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SEMANÁRIO

A centralidade da luta negra na teoria revolucionária de Marx

Odete Assis

Renato Shakur

A centralidade da luta negra na teoria revolucionária de Marx

Odete Assis

Renato Shakur

Como parte de celebrar os 206 do nascimento de Karl Marx, retomamos alguns apontamentos sobre como a luta negra contra a escravidão no século XIX teve um papel central no desenvolvimento da sua teoria revolucionária.

“Do meu ponto de vista, o que há de mais grandioso acontecendo no mundo neste momento, é o movimento dos escravos – por um lado, na América, iniciado com a morte de Brown; por outro lado, na Rússia. (...) o movimento “social” eclodiu a oeste e a leste. Isso, somado à crise que se aproxima na Europa Central, será grandioso” [1].

Esse era o papel que Marx atribuiu à luta negra: o de estar no centro da luta de classes mundial. Seus detratores tentam deturpar seu legado, como se ele não desse importância às questões raciais ou à luta anticolonial. Mas esse grande revolucionário tem na base do seu pensamento a visão de que a luta de classes é o motor da história, e para o marxismo, a luta negra é parte central da luta de classes. Uma ideia muito distante da caricatura que a burguesia tenta vender, se apoiando na associação entre o marxismo e a degeneração stalinista, para tentar reduzir essa teoria revolucionária a uma perspectiva de que o enfrentamento entre as classes diz respeito somente ao embate salarial e econômico. Contudo, na realidade, se trata de pensar as bases revolucionárias para alcançar a emancipação total da humanidade de todas as correntes da exploração e opressão.

Alguns escritos em que Marx desenvolve mais profundamente as discussões sobre raça, classe, escravidão e capitalismo, em geral, são pouco estudados e difundidos. No entanto, constituem um pilar essencial para a compreensão da sua teoria revolucionária. Nesse artigo apresentamos algumas questões fundamentais sobre esses temas, retomando elaborações de Marx a partir de dois aspectos centrais: a compreensão da escravidão negra como um produto histórico cuja origem está diretamente associada ao desenvolvimento do sistema capitalista; e como esse grande revolucionário acompanhou de forma entusiasmada o potencial despertado pela luta contra a escravidão durante a Guerra Civil nos Estados Unidos, defendendo que o triunfo dessa luta seria um ponto de inflexão na luta de classes internacional, ao mesmo tempo que considerava o posicionamento em defesa da liberdade dos negros escravizados uma questão estratégica para a classe trabalhadora.

Capitalismo, escravidão e racismo

A concepção materialista da história desenvolvida por Marx e Engels é a base central que nos permite compreender o racismo como um produto histórico de determinadas relações sociais. E dessa forma, nos permite também questionar a ideia difundida pela ideologia burguesa até os dias atuais, de que o racismo seria produto de uma essência humana, de uma oposição dualista entre negros e brancos. O que levaria consequentemente a conclusão de que o racismo não poderia um dia deixar de existir. A compreensão de que as relações raciais são produto do desenvolvimento histórico é a base, sob a qual nos apoiamos, para lutar por uma sociedade em que o racismo possa ser somente uma página nefasta dos livros de uma história, algo que nunca mais vai se repetir.

Essa questão, por si só, já seria uma grande contribuição de Marx para a luta antirracista, mas sua teoria vai além. Em 1846, em carta escrita para Pável V. Annenkov, o autor debate como a escravidão era um pilar do sistema capitalista. Utilizando-se das ferramentas do materialismo histórico e da dialética, Marx combate as concepções de Proudhon, demonstrando como ele desconsidera que as categorias econômicas são apenas abstrações das relações reais e termina por cometer o mesmo erro dos economistas burgueses. Ou seja, Proudhon transformava as leis econômicas em leis eternas, deixando de lado o fato de que elas são produto de determinadas relações históricas. E a escravidão era sobretudo uma categoria economica para os capitalistas.

Para exemplificar o problema desse tipo de raciocínio ele usa justamente o debate em relação a escravidão e a liberdade. Deixando claro que iria debater a escravidão direta, aquela que existia com os negros Suriname, no Brasil, nas regiões meridionais da América do Norte. Marx aponta como, desde o ponto de vista do desenvolvimento do sistema capitalista, a escravidão é um eixo do industrialismo do seu tempo. Aborda o papel dela para a produção do algodão e como isso está na base da indústria moderna, sua relação com o comércio mundial e com as colônias. Toda essa argumentação está em função de criticar perspectivas como a de Proudhon, que analisam essas relações para buscar um equilíbrio impossível de ser alcançado entre a liberdade e a escravidão.

Posteriormente, no capítulo XXIV d’O Capital, Marx desenvolve de forma mais enfática como a escravidão estava na “gênesis” do desenvolvimento do capitalismo industrial, afirmando que:

A descoberta de terras auríferas e argentiníferas na América, o extermínio, a escravização e o soterramento da população nativa nas minas, o começo da conquista e do saqueio nas Índias Orientais, a transformação da África numa reserva para caça comercial de peles-negras caracterizam a aurora da era da produção capitalista. (...) Tais métodos, como, por exemplo, o sistema colonial, baseiam-se, em parte, na violência mais brutal. Todos eles, porém, lançaram mão do poder do Estado, da violência concentrada e organizada da sociedade, para impulsionar artificialmente o processo de transformação do modo de produção feudal capitalista e abreviar a transição de um para o outro. A violência é a parteira de toda sociedade velha que está prenhe de uma sociedade nova. Ela mesma é uma potência econômica [2].

No século XX, se apoiando nessas premissas apontadas por Marx, diversos autores marxistas aprofundaram as particularidades das relações entre capitalismo, escravidão e racismo. Eric Willians, em Capitalismo e Escravidão abordou como o tráfico de escravos era um grande comércio que propiciou a acumulação de capital e deu o impulso para o desenvolvimento das principais cidades industriais na Inglaterra. CRL James, em “A revolução e o negro”, debateu a relação entre a luta negra e distintos processos revolucionários que aconteceram com o desenvolvimento do sistema capitalista. Baseando-se em importantes estudos históricos George Breitman, em “Quando surgiu o preconceito contra o negro?”, demonstrou como o racismo foi produto da necessidade de justificar a escravidão negra, que era um lucrativo negócio capitalista, desenvolvendo sobre a necessidade do capitalismo manter o racismo depois da abolição. O racismo é um pilar da formação desse modo de produção, baseado na exploração, por isso ele afirmava que “poucas coisas no mundo são tão marcadas pelas características do capitalismo como o racismo”.

Marx e Engels puderam chegar a essa conclusão histórica demonstrando a relação intrínseca entre racismo e capitalismo, não só com objetivo de compreender as necessidades históricas da burguesia que emergia do feudalismo enquanto uma classe dirigente economicamente, mas também com o objetivo de deixar as bases fundamentais para o combate do proletariado internacional contra o racismo. O reconhecimento do racismo como uma ideologia própria de uma classe e de uma época foi chave para colocar a luta contra a escravidão como algo central da Associação Internacional do Trabalho (AIT) – como veremo a seguir – e para armar os combates futuros do proletariado. A III Internacional Comunista dentre várias coisas defendia em suas Tese sobre a Questão Negra de 1922 a igualdade salarial e de direitos sociais entre negros e brancos, a incorporação dos negros aos sindicatos e que a luta do proletariado e dos negros fosse contra o capitalismo e o imperialismo. Ou seja, a definição histórica do racismo como uma forma de opressão que surge com o capitalismo, definiu ao menos três elementos fundamentais da luta negra para o marxismo: 1) a luta negra é internacional e anti-imperialista; 2) a luta negra é uma luta por emancipação e igualdade política, social e econômica; 3) os sindicatos devem tomar a luta negra como parte da luta dos trabalhadores.

A guerra civil nos Estados Unidos: a luta negra no centro da luta de classes

As contribuições teóricas de Marx, que embasam a intrínseca relação entre racismo e capitalismo, vieram acompanhadas, também, de uma profunda análise do papel dos negros em uma luta central no século XIX: o combate a escravidão. Como aponta Kevin Anderson, durante os anos de 1860, Marx trabalhou como correspondente de diversos jornais para manter seu sustento, e parte importante dos seus escritos diziam respeito à Guerra Civil nos Estados Unidos. Anderson afirma que:

Na visão de Marx, a Guerra Civil dos Estados Unidos, que durou de 1861 a 1865, constituiu uma das principais batalhas pela emancipação humana do século, uma batalha que forçou os trabalhadores brancos, tanto nos Estados Unidos como na Inglaterra, a se posicionarem contra a escravidão [3].

No artigo “A questão americana na Inglaterra”, publicado em 1861, Marx combate a visão difundida pelos jornais burgueses ingleses e busca apresentar um ponto de vista claramente diferente da visão da classe dominante em relação ao conflito nos EUA. Afirmando que a guerra começou pela ofensiva do Sul, e que os estados do Norte passaram a se defender “não para acabar com a escravidão, mas para salvar a União”, e argumenta que:

O crescente abuso da União pelo poder escravagista, por intermédio de sua aliança com o Partido Democrata do Norte, é, por assim dizer, a fórmula geral da história dos Estados Unidos desde o começo deste século. As sucessivas medidas de compromisso marcam os sucessivos graus da usurpação que fizeram com que a União se transformasse cada vez mais em uma escrava dos proprietários de escravos [4].

Em distintos artigos, Marx demonstrou como seu acompanhamento entusiasmado dos acontecimentos nos EUA estava sempre permeado pela perspectiva de que a luta contra a escravidão poderia ser um grande impulso a luta de classes internacional. Sua análise sobre a divisão dos estados escravagistas do sul, as disputas pelos estados fronteiriços, e a convivência do trabalho livre e escravo nos estados do Norte estava diretamente relacionada a pensar os interesses de classe em jogo. O papel de cada setor da classe dominante em disputa, e como defender com independência política os interesses dos trabalhadores, livres e escravizados. A luz dessa perspectiva, Marx define: “Portanto, a guerra da Confederação sulista não é uma guerra defensiva, mas, sim, uma guerra de conquista para expandir e perpetuar a escravidão” [5].

Marx combateu ferrenhamente os jornais burgueses ingleses, que apoiavam os escravagistas e buscou se ligar aos abolicionistas radicais. Ele combatia também os setores de que dentro do próprio movimento socialista não viam a importancia de lutar contra a escravidão. Sua posição quanto a esse tema era firme: a abolição da escravidão era uma demanda que deveria ser tomada pela conjunto da classe trabalhadora. Em um outro artigo, Marx analisa como tradicionalmente a classe trabalhadora inglesa era alheia a política internacional de seu país, mas que devido ao papel da indústria na sociedade britânica, para que a burguesia inglesa pudesse levar adiante determinada posição era importante ter o aval da sua classe trabalhadora.

É nesse marco, que mesmo diante das constantes ameaças dos políticos burgueses, os trabalhadores ingleses dão uma forte demonstração de solidariedade e de unidade entre negros e brancos ao não cederem as chantagens de sua própria burguesia para se posicionar contrários a luta contra a escravidão nos EUA. Segundo Kevin Anderson, o acompanhamento desse processo marca profundamente o pensamento revolucionário de Marx. É justamente nesses anos da guerra civil norte-americana que ele escreve O Capital, e o papel da luta negra havia marcado tão profundamente a reflexão desse autor sobre como combater o sistema capitalista, que ele escreveu uma das mais fortes passagens sobre a importância da unidade entre negros e brancos na luta contra a exploração capitalista:

Nos Estados Unidos da América do Norte, todo movimento operário independente ficou paralisado durante o tempo em que a escravidão desfigurou uma parte da república. O trabalho de pele branca não pode se emancipar onde o trabalho de pele negra é marcado a ferro. Mas da morte da escravidão brotou imediatamente uma vida nova e rejuvenescida. O primeiro fruto da guerra civil foi o movimento pela jornada de trabalho de 8 horas, que percorreu, com as botas de sete léguas da locomotiva, do Atlântico até o Pacífico, da Nova Inglaterra à Califórnia. O Congresso Geral dos Trabalhadores, em Baltimore (agosto de 1866), declarou: “A primeira e maior exigência do presente para libertar o trabalho deste país da escravidão capitalista é a aprovação de uma lei que estabeleça uma jornada de trabalho normal de 8 horas em todos os Estados da União americana. Estamos decididos a empenhar todas as nossas forças até que esse glorioso resultado seja alcançado” [6].

Marx nesta passagem mostrou através da dialética que a escravidão nos Estados Unidos por mais que tenha paralisado a luta independente do proletetarido, quando alcançou o limite do negro suportar as contradições do densenvolvimento do capitalismo, a paralisia se converteu em seu espremo oposto, a luta pela liberdade, a luta pela emancipação do negro e do conjunto da classe trabalhadora. Como dirigentes da AIT, Marx e Engels viram o despertar da luta negra não como um fato isolado nos Estados sulistas, mas como uma importante força moral do proletariado internacional e por conta disso tentaram transformar esse combate contra a escravidão numa luta internacional dos trabalhadores. A contradição de um sistema econômico onde a pele negra é marcada a ferro deu origem não só à guerra civil, mas também serviu para colocar o movimento operário em luta na conquista do direito à jornada de 8h de trabalho.

Ainda que estes logros do movimento operário internacional fossem bastante importantes todo o combate contra a escravidão nos Estado Unidos tinha um sentido estratégico mais profundo para a conquista de direitos que vieram posteriormente à guerra civil. Marx quando olhava para luta dos negros por sua liberdade via a possibilidade do surgimento de um processo revolucionário, assim como apostava que se uma revolução começasse na China poderia espalhar por toda a Europa. Marx estudou as sociedade não ocidentais não só para compreender culturas e relações de classe distintas daquelas vistas na Europa, mas, sobretudo, porque compreendia que o desenvolvimento do capitalismo combinado com opressão étnica, nacional ou racial criavam contradições nas sociedades não ocidentais que só podiam ser resolvidas em favor do proletariado com uma revolução social.

Conclusão

Os ensinamentos deixado por Marx e a tradição do marxismo revolucionário são fundamentais para a luta antirracista atualmente, porque na etapa atual do capitalismo onde as tendências de crises, guerras e revoluções vem se aprofundando algumas das conclusões estratégicas da tradição marxista sobre a relação entre racismo e capitalismo também se retualizam frente aos embates da luta de classes internacional. No dia hoje, há 206 anos de seu nascimento, as conclusões estratégicas da relação entre do racismo e capitalismo nos ajudam a apontar um caminho para defender a autodeterminação do povo palestino como uma luta anti-imperialista e antirracista contra a limpeza étinica promovida por Israel.

Quando observamos o massacre do Estado de Israel sobre o povo palestino em Gaza através de uma política sionista, colonial e racista apoiada pelo imperialismo norte-americano, fica mais que evidente que a luta antirracista contra o genocídio do povo palestino precisa ser contra os interesses capitalistas e contra o próprio imperialismo que estão massacrando o povo palestino em nome dos interesses de uma burguesia sionista internacional. Ao mesmo tempo, quando vemos surgir respostas proletárias ao massacre em Gaza como a greve geral dos trabalhadores na Cisjordânia, Líbano, Jordânia e Jerusalém Oriental no final de 2023 pelo fim do massacre contra o povo palestino; quando trabalhadores portuários da Bélgica, Estado Espanhol e índia se recusaram transportar armas ao Estado de Israel, assim como trabalhadores estaunidenses no porto Oakland impediram um navio com armas chegasse a Israel, demonstra a força que tem o proletariado internacional emergindo como sujeito independete utilizando de seus postos estratégicos na luta contra o Estado israelense.

Além disso, milhões de jovens e trabalhadores têm saído às ruas na Europa, Estados Unidos e Oriente Médio em defesa do povo palestino, colocando de pé um extraordinário movimento anti-guera internacional. Neste exato momento, várias universidades nos Estado Unidos e na Europa estão sendo ocupadas por jovens estudantes americanos e imigrantes, se enfrentando com a repressão policial dos governos locais, e com o apoio do governo Biden, contra o genocídio em Gaza e para que as univerisdades rompam seus convênios com o Estado de Israel. Um grande exemplo de luta que está se espalhando também pela Europa como na França e em universidade no México. Isso é algo que deveríamos nos inspirar e exigir que o governo Lula-Alckmin rompa as relações com Estado de Israel e em meio a greve dos três setores no institutos e universidades federais por todo Brasil que a as universidade também rompam seus convênios com o Israel.

Retomar o legado de Marx batalhando para que as novas gerações que se levantam diante da crise capitalista questionando o imperialismo, o racismo e a exploração capitalista possam se fundir com a teoria revolucionária marxista é uma grande tarefa dos nossos tempos. Tarefa que levamos a frente em distintos países, intervindo fortemente como parte da Fração Trotskista pela Quarta Internacional, em cada processo da luta de classes, com propostas políticas para a reconstrução de um forte internacionalismo socialista, que assim como no século XIX, também precisa ser profundamente antirracista.


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FOOTNOTES

[1Carta de Karl Marx a Friedrich Engels, em 11 de janeiro de 1860, presente no livro A Guerra Civil dos Estados Unidos.

[2O capital, Karl Marx.

[3Marx nas margens, de Kevin Anderson.

[4A Guerra Civil dos Estados Unidos, de Marx e Engels.

[5Idem.

[6O Capital, Karl Marx.
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Odete Assis

Mestranda em Literatura Brasileira na UFMG

Renato Shakur

Estudante de ciências sociais da UFPE e doutorando em história da UFF
Estudante de ciências sociais da UFPE e doutorando em história da UFF
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