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DOSSIÊ 13 DE MAIO: ABOLIÇÃO DA ESCRAVIDÃO | A abolição sob o olhar operário: João de Mattos e outros líderes proletários em defesa da liberdade

“Pelo pão e pela liberdade”, eis o lema da organização dos trabalhadores padeiros que forjavam cartas de alforria para os escravizados e juntamente com os cativos faziam paralisações para sua fuga. Neste 13 de maio, aniversário de uma abolição tardia e duramente arrancada, é preciso resgatar não só o protagonismo negro, mas também os exemplos de aliança da classe trabalhadora pela libertação dos escravizados.

quarta-feira 13 de maio de 2020 | Edição do dia

No dia de hoje a historiografia oficial convencionou comemorar a abolição da escravidão, elevando a assinatura do decreto acima de todo o histórico de luta dos negros. O medo das elites senhoriais da haitianização no Brasil, a explosão do enorme contingente de mão de obra escravizada, que já havia ameaçado em processos como a revolta dos Malês e outras inúmeras revoltas, nas greves de trabalhadores “livres” e escravizados, no número crescentes de fugas para quilombos, crescia em conjunto a adesão das massas negras ao movimento abolicionista. É sempre necessário denunciar essa operação ideológica de apagamento do protagonismo negro em sua própria libertação. Como dito pelo revolucionário negro e historiador marxista C.L.R. James: “O único lugar em que os negros não se rebelaram é nos livros dos historiadores capitalistas”.

Entretanto, essa operação de ocultamento da íntegra do processo de abolição não terminou apenas no apagamento do protagonismo negro. Os enormes exemplos de aliança da classe trabalhadora também foram removidos dessa história, em outra operação interessada da burguesia para impedir que se fecundasse o germe de uma poderosa aliança: entre os trabalhadores “livres” e os negros escravizados em torno do fim da escravidão. Uma semente que germinaria nos tempos atuais num importante ponto de apoio contra a divisão dos trabalhadores imposta pela burguesia, que soube ao seu tempo manejar a herança escravagista e ressignificar o racismo.

Se ao invés da Princesa Isabel, ou mesmo Joaquim Nabuco, celebrássemos como os verdadeiros heróis da abolição Zumbi, Dandara - e outros líderes da resistência negra em primeiro lugar -, mas também personagens como o padeiro negro e líder sindical João de Mattos, o tipógrafo Evaristo Rodrigues da Costa, os operários negros do Arsenal da Marinha, os estivadores, reavivariámos esse espírito de unidade e combate à opressão, intrínseco à classe trabalhadora brasileira pelo seu próprio processo de formação. Por isso neste 13 de maio, resgatamos e celebramos aqui esses heróis que tentaram ocultar da abolição da escravidão no Brasil.

“Pelo pão e pela liberdade”: João de Mattos e os levantes de padeiros

A história da organização sindical dos padeiros confunde-se com a história de um de seus líderes: João de Mattos. Por onde andou, esse líder sindical ajudou a fomentar a organização da classe para o combate não só da exploração da categoria, mas também da opressão dos trabalhadores escravizados. Entre 1876 e 1912, o padeiro organizou paralisações das padarias em Santos, São Paulo e, por fim, no Rio de Janeiro. Durante as paralisações criava-se a oportunidade dos colegas escravizados fugirem, contando ainda com cartas de alforria falsificadas. Confira nas palavras do próprio João, a partir de um manuscrito localizado entre os papéis apreendidos pela polícia política carioca nos anos 1930:

““Em Santos existiam 5 padarias. E nós com os convenientes preparos, e com toda a cautela conseguimos o 1o. Levante geral, devido aos patrões serem muito maus e malvados – com castigos – e mais castigos sem a mínima razão. Às horas combinadas [as padarias] foram todas abandonadas. Eu já tinha todas cartas precisas, porém falsificadas, para cada, de liberdade. Seguimos. E, além deles já estarem bem compenetrados, mais fomos no caminho insinuando-os. E tão bem dispersos foram que não apareceram mais. Passados dois meses fui preso em São Bernardo e me conduziram para a cidade de Santos. Estive preso uns três meses e como não apareceu um só que fosse para provar fui posto em liberdade, condicional de não voltar mais àquela cidade””[1]

Casos como esse tão comuns na vida política de João de Mattos eram compartilhados por inúmeras organizações operárias e associações de trabalhadores que organizavam fugas para quilombos, cediam as casas de militantes para esconder trabalhadores escravizados em fuga, etc. Na verdade, João de Mattos e muitos trabalhadores organizados não apenas mostraram criatividade em seus planos de fugas, mas também indicavam o papel da unidade necessária entre trabalhadores “livres” e escravizados na luta contra a escravidão.

Após ser preso e solto em Santos, João de Mattos se muda para São Paulo onde organiza novo levante entre os trabalhadores locais. Mas é no Rio de Janeiro que João e outros companheiros organizam o Bloco de Combate dos Empregados em Padarias, que chegou a reunir mais de 100 associados. O Bloco tinha sede, estatuto e um lema, “Pelo pão e pela liberdade”, mas precisava funcionar clandestinamente, escondido sob a fachada de um “curso de dança”, em mais uma mostra da inventividade e das inúmeras estratégias de resistência empregada no período.

Porém, quando a escravidão foi abolida, em 1888, as lutas de João de Mattos e dos seus companheiros não foram dadas por terminadas. Afinal, como ele mesmo nos ensina, “em 1888 nós realizamos a maior vitória da nossa intransigente luta, ficando o caminho livre para os escravizados de fato e nós, os escravizados livres, até o presente entremos a lutar”. Embora o estatuto da escravidão tivesse acabado pela força das mobilizações e luta dos negros, as heranças da escravidão permaneceram vivas dentro na sociedade brasileira, a fome, as doenças e epidemias, os trabalhos precários e salários baixos, as condições insalubres de moradias constituem exemplos de como o capitalismo no Brasil se desenvolvia se apoiando na ideologia do racismo para obter ainda mais lucros às custas de sangue e trabalho negros.

O Club Abolicionista Guttenberg e a adesão dos tipógrafos

“A criação do Typographo [imprensa dos tipógrafos], devido a uma infinidade de homens que moralmente vivem escravizados, não tem outro fim além do de demonstrar com toda evidência os fatos de requintada iniquidade que se repetem incessantemente no recinto do edifício das folhas diárias”

Os tipógrafos protagonizaram desde o final do século XIX e nos primeiros anos da república, tiveram uma participação bastante ativa no movimento abolicionista e nas luta pela demandas imediatas da categoria como salário e contra as condições insalubres do trabalho. Em realidade, o apoio e militância ativa dos tipógrafos em relação a abolição da escravidão, mostra um caminho da unidade entre escravizados e “livres” que a classe trabalhadora ia encontrando para se enfrentar contra a elite escravista.

A fundação do Club Abolicionista Gutemberg, em 1880, marca a adesão definitva dos tipógrafos a luta antiescravista. O Club Gutemberg atuou de maneira bastante significativa no movimento abolicionista, editando o jornal Lincoln, entregando “cartas de liberdade” e organizando uma escola noturna e gratuita que contava com alunos de diversas profissões e nacionalidades. O editor de Lincoln era o tipógrafo Evaristo Rodrigues da Costa, citado por seu xará Evaristo de Moraes como “negociante, estabelecido com tipografia na travessa do Ouvidor, residente à rua General Caldwell, o qual acolhia os egressos do cativeiro, tanto na sua casa de comércio, como na sua moradia”.

Não foram apenas os tipógrafos que se envolveram na luta abolicionista, inclusive abrigando escravizados fugidos. Estudos apontam para articulações que englobavam ferroviários, cocheiros, charuteiros e tipógrafos na rede de fugas articuladas pelos caifazes. Redes de solidariedade que chegavam a incluir organizações de operários imigrantes, como o Círculo Operário Italiano, que promoveu espetáculos em 1881 com o objetivo de angariar fundos para comprar a liberdade de escravos.

Da mesma forma, o jornal O Abolicionista, de 28 de setembro de 1881, relata a decisão de mestres e operários das oficinas de fundição e de ferreiros do Arsenal de Marinha, de fazer uma contribuição mensal a ser entregue para a Sociedade Emancipadora.

A aliança entre os escravizados e os trabalhadores “livres”

Na obra O Capital, Marx formulou que “O trabalho de pele branca não pode se emancipar onde o trabalho de pele negra é marcado a ferro”. Entretanto, muito antes das primeiras traduções do livro para o Brasil, os exemplos e testemunhos resgatados aqui demonstram como o emergente movimento operário brasileiro aprendeu tal lição na sua própria vivência. A inevitável percepção da proximidade das condições de vida entre os mais baixos trabalhadores “livres” e os escravizados forçou a que esses trabalhadores “livres” identificassem também a semelhança entre a sua exploração, com jornadas de 12 a até 20 horas de trabalho, e a opressão a que eram submetidos os negros escravizados, chegando ao ponto que se autointitulassem “escravos morais”, se identificado mais aos seus companheiros escravizados do que a uma condição propriamente livre. Não só isso, mas a dieta de um trabalhador “livre” se assemelhava a de um escravizado, send a fome parte dessas experiências comuns, eles também desempenhavam as mesmas funções no trabalho, muitas vezes compartilhavam também as mesmas condições precárias e insalubres de moradia nas favelas e nos cortiços. Além é claro, por serem negros, sofriam os estigmas sociais que o negro carregava desde o surgimento das teorias raciais, como um criminoso em potencial, “suspeição generalizada” faziam com que o racismo e a violência policial fizessem parte desse repertório de experiências que trabalhadores “livres” e escravizados compartilhavam em comum.

Eis aí algumas das valorosas experiências e lições de unidade entre os explorados e oprimidos pertencentes a nossa história que a burguesia esforçou-se para soterrar. Contra a farsa dessa data da abolição da escravidão, celebremos tais experiências esquecidas, celebremos os nomes trabalhadores negros como João de Mattos, de Evaristo Rodrigues da Costa, e de cada um dos padeiros, tipógrafos, estivadores e todos os operários que lutaram junto aos negros escravizados pelo fim da opressão, celebremos a rica herança dos negros e da classe brasileira pela sua emancipação. Esses personagens históricos sem sombra de dúvidas contribuíram e muito para abolição da escravidão, a aliança entre esses trabalhadores, entre negros e brancos, a presença negra da luta contra abolição através do número crescente de revoltas e fugas para quilombos abolicionistas são parte das histórias que os historiadores capitalistas tentam apagar da memória do nosso povo. Tudo isso reforça a ideia de que o negro dócil é um mito e que a classe operária no Brasil se por um lado se formava com as marcas profundas deixadas pela escravidão, por outro mostrava na luta e resistência a unidade necessária para se enfrentar contra os racistas e capitalistas.

NOTAS:
1: Leila Duarte. Pão e liberdade: uma história de escravos e livres na virada do século XIX. Rio de Janeiro: Aperj/Faperj/Mauad, 2002, p. 64-65.

REFERÊNCIAS:

Marcelo Badaró. Trajetórias entre Fronteiras.

Rafael Maul. Escravizados na Liberdade




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