, após um morador do subúrbio de Paris ser gravemente ferido pela polícia.

Na própria Alemanha, que vem buscando mostrar-se como modelo de estabilidade e de combate ao vírus, o sistema de saúde também está marcado pelo subfinanciamento, pela falta de EPIs, trabalhadores e insumos, recebendo 3 bilhões de euros enquanto os empresários já embolsaram 600 bilhões em auxílios do governo. Não só isso, como também o recrudescimento do militarismo e do autoritarismo estatal foi uma das primeiras medidas tomadas no país, em especial no estado da Baviera. Ilustrativamente, logo que foram aplicadas, em março, um dos primeiros reflexos na cidade de Hamburgo foi o desalojamento de um acampamento de refugiados. São ações repressivas disfarçadas de medidas sanitárias, e que ameaçam tornarem-se avanços permanentes no autoritarismo diante de um futuro com claras perspectivas de disputas entre as potências e de novos episódios na luta de classes.

A Alemanha está se preparando para esse futuro com crescente militarização, conferindo mais poderes para a polícia e aumentando o financiamento do Bundeswehr [forças armadas]. Essa direitização do regime, se chocando com as posições - até agora prevalecentes - de multilateralismo que constituem um obstáculo para o imperialismo alemão, vem na esteira do que já é o normal da política de Estado: repressão policial racista, campos de refugiados sistemáticos, perseguição política legalizada, conivência e promoção do terror de direita - onde estão profundamente envolvidas as instituições policiais, militares e de inteligência estatais. Não é por acaso que o partido de extrema-direita AfD e os terroristas de direita encontram seus apoiadores principalmente nos órgãos de segurança. Portanto, o surgimento e fortalecimento de um partido como o AfD não deve ser entendido como uma oposição externa que surgiu do nada, mas como produzido pelas consequências da atuação do próprio regime.

O racismo e a xenofobia são métodos de coerção institucionalizados que mantêm a fragmentação da classe trabalhadora, disseminam a demagogia social capitalista entre os trabalhadores e expulsam os setores desprivilegiados da classe trabalhadora de países imperialistas como a Alemanha. Essa demagogia da direita, de que é do interesse do trabalhador alemão manter certas camadas da classe trabalhadora sem direitos, assim como melhorar a posição do capital alemão no tabuleiro mundial, serve aos interesses de um capital imperialista que busca garantir tanto o controle e exploração no campo doméstico, quanto espaços maiores de lucro no exterior. Nesse sentido, os ataques da extrema-direita não são apenas dirigidos aos imigrantes, mas também contra o multilateralismo da burguesia alemã em matéria de política externa. A ascensão de figuras como Trump e o acirramento das tensões geopolíticas e econômicas mundiais vem levando à necessidade de mais militarismo e autoritarismo, pressão que vai se chocando com a política estabelecida. Por isso a exigência por uma reforma democrática nas instituições alemãs - algo que vem sendo levantado pelas forças políticas que dizem se opor ao ascenso da direita - é o mesmo que exigir que o capital alemão renuncie às suas próprias condições de existência.

Advém daí a incapacidade dos setores liberais e democráticos, assim como dos partidos e das lideranças sindicais tradicionais, em combater o avanço à direita. Se trata de que não rompem com o próprio imperialismo e com a máquina burocrática do Estado alemão, e não de uma questão de incapacidade eleitoral. A cooptação estatal de movimentos sociais, ONGs, organizações sindicais e de trabalhadores por meio de cargos, melhores posições e salários - o que Gramsci chamou de ‘estado ampliado’ - por décadas buscou eliminar do horizonte o uso de métodos operários (como as greves) como ferramentas políticas, assim como prevenir-se de qualquer mecanismo de auto-organização independente, aplicando um ataque direto à subjetividade da classe trabalhadora alemã, à sua capacidade imediata de organização e luta.

Porém, também existe muito potencial para o fortalecimento de um movimento de massas que se confronte com o fascismo, o estado e o capital na Alemanha. Para isso é preciso unir o conjunto das lutas em curso - o movimento ambiental impulsionado pela juventude, os protestos anti-racistas e as lutas nos locais de trabalho - em uma luta unificada e encabeçada pelo movimento de trabalhadores, que, com seus métodos de combate e superando os entraves do institucionalismo e das burocracias sindicais, possui as chaves para canalizar a insatisfação social e retomar o caminho da luta de classes no país.

Essa mesma classe trabalhadora alemã já começou a mostrar sinais de seu descontentamento: na metalúrgica Voith, atualmente 500 operários se colocam em uma heroica greve desde o dia 23 de abril, contra o fechamento da fábrica que registrou um lucro de 100 milhões e recebeu 7 milhões em isenções fiscais no ano passado. Esse primeiro sinal de luta em meio às consequências da crise deve servir de exemplo para o conjunto da classe trabalhadora no país, mostrando o caminho para que os trabalhadores lutem contra as demissões e a precarização. Como colocam os camaradas da Revolutionären Internationalistischen Organisation (RIO), organização irmã do MRT na Alemanha, é preciso levantar uma ampla campanha de solidariedade à greve da Voith, e avançar à exigência de que a empresa seja nacionalizada e mantida sob controle dos funcionários, mantendo os empregos e alterando a produção para garantir o atendimento das necessidades da população e não dos lucros capitalistas. "A gerência pode sair, a fábrica permanece!".

Essas batalhas dos trabalhadores e da população pobre, que se disseminam com um novo ímpeto pela Europa e pelo mundo, mostram que a única divisa que deve ser imposta é a divisa contra o inimigo comum, uma divisa de classe contra os capitalistas e seus Estados. É justamente nesse terreno, o da luta de classes, onde reside a maior força contra os objetivos capitalistas para fazer com que nós paguemos pela crise e contra as tendências nacionalistas e conflituosas entre os diferentes Estados da burguesia, para colocar todo o potencial da ciência e da tecnologia a favor do desenvolvimento humano e das necessidades urgentes das massas da população mundial.

Enquanto os capitalistas do mundo todo buscam impor programas para salvar seus Estados e seus lucros por cima dos corpos da classe trabalhadora e dos oprimidos, é preciso o mais amplo internacionalismo operário, avançando, através dos métodos de luta da classe trabalhadora, para fazer com que os capitalistas paguem pela crise sanitária e econômica. Essa é uma pauta central em um continente tão central como a Europa, onde a classe trabalhadora dos países imperialistas tem a oportunidade não só de se organizar em defesa da própria vida, mas de dar uma batalha central contra os capitalistas donos das multinacionais de seus países e levantar uma verdadeira solidariedade entre os povos, contra o capitalismo que é a principal doença do mundo. Uma luta que, como Marx colocava já no Manifesto Comunista, é nacional em sua forma e internacional em seu conteúdo.

É com essa visão que nós, da Fração Trotskista, nos dedicamos à construção de partidos revolucionários da classe trabalhadora e de diários virtuais classistas em cada país em que estamos - como o Klasse Gegen Klasse na Alemanha - para levantar um programa com independência de classe e para lutar pela reconstrução de um partido internacional da classe trabalhadora, a Quarta Internacional.

[1] Porém, é emblemático o papel que a Alemanha desempenhou, através do Banco Central Europeu e de sua palavra final na União Europeia, em parceria com o FMI estadunidense, ao conceder empréstimos para países como Itália, Grécia ou Portugal e, em contrapartida, exigir a aplicação de pacotes brutais de reformas neoliberais, ajustes fiscais e privatizações pelos governos desses países. As consequências de tais ataques evidenciam-se no colapso dos sistemas de saúde e na ausência de uma infraestrutura básica para supressão da contaminação pelo coronavírus.

[2] Aqui podemos lembrar de Agosto de 2019, quando o imperialismo europeu buscou colocar-se como um “setor ecologicamente consequente” diante das queimadas criminosas na floresta amazônica, promovidos por apoiadores de Bolsonaro. Naquele episódio, Merkel disputava pelos interesses do capital alemão no continente latino-americano pressionando pelas condições do acordo UE-Mercosul.

[3] Como expresso no Ato Internacional da Fração Trotskista do 1º de Maio: “Na Alemanha, o maior imperialismo europeu, as consequências dos efeitos da desaceleração econômica, combinada com a atuação da chanceler Angela Merkel e sua organização União Cristã Democrata da Alemanha à serviço dos banqueiros e empresários e seu racismo estatal, tem fortalecido a extrema-direita auto declarada fascista da AfD (Alternativa para a Alemanha), que obteve um grande triunfo eleitoral no estado da Turíngia, onde obteve 23,4% dos votos do pleito e perdeu o porto por apenas 5 votos".




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