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A diversidade (sexual) pode ser revolucionária? Reflexões a 50 anos de Stonewall

Roberto Jara

A diversidade (sexual) pode ser revolucionária? Reflexões a 50 anos de Stonewall

Roberto Jara

Em 28 de junho de 2019 será o 50º aniversário da Revolta de Stonewall, que marca a data do Orgulho LGBTI desde então. O aniversário de uma revolta de rua que durou três dias contra a polícia e seus abusos será realizada em manifestações, mas também em "desfiles", com a presença da polícia, blocos de empresas precarizadoras e atos de políticos de partidos capitalistas. Qual a problemática aqui?

A diversidade sexual (que em 75 países continua ilegal) perdeu seu potencial revolucionário? Tornou-se uma marca, apesar da crescente perseguição com a ascensão da extrema direita? Tentaremos abordar essas questões fazendo uma pergunta à luz da história das lutas da diversidade sexual: Como alcançar uma sociedade sem opressão ou exploração?

A resposta irá surpreendê-lo. Ou talvez não, já que na história do marxismo revolucionário há uma tradição que visa encontrar diferentes formas de unir oprimidos e a classe trabalhadora, a classe que cria e que sob a qual se sustenta o sistema capitalista. Mas o que a exploração assalariada tem a ver com a moralidade sexual dominante?

O sistema capitalista encontra vários benefícios na família patriarcal, onde são reproduzidas as novas gerações de explorados, fazendo parecer como "natural" que as mulheres são aquelas que fazem o trabalho doméstico e reprodutivo. Também é na família patriarcal que as novas gerações "aprendem" o respeito pela autoridade e a existência de hierarquias como uma "ordem natural" que deve ser aceita; uma tarefa que a Igreja, a escola e outras instituições, como o exército, vão continuar.

Mas a família patriarcal não permanece estática por si mesma. Em sua evolução histórica contínua, precisa de uma ideologia que englobe outros aspectos da vida e que não apenas imponha esse modelo de família como "natural". E é aí que entra em jogo a rejeição sistemática da diversidade sexual como parte do patriarcado. O capitalismo fortalece, reproduz e reinventa opressões como o patriarcado e o racismo, ou as implanta através da colonização onde elas não existem.

A maneira em que essas opressões se entrecruzam está sendo alvo de um debate particularmente intenso nas últimas décadas em torno da idéia da interserccionalidade [1], especialmente desde as elaborações das feministas anti-racistas, analisando como se complementam os duplos ou triplos sistemas de opressão, embora ela já tivesse existido ao longo da história do pensamento marxista.

A questão da classe atravessa todas essas opressões. Ana Botín (presidenta do Santander - nota da tradução) tem os mesmos interesses que as mulheres despejadas pelo Banco Santander? Barack Obama tem os mesmos interesses que as classes populares dos países que ele mandou bombardear? Será que têm os mesmos interesses uma jovem lésbica que suporta provocações em um emprego precário, ou as trans rejeitadas no mundo do trabalho entrevista após a entrevista, e os membros da Associação de Gays e Lésbicas (AEGAL) organizados pela World Pride em Madrid? Entendemos que não, e é nesse ponto que surge uma ideia antiga: a luta de classes.

É neste campo de batalha que a articulação de um movimento LGBTI no quadro imposto pelo sistema capitalista conquista cada vez mais direitos (sempre provisórios, deve ser dito), mas adaptados ao sistema. Não só são dados a uma parte relativamente pequena da população mundial, adaptando-se à impotência do direito burguês, mas se tornam um peão para se sacrificarem pelo Estado capitalista "moderno" ante o advento da extrema direita. Em outras palavras, a igualdade (frágil) perante a lei não é igualdade perante a vida.

Neste pontos de conexão Daniel Barnabé, em seu livro “A armadilha da diversidade” coloca que: “a conquista dos direitos LGBT se concebe como uma questão de acesso a bens e respeito que a sociedade é tributada forma meritocrática. Desse modo, a mensagem que está sendo transmitida é de que os problemas que encontram um homossexual não são sistêmicos, mas derivam da atitude do indivíduo. "[2]

Isto é luta de classes, especificamente um cavalo de Tróia de uma classe capitalista que leva 40 anos de restauração neoliberal ensaiando o equilíbrio entre a cooptação e repressão para neutralizar as lutas destinadas contra a exploração da classe operária ou contra o sistema de opressão patriarcal e racistas que são usados para fragmentar e manter sua situação. Porque se as lutas contra as opressões são separadas da luta contra a exploração de classe, o sistema consegue se manter e se reconverter .

Josefina Martínez apontou em um artigo anterior do Contrapunto (edição espanhola do Ideias de Esquerda - nota da tradução): [3] "Desde uma perspectiva emancipatória, busca-se que nenhuma diferença na cor da pele, local de nascimento, sexo biológico ou orientação sexual possa ser a base de uma opressão , uma queixa ou uma desigualdade [...] Mas no caso da diferença de classe, trata-se de eliminá-la como tal, que não exista mais. A classe operária, mediante a luta contra as relações sociais capitalistas, busca a eliminação da propriedade privada dos meios de produção, que envolve a remoção da burguesia como classe e a possibilidade de acabar com todas as sociedades de classes ".

A história da luta pela diversidade sexual tem sido, até certo ponto, também a história da luta de classes, ambas em uma encruzilhada que teve uma longa trajetória histórica. Através desta encruzilhada, queremos nos perguntar algumas coisas sobre a interseccionalidade: quais são as causas das opressões que se atravessam? e, acima de tudo, como nos libertar delas? Vamos voltar 50 anos em atrás ao Stonewall Inn para refletir sobre esta história.

Uma revolução sexual no meio da luta de classes

Em 28 de junho 1969, a policia estava presente no Stonewall Inn, de Nova York, para humilhar e prender aqueles que estavam no bar em um ataque, que foi respondido com uma revolta de rua que durou três noites.

A etapa que começaria depois de Stonewall dentro movimento pela libertação sexual encontra um novo centro de gravidade: a transformação das relações sociais. Na década de 1960, os movimentos de mulheres e a liberação sexual começaram a se desenvolver significativamente, em grande parte do planeta, conquistando reformas importantes, arrancando leis dos parlamentos, banindo preconceitos e ganhando visibilidade e reconhecimento.

Um extenso processo de radicalização atravessou os continentes a partir de meados da década de 1960 até o início da década de 1980. Durante este período, os Estados Unidos foi derrotado na Guerra do Vietnã, milhares de trabalhadores entraram em uma greve geral com estudantes no Maio Francês, a classe trabalhadora chilena foi organizada nos cordões industriais, o povo tcheco enfrenta tanques da burocracia stalinista na Primavera de Praga, trabalhadores e estudantes trouxeram a morte da ditadura na Argentina com o Cordobazo, o povo de Portugal derrubou a ditadura com a Revolução dos Cravos, etc.

Então, como se saiu daquele momento de radicalismo político para conceber a questão da "diversidade" apenas como uma questão de identidade? Por que as bases do sistema capitalista como um todo deixaram de ser questionadas? Para entender os desvios da diversidade sexual a esse respeito, devemos levar em conta, entre outros fatores importantes, qual era a posição das organizações tradicionais de esquerda e dos sindicatos sobre essas questões.

É fato que, com a ascensão do neoliberalismo, as lutas pela diversidade são muito limitadas pelas aspirações de reconhecimento e visibilidade, sem questionar, principalmente, a exploração capitalista. Elementos sociais de grande magnitude entram em jogo aqui, como a ofensiva neoliberal e os ataques às conquistas sociais em todas as áreas, que acompanharam o refluxo da luta de classes.

No entanto, seria errado para explicar a evolução da diversidade apenas como uma "armadilha" sem contextualizar que quando um setor significativo da juventude e da classe trabalhadora tendem posições abertamente anti-capitalistas durante os anos 60 e 70, as organizações trabalhistas grandes, ou seja, partidos social-democratas e comunistas mantiveram posições LGBTIfóbicas em grande parte tradicionalistas, considerando que não era heterossexual como um "desvio" impróprios da classe operária, dando as costas para os movimentos de libertação das mulheres e LGBTI’s que experimentavam um grande ascenso e radicalização em muitos países.

Por exemplo, no caso do Partido Comunista Francês (PCF), seu papel burocrático e conciliatório com a burguesia através da assinatura de acordos de Grenelle após 68 e a desconvocatória de greves vai acrescentar à qualificação da diversidade sexual como "pedófilos" através de seu candidato presidencial, Jacques Duclos em 1971. A República Democrática Alemã continuou a aplicar o parágrafo 175 que permitia a prisão de pessoas LGBTI (também na Alemanha capitalista). E o Castrismo em Cuba respondeu às esperanças de milhares de pessoas LGBTI que apoiaram a revolução, aprisionando-as nos campos da UMAP entre 1965 e 1968 ou sendo expulsas do Partido Comunista em 1971.

Desta forma, a situação da diversidade sexual nos países “socialistas” não era muito diferente daquela dos países capitalistas, onde muitas pessoas sofriam perseguição judicial, policial, social e psiquiátrica. Algo que grande parte da esquerda tradicional não questionou o Estado burguês e patriarcal. Na URSS ele também tinha vivido uma contra-revolução social, isto: grande parte das revolucionárias e revolucionários que viveram a Revolução Russa e a descriminalização da homossexualidade na URSS teve de enfrentar a prisão em 1934 pelo aparato stalinista.

Esta terrível história, juntamente com múltiplos desvios ideológicos, é uma das razões pelas quais estes movimentos pela diversidade sexual começaram um efeito rebote e boa parte se desligaram das organizações que aglutinavam a classe trabalhadora nos partidos comunistas ou nos sindicatos burocratizados. Em geral, e especialmente no contexto do Maio Francês, eles foram divididos em três setores principais: os que permaneceram semi-ocultos nos partidos maoístas e stalinistas; aqueles que romperam com as organizações de trabalhadores e suas estratégias, focalizando seus desvios ideológicos em direção ao autonomismo e ao pós-modernismo; e uma terceira parte minoritária, que tentou combinar as demandas e estratégias revolucionárias da classe trabalhadora, feministas e LGBTI, amplamente promovidas por pequenos grupos de extrema-esquerda trotskistas.

Apesar disso, os anos 70 assistiram ao nascimento das Frentes de Libertação Homossexual (FLH) em toda a Europa e América. Estas organizações militantes são em grande parte descendentes do "Espírito de Stonewall" e eclodem como uma das alas mais revolucionários dos movimentos de libertação sexual, a partir da perspectiva de aliança com o movimento operário e os movimentos anti-racistas, anti-imperialista e emancipação da mulher, lutando pelos direitos das pessoas LGBTI com um discurso que também ataca a sociedade capitalista como culpada dessas diversas opressões.

Um dos pontos mais fortes desses grupos será justamente a tentativa de tecer alianças com a luta anti-racista. E tinha participado em marchas em prisões, para libertar Panteras Negras, um dos seus fundadores, Huey Newton, expressou em um discurso em 1970 que "ninguém está dando qualquer liberdade aos homossexuais . Talvez estejamos unidos, sendo os mais oprimidos desta sociedade. [...] Para além dos preconceitos, um homossexual pode ser um revolucionário. Deveríamos tentar uma coalizão com grupos de libertação gay e libertação das mulheres. "[4]

Este exemplo de alianças acontece enquanto a perseguição policial era brutal e a maioria da população, incluindo uma grande parte da classe trabalhadora, considerava a diversidade sexual como algo a ser condenado e do qual era preciso proteger seus filhos.

Os Panteras Negras contribuíram com ideias e métodos de auto-defesa para o movimento LGBTI e da mesma forma puderam discutir ideias dentro da própria organização sobre se a diversidade sexual e o direito ao aborto eram uma invenção da supremacia branca para diminuir o número de crianças negras. Por outro lado, os setores dos trabalhadores também poderiam refutar os preconceitos sobre a diversidade sexual. E isso foi conseguido no calor da luta e da solidariedade entre os setores oprimidos.

As FLH também iriam criar alianças em disputas trabalhistas, como o apoio aos transportadores de São Francisco em greve em 1971, recebendo o apoio dos trabalhadores da construção civil em Sydney, que pararam a construção da universidade até os alunos LGBTI foram readmitidos em 1978, ou pela secção francesa, a FHAR, que marchou em 1º de maio de 1971 com o slogan "Abaixo a ditadura da normalidade". Este foi o seu argumento:

"Para nós, a luta de classes também atravessa nossos corpos. Isto significa que a nossa rejeição da ditadura burguesa também é para libertar o corpo da prisão que tem sido sistematicamente fechado por 2 mil anos de repressão sexual, trabalho alienado, opressão econômica. Portanto, não há possibilidade de separar nossa luta pela liberdade sexual, a luta pela libertação do desejo, de nossa luta anticapitalista para uma sociedade sem classes, sem senhores ou escravos "[5]

Um dos maiores episódios desta solidariedade é a criação do Lesbians and Gays Support the Miners em apoio à greve dos mineiros na Grã-Bretanha em 1984-1985, fazendo levantar mais de 20 mil libras para entregar para o fundo de resistência da greve, porque o governo de Thatcher havia confiscado as contas bancárias da União Nacional dos Mineiros (NUM). Em 1988, os mineiros estavam entre os principais aliados da comunidade LGBTI durante a campanha contra a Emenda 28, que proibia "promover intencionalmente a homossexualidade e publicar material com a intenção de promover a homossexualidade" participando das Marchas do Orgulho LGBT nos anos posteriores e forçando o apoio do Partido Trabalhista à campanha graças à pressão da União Nacional dos Mineiros.

Nos últimos 35 anos podem ser observadas mudanças de direção nas lutas de diversidade sexual, retrocedendo da ofensiva por transformar radicalmente o mundo com a resistência ante a agenda neoliberal, a aparição do HIV e a restauração conservadora dos anos 1980. No entanto, a tradição de transformação radical da sociedade não termina aqui. Na segunda parte deste artigo, abordaremos essas mudanças, alcançando as perspectivas atuais.

Artigo publicado originalmente em https://www.izquierdadiario.es/La-diversidad-sexual-es-revolucionaria-Reflexiones-a-50-anos-de-Stonewall 
TRADUÇÃO: Matheus Correia

[1] Martínez, Josefina; Feminismo, interseccionalidad y marxismo: debates sobre género, raza y clase , Contrapunto nº1, febrero 2019 en https://www.izquierdadiario.es/Feminismo-interseccionalidad-y-marxismo-debates-sobre-genero-raza-y-clase-124548

[2] Bernabé D., (2018) La trampa de la diversidad: cómo el neoliberalismo fragmentó la identidad de la clase trabajadora, Madrid, Akal, p.133

[3] Martínez, Josefina; Feminismo, interseccionalidad y marxismo: debates sobre género, raza y clase , Contrapunto nº1, febrero 2019 en https://www.izquierdadiario.es/Feminismo-interseccionalidad-y-marxismo-debates-sobre-genero-raza-y-clase-124548

[4] Newton, H. (1970) The women’s liberation and gay liberation movements, Nueva York, www.blackpast.org/speeches, traducción del autor

[5] 4FHAR, (1971) Rapport contre la normalité, París, Champ libre, traducción del autor.


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