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A Relevância do marxismo na luta dos LGBTs: Os aportes de Engels para o fim das opressões

Pedro Pequini

A Relevância do marxismo na luta dos LGBTs: Os aportes de Engels para o fim das opressões

Pedro Pequini

“Ser radical é agarrar as coisas pela raiz, e a raiz para o homem é o próprio homem.” É a partir desta formulação de Karl Marx que me inspirei e retirei a necessidade e as bases deste texto.

Quando pensamos nas estratégias da burguesia enquanto classe dominante para se manter no poder, damos de cara com dois muros, o das distorções históricas e o do apagamento da origem dos processos que desembocam nos nossos problemas de hoje. Pensando nisso, nesse ano que se completam 51 anos de StoneWall, cabe a nós buscar a história das opressões sexuais e de gênero. Somente com isso em mãos é que poderemos traçar uma estratégia que arranque o problema pela raiz, buscando eliminar as bases materiais que sustentam esta opressão e possibilitando uma libertação verdadeira e não somente uma reforma momentânea cabível de ser retirada de nós no momento seguinte. É justamente nesse caminho que este breve artigo se lança, apresentando limitações bastante concretas, mantendo muitas questões não respondidas e, portanto, carentes de estudo e formulação.

Caminhemos, então, para uma linha de raciocínio que nos leve a um outro preceito do marxismo: a nossa tradição sem dogmatismo! Ser revolucionário não implica na negação das formulações passadas em prol da elevação injustificada do novo. Na verdade, ser revolucionário exige que retiremos as melhores lições da história a fim de superá-la, aprendendo com seus erros e se embandeirando dos acertos! Para isso, contamos com uma enorme fortaleza ideológica fornecida por gigantes como Karl Marx, Friedrich Engels, Vladimir Lênin, Leon Trotsky e Rosa Luxemburgo cujas palavras funcionam como verdadeiras armas para destruir a ditadura do Capital.

E é sobre um desses gigantes que se baseia esse texto: Friedrich Engels. O companheiro de vida e luta do barbudo, nos armou com um livro arrebatador chamado “A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado”. Desde o título, é construída uma tríplice que nada mais é do que pilares importantíssimos nos quais se sustenta a burguesia ainda hoje (mas não só). Nesta obra, o alemão faz justamente o movimento anteriormente desenvolvido de remontar ao surgimento dessas instituições para compreender mais até o final o funcionamento das mesmas na sociedade ao longo da história.

Nessa jornada, nos é apresentado um pensamento de cujo conteúdo antropológico, como antecipara o próprio autor, foi superado. Entretanto, sua reflexão acerca do desenvolvimento e o funcionamento da sociedade humana, guiados pela dialética materialista histórica, continua muitíssimo atual e necessária para a nossa luta.
Partindo de sociedades pré-classistas, nas quais nenhuma das três instituições do título existiam, Engels compara os homens de tais épocas a outros primatas como os gorilas e faz uma forte formulação: “A tolerância recíproca entre os machos adultos e a ausência de ciúmes constituíram a primeira condição para que se pudessem formar esses grupos numerosos e estáveis, em cujo seio, unicamente, podia operar-se a transformação do animal em homem”.

Neste único período, Engels coloca como um dos principais elementos para o surgimento e desenvolvimento do homo sapiens em seus traços mais essencialmente humanos o aparecimento tardio do ciúme já no seio da sociedade de classes, ou seja, a origem e o surgimento daquilo que chamamos de “humanidade”, dos traços que nos distinguem dos demais animais, estão fortemente vinculados a um período de ausência de sentimentos e instintos possessivos, o que nos possibilitou uma organização em grupos cada vez maiores, fortalecendo-nos nas nossas faculdades mentais, corporais e sociais.

Nessas agrupações mais livres do comunismo primitivo, nas quais os casamentos eram feitos de maneira grupal e indistinta de hierarquias familiares (só existiam as noções de pais, filhos e netos, sendo que os filhos de mesmo pai e mãe, assim como os primos destes, eram considerados todos irmãos entre si) o trabalho, qualidade central que para o marxismo é aquilo que nos diferencia dos demais animais, tinha como objetivo somente a subsistência, ou propriamente a repartição da miséria. Posteriormente, o trabalho geral passa a gerar um excedente a partir da Revolução Neolítica cuja importância na domesticação de plantas foi essencial para a passagem, que representa uma mudança qualitativa importante nas agrupações humanas, das sociedades nômades para as sedentárias. Aqui fica evidente a importância da agricultura enquanto técnica de produção para o desenvolvimento das relações sociais.

Paradoxalmente, com a fixação e com a produção de excedentes, elementos representativos dos nossos avanços técnicos de produção, inicia-se o surgimento da exploração do homem pelo homem: uma parcela de indivíduos começa a não trabalhar e viver do esforço e da produção dos demais, pois aqueles possuíam a propriedade das terras de onde ocorriam as plantações! Estão criadas a sociedade de classes e a propriedade privada!

Analisando essas transformações como frames, notaremos na fotografia do início da sociedade de classes o surgimento de um elemento que abordamos mais à cima: o ciúme! Devido à inexistência de uma ciência mais desenvolvida e à preocupação dos homens em manter a propriedade privada da terra nas mãos de uma mesma linhagem paterna, as mulheres são obrigadas a manter relações sexuais somente com um só homem, pois somente assim este teria a certeza de que aquele filho seria seu. E desta forma o germe das relações possessivas passava a desenvolver-se e a degenerar as relações humanas anteriormente mais livres. Sendo assim, Engels diz “O desmoronamento do direito materno, a grande derrota histórica do sexo feminino em todo o mundo.”

Para ilustrar tal passagem sobre a monogamia, sua relação com a herança e sua função e motivação econômicas, segue o seguinte trecho:

“Essa foi a origem da monogamia, tal como pudemos observá-la no povo mais culto e desenvolvido da antigüidade. De modo algum foi fruto do amor sexual individual, com o qual nada tinha em comum, já que os casamentos, antes como agora, permaneceram casamentos de conveniência. Foi a primeira forma de família que não se baseava em condições naturais, mas econômicas, e concretamente no triunfo da propriedade privada sobre a propriedade comum primitiva, originada espontaneamente. Os gregos proclamavam abertamente que os únicos objetivos da monogamia eram a preponderância do homem na família e a procriação de filhos que só pudessem ser seus para herdar dele. Quanto ao mais, p casamento era para eles uma carga, um dever para com os deuses, o Estado e seus antepassados, dever que estavam obrigados a cumprir. Em Atenas, a lei não apenas impunha o matrimônio como, ainda, obrigava o marido a um mínimo determinado do que se chama de obrigações conjugais.”

É importante entendermos, portanto, que para justificar tal exploração (que se mantém até os dias de hoje) a noção de propriedade privada foi criada com o objetivo de impor para aqueles que verdadeiramente trabalhavam o porquê deles terem de entregar parte da sua produção para o proprietário daquela terra onde plantaram, mesmo que este não tivesse colocado uma só semente nas plantações.
Como as questões jurídicas, políticas e culturais não se desligam de suas bases econômicas de sua sociedade, nasce também uma sociedade repressora fundamentada na noção de propriedade privada dos corpos, filha da propriedade privada dos meios de produção. E como disse Flora Tristan, importantíssima revolucionária pioneira, “A mulher é proletária do proletário”.

Curiosamente, o surgimento dessa relação de exploração exigiu que instituições fossem criadas a fim de que o tecido social não rompesse: e é justamente aí que o título do livro de Engels entra em cena! Fundamentalmente, a Família, o Estado e, obviamente, a Propriedade Privada são frutos dessa sociedade baseada na apropriação do trabalho alheio e foram criados, conservados e modificados para justificar e manter a exploração do homem pelo homem. Fundamentadas na opressão de gênero, na monogamia (institucionalizada na prática somente para as mulheres) e na herança para garantir a passagem da acumulação entre as gerações, tais preceitos aprisionaram os homens e as mulheres em performances de gênero muito bem estabelecidas e tentam castrar incessantemente as possibilidades quase infinitas de relações afetivas entre os corpos.

Logo, torna-se importante entender tais instituições de conjunto mas também suas particularidades. Nesse sentido, apresentarei brevemente alguns traços fundamentais: A Família é uma unidade produtiva e reprodutiva, relacionando-se diretamente com a reprodução da vida para o trabalho. Já o Estado surge das relações inconciliável entre as classes, nasce da sociedade mas afasta-se desta assumindo um caráter mentirosamente imparcial para justificar e manter a exploração e a opressão.

São nesses marcos econômicos e institucionais da exploração que se assentam as opressões contra as mulheres impondo uma repressão sexual para o conjunto da sociedade. Sendo assim, a luta dos lgbts não pode ser vista como algo à parte da luta das mulheres por sua emancipação! Historicamente os questionamentos na sociedade capitalista acerca das repressões sexuais estão intimamente ligadas ao ascenso da luta das mulheres.

Além disso, é importante nos determos na história da opressão sexual, que encontra suas raízes também em um passado pré capitalista, mas que ganhará corpo com o dogmatismo opressor da Igreja durante a Idade Média e se desenvolverá enquanto ideologias sanitárias e legais já no capitalismo. Posto isso, ficam mais evidentes os ponto de contato e distanciamento dessas lutas e a urgência da união dos oprimidos por uma batalha anticapitalista.

Ao pensar um pouco mais detidamente na importância da herança para o surgimento das opressões, Engels escreveu: “quando a propriedade privada se sobrepôs à propriedade coletiva, quando os interesses da transmissão por herança fizeram nascer a preponderância do direito paterno e da monogamia, o matrimônio começou a depender inteiramente de considerações econômicas. Desaparece a forma de matrimônio por compra, mas, em essência, continua sendo praticado cada vez mais, e de modo que não só a mulher tem seu preço, como também o homem, embora não segundo suas qualidades pessoais e sim conforme a importância de seus gens¹. Na prática, e desde o princípio, se havia alguma coisa inconcebível para as classes dominantes era que a inclinação mútua dos interessados pudesse ser a razão por excelência do matrimônio. Isto só se passava nos romances ou entre as classes oprimidas - que não se contavam para nada.”

Aqui o caráter determinante das relações econômicas para as relações pessoais, assim como a degeneração destas pela imposição da propriedade privada em detrimento da propriedade coletiva, evidenciam 3 coisas: 1) a monogamia representou uma verdadeira derrota para as mulheres e para a humanidade de conjunto, em especial no âmbito da diversidade sexual; 2) pensar na construção de novas formas de amor passa sim ou sim pela destruição das relações econômicas da forma como ainda se constituem. É necessário desvincular a economia das relações afetivas, tendo em vista que a sociedade capitalista com a Revolução Industrial e mais ainda na época imperialista possibilita diretamente esta desvinculação entre família e a vida sexual individual; 3) a transmissão da herança, ou seja, a manutenção da propriedade privada é uma inimiga de toda a população, dos trabalhadores e dos setores oprimidos, pois é uma das bases da divisão das classes e, portanto, da desigualdade de toda a sociedade.

Pensando na relação entre opressão e exploração, o que significa para toda sociedade que o trabalho doméstico feito dentro de casa pelas mulheres não seja pago? Isso causa um rebaixamento dos salários dos trabalhadores de conjunto uma vez que elas assumem o trabalho doméstico mas não recebem por fazê-lo e com isso é justificado os menores salários: se há um indivíduo que “naturalmente” possui pré-disposição para cozinhar e lavar, atributos essenciais para a manutenção da vida e, consequentemente, do trabalho, o patrão não precisa acrescentar no salário do seu trabalhador uma quantia que seria destinada para ele possuir esses serviços, como pagar uma lavanderia ou comparar uma refeição pronta. Isso evidencia que no capitalismo o patriarcado dá um salto de aperfeiçoamento, contribuindo diretamente para uma maior exploração.

Portanto, ao subverter esse jogo de poder que o homem tem socialmente sobre a mulher através e também das relações entre pessoas do mesmo sexo, abre-se um espaço para se questionar esse fato opressivo de conjunto, o que representa um perigo enorme para a classe dominante, mantenedora dessas opressões enquanto tais, pois esta deseja justificar sua maior exploração nesses setores mais oprimidos, como menores salários para mulheres e LGBT’s, sem falar da dupla ou tripla jornada de trabalho, e para fragmentar os explorados que não se enxergam como iguais.
Destrinchados os mistérios que buscam separar as lutas das mulheres, dos lgbts, e de outros setores oprimidos, como os negros, da luta dos trabalhadores pelo fim deste sistema de miséria, torna-se explícita a necessidade de nos unirmos para destruir as instituições que foram os agentes criadores de toda essa opressão absurda: a Família, a Propriedade Privada e o Estado! Somente assim poderemos construir uma sociedade sem classes, livre de exploração e opressão.

¹: Conjunto de pessoas que utilizam o mesmo nome (nomem gentilicium) e que descendem de um antepassado comum.
Fonte: ENGELS, F. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. Editora Lafonte, 2017.


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