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EDUCAÇÃO E CORONAVÍRUS | A educação e o papel dos professores na época do coronavírus

O debate sobre o isolamento social preventivo massivo percorre o mundo. Com relação à educação, não há muito debate “alternativo”. As políticas públicas oficiais que defendem o isolamento como única medida viável, junto com o medo e a ignorância, tornaram os sistemas educacionais em focos de atenção e foram suspensas, de maneira massiva e abrupta, todas as atividades em quase todos os países do planeta.

Federico PuyDocente, Congresal UTE-CTERA

sábado 28 de março de 2020 | Edição do dia

A UNESCO publicou um relatório no qual afirma que “quase 80% da população infantil mundial não está frequentando a escola devido ao COVID-19”. São 1.370 milhões de estudantes sem assistência das escolas em todo o mundo, de 138 países, como a China, Itália, Espanha, Coreia do Sul, Argentina e Brasil que decidiram fazer o isolamento social preventivo. Em todo o mundo, as sociedades valorizam o trabalho docente online, mas nos perguntamos: qual é o seu alcance? É possível que chegue à todos? Existe uma lacuna social? Ao mesmo tempo, os governos estão calculando o quanto os capitalistas estão perdendo com a suspensão das aulas. Dimensões e contradições da pedagogia em tempos de coronavírus.

Em uma nota no jornal The Economist, eles avaliaram que “os dados sobre se os fechamentos de escolas vão frear o COVID-19 são limitados. As crianças podem não ser as "principais vias de transmissão", diz Michael Head, que estuda saúde global na Universidade de Southampton. E os custos econômicos, sociais e educacionais são pesados. No dia 12 de março, Bill de Blasio, prefeito de Nova York, disse que havia "muitas e muitas razões" para não fechar as 1.800 escolas da cidade (embora ele o tenha feito no dia 16 de março, fechando o maior sistema escolar dos Estados Unidos por pelo menos quatro semanas)”. Na história, é difícil encontrar outros casos como esse.

Outro exemplo é Cuba, onde foram implementadas medidas de higiene nas escolas, como a lavagem das mãos e a limpeza geral do centro, especialmente nas cozinhas e refeitórios, mas que são ações necessárias em qualquer fase. E sobretudo, realizaram testes de febre diários em escolas infantis e primárias, para evitar que as crianças que tivessem os sintomas apresentassem risco para os outros e fossem enviadas para os centros de saúde correspondentes. Até agora, com base nessa política, em Cuba as escolas não pararam, com um esforço conjunto entre saúde e educação. As universidades também continuaram com suas aulas habituais e aderiram aos planos de prevenção e ação.

Mas o avanço do contágio em todo o mundo, em relação à questão educacional, abre questões como quem cuida dos filhos das trabalhadoras e trabalhadores da indústria e dos serviços essenciais, como saúde, serviços e transporte? Com quem as mulheres que trabalham cuidando de outras pessoas podem deixar seus filhos? Entre outras questões. É que afetar o funcionamento das escolas gera uma "desordem" que deve ser planejada e organizada.

Em todas as partes do mundo, as questões são semelhantes e, entre outras definições e funções, as escolas desempenham um papel no “cuidado das crianças” realizado pelas trabalhadoras e trabalhadores da educação, para que as famílias possam ir trabalhar e economizam "essa despesa" para os capitalistas, a favor de seus lucros. O fato de que o custo da suspensão das aulas tenha uma relação direta com o PIB, mostra a necessidade do capitalismo e dos governos de preservar as crianças, de apoiarem o sistema educacional mesmo que minimamente, enquanto suas mães e pais são explorados no seus trabalhos.

Dois lados da mesma moeda

Essa função de "cuidadora" se combina com a realidade de que as escolas públicas estão se tornando cada vez mais campos de treinamento empresarial financiados pelo Estado. Vemos isso em estágios e outras atividades que preparam para “o mundo do trabalho". As escolas públicas também são espaços onde a força de trabalho (do futuro trabalhador) se reproduz social e ideologicamente. Como no caso da saúde pública, o Estado desembolsa na educação alguns recursos para a reprodução social da força de trabalho.

Isso pode ser visto desde os currículos e normas educacionais até os métodos, que se concentram cada vez mais na preparação das crianças para as demandas do mundo do trabalho, e menos em seu desenvolvimento cognitivo integral e suas necessidades imediatas. Nos EUA, por exemplo, os CEOS de tecnologia, como Bill Gates e Mark Zuckerberg, do Facebook, defendem que a programação deve ser ensinada desde muito cedo, embora as escolas particulares de maior prestígio no Vale do Silício não permitam computadores na sala de aula. Além disso, a renomada educação emocional e suas propostas de "treinamento" e amarras sobre sentimentos chamados "negativos" e todo tipo de estratégias adaptativas e de regulação emocional estão muito em voga. Como já expressamos em várias notas no La Izquierda Diario, há uma agenda imposta pelas empresas de acordo com suas necessidades, que é a das chamadas neurociências, que estão atualizando programas e propostas pedagógicas em todo o mundo.

Educação 2.0: uma brecha digital?

Mas, diante da crise aberta com a pandemia, podemos dizer que os programas impostos, as diretrizes e as propostas que estão impondo, de alguma maneira foram deslocados. E, diante da impossibilidade da educação presencial, foram os professores de todo o mundo que rapidamente tomaram uma atitude sobre o assunto, com os mesmos desafios, embora não as mesmas possibilidades. Ao redor de todo o mundo, foram eles que tiveram que criar diferentes maneiras de educar, de forma criativa e solidária.

Devido à crise do coronavírus, a educação argentina, que em seus vários sistemas provinciais e até municipais contém 12,5 milhões de meninos, meninas e jovens e 1,2 milhão de professores, passou de ser presencial para à distância em 4 dias (virtuais ou não, de acordo com os contextos e possibilidades). Uma enorme capacidade de mudar de um sistema para outro, que se fosse realmente para todos e com orçamento e insumos, teria uma força criativa entusiasmante. De outro lado, muitas questões foram escancaradas, como as debilidades materiais do ensino on-line. O limite fundamental é que muitos de nossos alunos não têm a menor possibilidade de acessar um computador ou telefone celular de qualidade e, principalmente, a internet. Enquanto os professores estão nessa corrida frenética para não deixar milhões de estudantes sozinhos, muitas empresas, projetos e fundações que anunciam plataformas educacionais capitalistas vêem uma oportunidade interessante no meio da crise e mostram suas garras. Sem mencionar os aplicativos sugeridos para salas de aula virtuais que são negócios do Google, como HangOut, Google Classroom ou Meet-up, Edmodo.Google, Microsoft, Snappet, BlinkLearning, YouTube, WhatsApp e uma série de outras empresas que estão procurando há algum tempo se apossar de salas de aula e, como em todas as crises, sempre há quem vê uma oportunidade de negócios.

Os recursos online estão se tornando cada vez mais populares em todo o mundo e, com essa pandemia, eles entraram em ação. Mas poucos países têm uma infraestrutura digital desenvolvida para todos os estudantes. Como uma amostra disso, apenas nos Estados Unidos 7 milhões de crianças em idade escolar não possuem acesso à internet em casa. Na Argentina, empresas privatizadas como a Telefônica concordaram em não cortar o serviço por falta de pagamento somente nesta terça-feira, 24 de março, embora tenham diminuído a velocidade e a quantidade de megas. É difícil ter uma aula virtual se às vezes não chega nem mesmo um 3G bem fraco, ou se você não tiver uma impressora básica.

Na Argentina, a educação a distância tem sido utilizada, principalmente no ensino superior. Mas isso não é generalizado. No ensino inicial, primário e secundário, é um anseio poder contar com alguma conectividade. O problema orçamentário é um limite concreto. Na educação argentina, herdada das leis da última ditadura militar, as escolas são geridas pelas províncias [estados] e não pelo estado nacional. Por esse motivo, ao mesmo tempo em que o Ministério da Educação da Nação desenvolveu uma plataforma digital, os governos provinciais estavam definindo como implementariam o ensino a distância em cada distrito. Foram 24 sistemas educacionais que de um dia para o outro tiveram que ser atualizados, apresentando uma desigualdade muito grande entre os distritos, onde, claramente, as possibilidades não são iguais por área. As áreas rurais nem sequer têm conteúdo pedagógico por meio de rádios, que poderiam atingir a população e que o Estado poderia implementar somente com vontade política.

Segundo a revista Jacobin, nos Estados Unidos, os esforços dos professores de Cambridge para garantir que seus alunos mais marginalizados não estejam com fome ou desconectados não são surpreendentes. Os alunos foram enviados para casa com pacotes de trabalhos de casa, livros da biblioteca, instrumentos musicais e um Chromebook do Google para conectar-se virtualmente com os professores durante o recesso inesperado. Mas em Cambridge, como em muitas outras cidades dos EUA, nem todos os estudantes têm acesso à internet em banda larga em casa.

Acesso e qualidade: uma questão de classe

A classe dominante na Argentina, desde as origens da formação do Estado, projetou um sistema educacional de acordo com seus próprios objetivos. A educação nunca esteve alheia aos interesses de classe, apesar de sua aparência de neutralidade e universalidade. Para cada "projeto de país", para cada esquema de acumulação capitalista, havia um projeto específico para "adequar" a educação aos interesses da burguesia nacional e estrangeira. Hoje, responde internacional e nacionalmente às necessidades do capital de precarizar ainda mais a mão de obra, com milhões de jovens entrando para trabalhar no "capitalismo de plataforma", como Rappi, Ifood, Uber Eats, entre outros. outros. E na Argentina e na América Latina isso é aprofundado com a interferência do imperialismo pela mão do FMI, que tem planos de saque na região.

No entanto, um pilar ideológico que a burguesia impôs à estruturação da educação é que ela se baseia em uma suposta igualdade. E aí reside a expectativa e a esperança de milhões. Isso explica a sensação massiva de que "tudo estava bem até a pandemia". Sabemos bem que isso é uma ilusão e que as condições materiais de existência fazem diferença no que diz respeito à trajetória escolar. Longe da resignação, os trabalhadores da educação em todo o país historicamente fazem esforços extenuantes em diversos contextos, mas de explícita miséria e pobreza.

Resta então nos perguntar, no calor da enorme força e reconhecimento demonstrados pelos professores ao redor do mundo, como podemos controlar cada vez mais as informações que as escolas e os ministérios da educação enviam e mantêm? Como pode ser criada uma aliança indissolúvel das famílias trabalhadoras que são parte da comunidade escolar? Os grupos do WhatsApp (ou outras redes de comunicação) com as famílias para a transmissão de informações e consultas sobre suas necessidades funcionam? É possível lutar pela democratização total das instituições de ensino, funcionando por assembleias, com cargos revogáveis, projetos votados de baixo para cima, junto à comunidade? É válido perguntar aos estudantes o que desejam estudar e qual é a melhor maneira?

Considere, por exemplo, como seria se pudéssemos impor aos governos que eles garantissem que nenhuma família ficasse sem Internet e sem comunicação, com a reabilitação de todas as linhas incomunicáveis ou cortadas por falta de pagamento, além do adiamento do vencimento das contas; redes de wi-fi gratuitas ou modem sem fio, onde não há zona wi-fi; equipamento e serviço de telefonia fixa e/ou móvel gratuita garantidos pelas empresas de telecomunicações. Entre outras medidas que podem ser tomadas para começar a pensar em "igualdade".

Trabalhadoras e trabalhadores à frente

A predisposição e a organização dos professores (dentre os quais muitos estão aprendendo como transmitir uma aula online, fazer upload de materiais em uma plataforma digital, enviar arquivos e outros procedimentos) parece ser o que, apesar de tudo, funciona de alguma forma.

A educação pública, que vem de um processo de degradação integral de seus aspectos estruturais, financeiros, pedagógicos e das próprias condições de trabalho e de vida dos professores e estudantes, enfrentou o desafio diante dessa nova crise com uma vasta experiência em garantir que a educação caminhe apesar da realidade material.

Isso torna visível, na Argentina e em todo o mundo, o papel chave de milhões de trabalhadores e trabalhadoras da educação, em seus diferentes níveis, intimamente ligados a todas as comunidades e suas realidades. O conhecimento profundo da realidade em que vivem as famílias da comunidade escolar e seus laços estreitos, mostram um enorme potencial. Isso se soma à extensão territorial, sabendo que existem escolas em cada bairro de todas as cidades, assim como nas periferias e zonas rurais.

As famílias da escola

No Estados Unidos, são ao redor de 26 milhões de de crianças, aproximadamente metade do total de estudantes, que recebem almoços gratuitos ou a preço reduzido nas escolas. O que na Argentina seriam as merendas ou refeitórios escolares. E somente na cidade de Nova York, 22 mil crianças dormem em abrigos municipais. Na Espanha, 12,3 milhões de pessoas tão na linha da pobreza, que corresponde a 26,1% da população. E poderíamos seguir com os exemplos que, numericamente, são mais esmagadores na América Latina. A situação de vulnerabilidade infantil deveria ser uma discussão global. Na Argentina, já se fala que a pobreza pode aumentar entre 3 e 5% ao final dessa crise (ainda imprevisível quanto à sua extensão e profundidade). Isso quer dizer que a situação das crianças das escolas públicas estará pior que antes, quando tiverem que voltar às escolas.

Sabemos que a quarentena não é igual para todos. Por exemplo, o último levantamento de pessoas em situação de rua da Cidade de Buenos Aires foi realizado em 2017. Foi feito pelo Ministério Público da Defesa e pela Defensoria Pública. Foram contadas 7 mil pessoas nessa condição, sendo 4.400 dormindo nas ruas em 1.500 em alojamentos. A maioria não possui emprego fixo nem planos sociais, sobrevive fazendo “bicos”. Os números frios não terminam aí. Mais de um milhão de pessoas possuem “necessidades habitacionais”. Vivem amontoados em vilas, assentamentos ou hotéis precários. Segundo a Defensoria Pública, 70% das famílias que vivem de aluguel da Cidade de Buenos Aires fica abaixo da linha da pobreza após cobrir os gastos com moradia. Somado à isso, deve-se agregar o péssimo serviço de alimentação do governo da Cidade de Buenos Aires, que está sendo questionado, as milhares de vagas que faltam na escola pública, os precários Centros de Primeira Infância, e os outros tantos que ficaram sem seu direito à educação, por não poder arcar com os custos de uma escola particular. E isso se repete em todo o país, com terríveis exemplos como os das crianças wichi de Salta, onde seguem as mortes em meio a pandemia, ou as soluções miseráveis como a de Suárez, em Mendoza, que entregou sacolas de comida que são uma verdadeira falta de respeito com as famílias trabalhadoras e dos bairros populares.

Conteúdo das sacolas de comida distribuídas pelo governo de Mendoza nas escolas.

Por outro lado, o papel das organizações sindicais, de se colocarem à frente dessas batalhas que excedem em muito as demandas salariais ou corporativas, poderia ser uma poderosa alavanca que moveria uma enorme maquinaria de trabalhadores junto às famílias, que cobre quase todo o conjunto. da população. Na Argentina, a CTERA (Confederação de Trabalhadores da Educação) é um dos sindicatos nacionais realmente existente, que organiza centenas de milhares de professores em todo o país. Esses poderosos sindicatos, aliados com as organizações sociais que trabalham nos bairros e nos centros estudantis, poderiam rapidamente reorganizar a sociedade sob outros parâmetros e com medidas de segurança e higiene que hoje, na maioria dos casos, existem apenas pela vontade e ação da classe trabalhadora. Em diversas diretorias e sindicatos de professores, dirigidos pelas oposições antiburocráticas, vem sendo denunciado a falta de comida em quantidade, qualidade e de material de higiene, e as professoras e professores se organizaram para distribuir os materiais enquanto segue exigindo dos governos que alimentem a população. Mas na maioria dos casos, fazem isso apesar das direções sindicais.

Mas falando em educação, isso não é tudo

Os professores têm uma tarefa enorme, que é contribuir para o processo de educação em si e, ao mesmo tempo, para a construção de uma realidade diferente que permita outra educação. O "sucesso" de Cuba, onde a saúde e a educação possuem uma importância decisiva, é produto de uma conquista do processo revolucionário que ainda se mantém, apesar do regime político e para onde o regime está indo. Lá foi necessário uma revolução para expropriar os expropriadores. A partir dessa base, pôde se desenvolver uma revolução em áreas como educação e saúde.

Como socialistas sabemos que um verdadeiro acesso à cultura, à educação, às artes etc, não virão das mãos da burguesia, nem em tempos de relativa estabilidade, e muito menos em uma crise de tamanha dimensão. São as trabalhadoras e trabalhadores da educação, estudantes e as famílias quem, sem descanso, lutam pelo direito à educação gratuita, pública, científica, laica. E isso nós pensamos não somente com relação ao meramente escola, mas como parte de uma vida mais plena.

Por isso temos que nos apropriar dos conteúdos, dos métodos, das formas de transmissão, da própria organização das escolas, dando a batalha diária para que a educação esteja ao alcance de todos. O Estado tem que fazer sua parte, porque falam sobre igualdade de oportunidades e direito à educação, mas sabemos que fica no discurso. É necessário mais financiamento e garantia de acesso real de tudo para todos.

Nós, como trabalhadores da educação, continuaremos tentando diferentes maneiras de fazer as coisas segundo os interesses da maioria e preparando uma verdadeira transformação social. Este ensaio em meio à pandemia, de preparação para uma educação à distância, mas, para todos, também nos proporciona uma rica experiência. Cada experiência em termos pedagógicos, de organização e solidariedade que se desdobra neste momento, é um material vital para (re)pensar as escolas e as trabalhadoras e trabalhadores da educação, em organização comum com a comunidade, na ofensiva para poder idealizar a reorganização da sociedade sob outros valores não capitalistas.




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