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A crise nacional argentina e a declaração de uma Assembleia Constituinte

Essa é uma discussão que se relaciona com os debates atuais da esquerda frente à crise. Com os pactos feitos pelas costas do povo trabalhador para garantir o roubo e o lugar da consigna de Constituinte na luta por um governo dos trabalhadores.

Matías MaielloBuenos Aires

quinta-feira 13 de setembro de 2018 | Edição do dia

Macri e o FMI respondem à crise afundando o país na recessão, aumentando a desocupação e a pobreza, atacando a educação, a saúde, as aposentadorias. O roubo está em pleno desenvolvimento. Todos os partidos dos regimes, servidores dos capitalistas e do FMI, estão negociando pelas costas do povo trabalhador um pacto de ajuste, miséria e desemprego para financiar a fuga de divisas, o pagamento da dívida pública fraudulenta e os lucros de todos os que estão roubando o país. Macri e todos os governadores, do PRO, radicais, do PJ, incluindo Alicia Kirchner, junto com os Pichetto e os Massa, protagonizaram uma verdadeira conspiração contra as grandes maiorias pelo orçamento de 2019.

Se antecipa neste semestre uma das piores quedas históricas do consumo popular em alimentos, bebidas, etc., com um dólar equivalente à 40 pesos (cerca de R$4,30) e uma inflação que está desvalorizando brutalmente os salários. Enquanto isso os burgueses se desesperam frente a ideia de um aumento de menos de 1% do imposto que tributa a riqueza (bens pessoais) no exterior. Não têm vergonha. Como mínimo teria que se impor um imposto às grandes fortunas que esta minoria acumulou com a exploração alheia, a evasão e a especulação, não só aos 120 bilhões de dólares que era dinheiro sujo, mas também ao conjunto dos 400 bilhões que desapareceram, boa parte dos quais estão nos paraísos fiscais. Mas não passa pela cabeça de nenhum dos partidos do regime uma coisa dessas, são agentes pagos (e muito bem pagos, com salários milionários) pelos capitalistas, estão comprados, têm dono, por isso as contas que fazem são para tirar o prato de comida da mesa dos trabalhadores.

Os burocratas sindicais têm o mesmo patrão, por isso a CGT e Moyano vêm dando trégua escandalosa ao governo, querendo fazer paralisações somente aos domingos. São os que sustentam a bandeja para Macri e para os governadores enquanto estes planificam o roubo. Os kirchneristas se entretêm fuxicando contra Macri na TV, enquanto nos sindicatos entregam os direitos dos trabalhadores, garantem a paz social ao governo, ou entregam por migalhas a enorme luta universitária, traindo os milhares de docentes e estudantes mobilizados.

Temos que dizer-lhes basta. Como fizemos nos dias 14 e 18 de dezembro do ano passado contra a reforma da previdência. Mas para derrotar efetivamente este pacto contra o povo trabalhador, temos que ser muitos mais, necessitamos uma paralisação nacional ativa de 36 horas e um plano de luta que culmine em uma greve geral, em que ocupemos a Praça de Maio com milhões, além das principais praças do país.

O movimento de massas na Argentina já mostrou que é capaz de tirar governos ladrões, como fez com De la Rua. Mas não pode voltar a ocorrer o que aconteceu em 2001, quando, ainda que se tenha derrubado o governo com a mobilização popular, os partidos do regime manobraram para terminar impondo a Duhalde que trouxe outro novo saque com a megadesvalorização do salário e os assassinatos de Kosteki e Santillán. Por isso é fundamental que a Frente de Esquerda (FIT), com toda a sua militância, com seus deputados, legisladores, conselheiros, referentes do movimento operário, estudantil e figuras públicas em todo o país, desenvolva uma enorme agitação para impor uma Assembleia Constituinte livre e soberana para que esta seja tomada desde já pelos setores cada vez mais amplos de massas.

Uma Assembleia Constituinte contra o roubo e os pactos feitos “por cima”

A Frente de Esquerda (FIT) declara que a crise deve ser paga pelos capitalistas, que é necessário impor o não pagamento da dívida pública, a nacionalização dos bancos, o monopólio do comércio exterior, entre outras medidas que sejam parte de um plano de conjunto para frear o saque e reorganizar a economia a favor dos interesses das grandes maiorias, e, para isso, conquistar um governo dos trabalhadores e do povo, imposto pela mobilização dos explorados e oprimidos.

Neste marco, na FIT está se desenvolvendo um debate sobre a necessidade de agitar a consigna de Assembleia Constituinte, como parte deste programa para derrotar o governo saqueador de Macri e este regime político podre. Por que desde o PTS (organização irmã do MRT do Brasil) propomos aos demais partidos da FIT que levantem a Constituinte? No que consiste nossa declaração?

Somos socialistas. Temos o objetivo de expropriar os capitalistas e lutamos por uma democracia muito superior a mais democrática das repúblicas burguesas, por uma república organizada através de Conselhos de delegados, eleitos por unidade de produção (empresa, fábrica, escola, etc.) para que os trabalhadores governem no sentido mais amplo do termo: definindo o rumo político da sociedade assim como a planificação racional dos recursos econômicos sobre a base da propriedade estatal dos meios de produção.

Mas sabemos que a grande maioria dos trabalhadores e do povo não compartilha desta perspectiva hoje, ainda confiam nos mecanismos da democracia representativa e cidadã. O povo trabalhador, que com suas famílias supera os 30 milhões, vê na democracia representativa a possibilidade, ao menos aparente, de se impor. A enorme maioria da população, frente aos ricos que são uma ínfima minoria, confia no peso de seu número para resolver seus problemas. Esta ideia está sendo manipulada pelos partidos “opositores” do regime que sustentam que a solução vai vir das eleições de 2019, enquanto hoje compactuam com o ajuste do governo feito pelas costas das grandes maiorias.

Por isso, frente ao roubo histórico em curso estamos contra os pactos feitos pelas costas do povo que Macri, os governadores, senadores e deputados dos partidos do regime estão preparando. Propomos então ao movimento operário, estudantil, de mulheres, aos sindicatos e organizações do movimento de massas lutar por impor a instituição mais democrática concebível dentro da democracia representativa: uma Assembleia Constituinte.

Mas nós não nos referimos a uma farsa de Constituinte arranjada como a do Pacto de Olivos, de 1994, em que se impôs o chamado “núcleo de coincidências básicas” que estabelecia de antemão que só podiam ser discutidos detalhes formais do funcionamento do regime, mas excluindo terminantemente qualquer reforma nos aspectos centrais que pudesse afetar à grande propriedade capitalista em benefício das grandes maiorias. Claro que as pequenas propriedades são confiscadas quando lhes convêm, como fizeram com os pequenos acionistas no ano de 2001, mas os grandes capitalistas são intocáveis por princípio divino.

Nós declaramos uma Assembleia Constituinte livre e soberana, que seja capaz de expressar verdadeiramente a vontade popular, que esteja conformada por um deputado a cada 20 mil habitantes, que seus membros não formem uma casta privilegiada como as que povoam o Congresso atual, e sim que todos aqueles deputados sejam revogáveis e ganhem o mesmo que um professor. Uma Constituinte que tenha plenos poderes para abordar todos os grandes problemas nacionais sem restrições, que não esteja limitada por nenhum suposto “contrapeso” e nenhuma das instituições do atual regime tenha o direito de suspender ou vetar as medidas que esta vote.

Um desafio contra o regime burguês

Os partidos do regime, que se inflam falando de democracia, têm medo de uma Constituinte assim. Todos eles, desde o Cambiemos, obviamente, até a Frente para a Vitória. Temem perder o controle e que contra o saque em curso possam resolver democraticamente medidas que afetem o coração dos interesses capitalistas. Só se sentem seguros com os mecanismos da democracia representativa que eles mesmos dizem defender, enquanto contam com toda uma série de instituições ideadas para separar as massas do governo real.

Necessitam contar com um Senado oligárquico para frear leis votadas por Deputados, como a da legalização do aborto, onde 38 senadores de todos os principais blocos adotaram o direito de condenar centenas de mulheres à morte por ano em abortos clandestinos, mostrando ao mesmo tempo o caráter clerical que todos os partidos burgueses carregam. Mas inclusive quando o Congresso de conjunto leva para que se vote algo minimamente a favor dos trabalhadores, que opinam que pode afetar os capitalistas, necessitam ter um Presidente com poderes quase monárquicos que possa vetar essas leis. Como Macri em 2016 com a “lei antidemissão” (que condicionava minimamente), ou em maio deste ano com a ínfima limitação aos tarifaços, ou Cristina Kirchner com a lei sobre geleiras em 2008, ou os 82% para os aposentados (que nem sequer era tal) em 2010. E se tudo isto falha, sabem que como última opção têm à casta judiciária – eleita a dedo pelo presidente e pelos senadores, com salários siderais e que não paga nem impostos – que tem o poder de dizer se tal ou qual lei é inconstitucional para deixa-la sem efeito.

Só com esta tutoria se sentem minimamente seguros. Sabem que uma Constituinte que expressa as grandes maiorias operárias e populares sem limitações nem “contrapesos” não permitiria que 4 mil latifundiários tenham em mãos mais da metade das terras cultiváveis enquanto cresce a pobreza e a fome entre o povo trabalhador. Ou que os especuladores em alguns meses desapareçam com mais de 20 bilhões de dólares, o equivalente a 6 orçamentos de todas as universidades federais argentinas, enquanto se afunda a educação pública. Ou que ajuste e submerja o país na recessão para garantir o pagamento da dívida pública fraudulenta, que desde 1982 já soma pagamentos de mais de 500 bilhões de dólares. Ou que o manejo do comércio exterior esteja nas mãos de um punhado de grandes cerealistas e monopólios imperialistas que saqueiam o país enquanto os salários se afundam pela inflação. Sabem que medidas radicais como a expropriação dos latifundiários ou o não pagamento da dívida pública teriam grande popularidade em uma Constituinte que não esteja tutelada pelas instituições dos capitalistas.

Nós revolucionários estamos convencidos de que quanto mais democrática seja uma Constituinte, como a que propomos, mais influência terá nossa declaração de que a crise deve ser paga pelos capitalistas e de atacar os fundamentos estruturais do ajuste.

O poder da classe para enfrentar a resistência dos capitalistas

Em uma de suas cartas à FIT, o Partido Obrero critica que o PTS “rechaçou nossa declaração de uma Constituinte com poder (...), eles esvaziam a consigna de sua faceta revolucionária que pode atrair a atenção das massas, que radica no fato de seu poder para dar satisfação aos reclamos populares e tomar medidas de emergência para que a ‘crise seja paga pelos capitalistas’”.

Quando dizemos que a Constituinte livre e soberana tem “poder” nos referimos assim para que não haja nenhuma instituição do regime burguês que possa limitá-la, revisar ou vetar suas decisões, que possa ter plena liberdade para abordar todos os grandes problemas nacionais, os reclamos populares e medidas de emergência, para que a crise seja paga pelos capitalistas e resolver de forma soberana, então estamos de acordo. Neste sentido, a Constituinte livre e soberana se propõe substituir não só o governo, mas também todas as instituições do regime. Outra coisa muito diferente é dizer que uma Constituinte teria o poder “para dar satisfação” por si mesma a todas essas questões, o qual implicaria necessariamente vencer a resistência dos capitalistas.

Quanto mais uma Constituinte livre e soberana avança em tomar medidas radicais, maior será a resistência. A Assembleia Constituinte, como dizia Trotsky, é “a forma mais democrática da representação parlamentária”, mas o Estado capitalista está baseado em um exército, em forças repressivas que têm um caráter de classe, burguês, e que ninguém deve esperar que aceitem pacificamente nenhuma decisão que vá verdadeiramente contra os capitalistas, pelo simples fato de que a burguesia e o imperialismo também não irão aceitar.

Podemos nos recordar do golpe militar de 1976 para isso ficar claro. Se no ano de 2008 a burguesia agrária, simplesmente diante da ameaça da subida das retenções estava disposta a “incendiar” o país, não é necessária muita imaginação para pensar qual seria sua resposta se se avançasse em uma medida radical como a expropriação dos 4 mil principais latifundiários, que é indispensável se queremos que a crise seja paga pelos capitalistas. Que não fique sombra de dúvidas de que irão se armar, com todas as forças militares, policiais e paraestatais que possam mobilizar contra a Constituinte ou qualquer organismo que tome uma medida como essa.

A questão é que o conjunto de medidas para que a crise seja paga pelos capitalistas têm um conteúdo radical. O saque não se freia com subsídios ao transporte e à energia, com um pouco mais de retenções ao agronegócio ou com uma renegociação da dívida pública, e sim com medidas que liquidem os fundamentos estruturais do ajuste (a subordinação ao imperialismo e a dívida pública, a propriedade latifundiária, a apropriação privada dos grandes acionistas nacionais, a condução do comércio exterior por um punhado de grandes conglomerados capitalistas, etc.).

No entanto, quanto mais forte seja a resistência dos capitalistas às resoluções democráticas de uma Constituinte, também mais ficará exposta diante das massas a mesquinharia da democracia representativa que os capitalistas estão dispostos a aceitar; e maiores serão os setores do movimento de massas que vão chegar à conclusão de que é necessário construir um verdadeiro poder próprio do povo trabalhador e um partido revolucionário com influência de massas que possa dirigir esse processo.

O desenvolvimento da experiência do movimento de massas

Neste sentido, a declaração de uma Assembleia Constituinte cumpre uma enorme função pedagógica para organizar as massas ao redor de uma saída anti-imperialista, anticapitalista e verdadeiramente democrática, assim como para fortalecer um partido revolucionário que as impulsione em direção à luta. Trata-se de uma questão chave porque, como apontava Lassalle em seu clássico folheto “O que é uma Constituição?”, “o instrumento de poder político do rei [hoje o Poder Executivo], o Exército, está organizado, pode se reunir a qualquer hora do dia ou da noite, funciona com uma magnífica disciplina e pode ser utilizado no momento em que se deseje, em contrapartida, o poder que descansa na nação, senhores, ainda que seja, como de fato é na realidade, infinitamente maior, não está organizado”.

A grande potencialidade de uma Constituinte livre e soberana consiste, por um lado na possibilidade de agitar e convencer, de forma infinitamente mais ampla do que no parlamento “normal”, os setores das grandes massas da necessidade de impor as medidas radicais necessárias para frear o saque e o roubo.

Por outro lado, no fato de que na própria luta por impor essas medidas frente à resistência legal (Forças Armadas e de Segurança) e paralegal (grupos fascistas, etc.) da ordem burguesa, setores cada vez mais amplos do povo trabalhador façam sua experiência com a democracia representativa até o final e vejam a necessidade de se organizar desde as empresas, fábricas, transporte, escolas, faculdades, etc., para desenvolver seus próprios organismos democráticos de poder – os Conselhos surgem justamente dessa forma – e suas próprias organizações de autodefesa.

Uma estratégia de ação, não de especulação

Como parte destes debates sobre Assembleia Constituinte, o Partido Obrero na Argentina, integrante da FIT, declara em uma de suas respostas que “para que esta seja realmente uma consigna de poder, deve ser precedida da consigna ‘fora Macri e todo o regime corrupto de kirchneristas, pejotistas e macristas’”. Esta declaração teria uma intenção polêmica com o PTS, apesar de que em nossa carta original sustentamos que “nossa declaração não só parte de terminar com este governo de fome e entreguista, mas também com o regime político e social que é sua base”. Entendemos que a diferença neste ponto, deixando de lado o aspecto formal do assunto e a questão tática sobre o momento adequado de declarar a queda de Macri e de todo o regime pela via da mobilização, está em se a Constituinte “deve ser precedida” ou não por tal afirmação.

Trotsky aborda esta mesma questão em seus escritos sobre a China desde um enfoque muito diferente do PO. Ali sustenta: “Se na hora de sua derrota o governo de Kuomintang [partido nacionalista chinês que estava então liderando o governo militar] trata de convocar algum tipo de assembleia representativa, qual será a nossa atitude? Ou seja, como aproveitaremos da melhor forma possível a situação a favor da revolução, boicotando as eleições ou participando delas? As massas revolucionárias conseguirão formar um organismo governamental independente que convoque uma assembleia constituinte? O proletariado conseguirá criar sovietes no curso da luta pelas consignas democráticas? A existência de sovietes tornará supérflua a convocatória de uma assembleia constituinte? Não é possível responder estas perguntar de antemão. Mas a nossa tarefa não consiste em fazer previsões olhando o calendário, e sim em mobilizar os operários ao redor das consignas que surgem da situação política. Nossa estratégia é de ação revolucionária, não de especulação abstrata”.

Esta aproximação de Trotsky tem pouco a ver com o que propõe o PO. Para o revolucionário russo a questão passa pelas possibilidades que uma Assembleia Constituinte declara desde o ponto de vista da ação revolucionária. No entanto, na declaração do PO, quem vai destituir Macri e todo o regime político previamente à convocatória de uma Constituinte nos dias de hoje? Vista a segurança e o caráter terminante de sua declaração, o PO deveria poder responder sem problemas esta pergunta. Mas a verdade é que não tem uma resposta, porque de fato ainda não existe na realidade. O que demonstra isso é que a forma que o PO quer a consigna de Constituinte não é mais do que propagandística e eleitoralista, já que não propõe como um desafio real e concreto frente ao regime burguês hoje.

Para nós, pelo contrário, nisto consiste justamente o papel urgente da declaração de Constituinte. Enquanto sustentamos a necessidade de uma paralisação nacional ativa de 36 horas e um plano de luta que culmine numa greve geral até derrotar Macri, o FMI e todos seus cúmplices, declaramos também a importância de se agitar o mais amplamente possível e por todos os meios disponíveis a consigna de Assembleia Constituinte como desafio ao regime e a todos os que inoculam o veneno de que as lutas atuais só devem se propor a objetivos parciais, defensivos, enquanto que a solução de fundo será optar entre uma ou outra variante capitalista nas eleições presidenciais de 2019.

Desafiamos a todos os que se dizem democratas a aceitar este mecanismo da própria democracia representativa para que se expresse a vontade popular, fazendo uma Constituinte livre e soberana com um deputado a cada 20 mil habitantes, que sejam revogáveis a qualquer momento e que ganhem como uma professora. Aqui se encontra a chave da discussão e a encruzilhada que esta se mostra para a Frente de Esquerda e para o desenvolvimento da luta em derrotar o governo de Macri, o regime burguês e frear o roubo capitalista em curso.




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