×

Um movimento renovado emergiu no mundo, no Dia Internacional das Mulheres, com manifestações imensuráveis e diversas, que vão desde as tradicionais mobilizações até às greves de trabalhadores e a paralisação também das tarefas de reprodução da vida cotidiana.

Andrea D’Atri@andreadatri

Celeste MurilloArgentina | @rompe_teclas

sexta-feira 2 de junho de 2017 | Edição do dia

O esgotamento foi o que motorizou as grandes maiorias, que desfilaram pelas metrópoles, sem participar de nenhuma agrupação. A ideia de uma paralisação internacional de mulheres, que remetia à iniciativa que em 2016 haviam tido as polacas e as argentinas, para fazer ouvir suas demandas, revitalizou essa data que, há tempo, parecia relegada ao calendário das organizações feministas e da esquerda: milhões tomaram o Dia Internacional das Mulheres como seu, organizando-se em seu lugar de trabalho ou de estudo, mas sobretudo, participando massivamente das mobilizações.

"milhões tomaram o Dia Internacional das Mulheres como seu, organizando-se em seu lugar de trabalho ou de estudo, mas sobretudo, participando massivamente das mobilizações"

Assim se viu na Grande Vía de Madrid, que entrou em colapso antes da hora da convocatória em Barcelona, onde também se realizou um protesto massivo. Quase todas as capitais europeias acompanharam a jornada internacional. Nos Estados Unidos, depois da enorme Marcha das Mulheres de 21 de janeiro que reuniu cerca de 3 milhões de pessoas em todo o país, também se realizaram atos pelo 8 de março, retomando uma tradição profundamente esquecida no coração do imperialismo.

Houve atos e marchas em quase todos os países da América Latina. As cidades de São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, entre outras no Brasil, a Cidade do México e outras desse mesmo país, como também Santiago do Chile, contaram com dezenas de milhares de participantes. Uruguay e Argentina tiveram as maiores mobilizações. Dezenas de milhares também em Montevidéu e marchas simultâneas em outras cidades, com uma paralisação entre as 16 e às 22 horas convocada pela central sindical PIT-CNT (Plenário Intersindical de Trabalhadores - Convenção Nacional de Trabalhadores) que incentivou e facilitou a participação de trabalhadoras e trabalhadores, especialmente do setor de comércio, no setor bancário e outros da indústria. As mulheres de alguns sindicatos da Educação paralisaram suas tarefas por 24 horas e seus companheiros se somaram desde às 16 horas, para acompanhar a mobilização. A Argentina foi testemunha de marchas massivas, com um grande ato na histórica Praça de Maio de Buenos Aires, mas também em Córdoba, Rosário, Mendoza e outros centros urbanos.

Desconhecendo, inclusive, os manifestos e documentos que organizações feministas, sindicais, estudantis, políticas e sociais escreveram para a ocasião, a imensa maioria das mulheres participou para fazer conhecido seu esgotamento com a violência feminicida, com a precarização trabalhista que a condena a uma vida miserável, com a desigualdade irracional que as mantêm subordinadas em todos os âmbitos, com o medo no qual é imposto moldear sua subjetividade e sua existência. Esse esgotamento foi o que alimentou a participação na paralisação que, em determinados lugares, foi muito mais efetivo do que pretendia a adesão formal das centrais sindicais. Na Argentina, na Pepsico, multinacional da indústria alimentícia, a paralisação começou às cinco da madrugada, depois de votada em assembleia convocada pela Comissão Interna que é oposição à direção do sindicato; no Aeroparque de Buenos Aires, as trabalhadoras da empresa LATAM com o apoio dos delegados de base também oposição à direção sindical, paralisaram as filas do check-in. Houve também, incontáveis ações parciais e protestos em centros de saúde, como o gigante hospital Posadas e o hospital Alende. As professoras foram grandes protagonistas, impondo em vários sindicatos paralisação efetiva durante toda a jornada, em meio ao conflito sindical que os enfrenta com o governo nacional e os governos municipais.

Dentro da lei, pouco

O que explica a renovada massividade de marchas e protestos que, apenas uns anos atrás estavam reduzidas a uma parcela do ativismo feminista e da esquerda partidária? Não faltaram os acalorados debates nas redes sociais entre os que criticavam intencionadamente a convocatória porque as mulheres “já têm todos os direitos” ou não se sabe “do que se queixam, agora” e suas razões. Mas a realidade é que, na crise capitalista em curso, se torna cada vez mais aguda a contradição entre a ampliação de direitos conquistada – ao menos nos grandes centros e nos países semicoloniais prósperos – e a materialidade da vida cotidiana da maioria das mulheres (onde golpeiam os cortes orçamentários, os ajustes só contra as classes mais populosas, a violência machista que não cessa, e frente a qual os Estados e suas instituições são cúmplices).

No entanto, essa ampliação de direitos conquistada, abriu os olhos, elevou as aspirações a uma vida melhor e, então, o contraste com a vida realmente existente se fez tão agudo que fez a raiva explodir. Depois de décadas de neoliberalismo, a explosão da crise econômica e suas consequências sociais fez mais palpável que nunca a expressão que “a igualdade frente a lei, não é ainda a igualdade frente a vida”. Nessa brecha entre as leis e a vida, estão localizadas as mulheres. Estas enormes demonstrações do 8 de março, não caíram do céu : as precederam, nos últimos meses, as mobilizações que gritaram Ni Una Menos na Argentina, para exigir ao Estado que disponha orçamento e medidas efetivas que possam prevenir os feminicídios; as greves na França e Islândia exigindo que se elimine a diferença salarial entre homens e mulheres; a marcha baixo uma chuva torrencial de centenas de milhares de mulheres na Polônia, que não estavam dispostas a que se lhes retire o (já restrito) direito ao aborto e os inumeráveis protestos de mulheres contra Trump, nos Estados Unidos, entre outros.

"Depois de décadas de neoliberalismo, a explosão da crise econômica e suas consequências sociais fez mais palpável que nunca a expressão que ’a igualdade frente a lei, não é ainda a igualdade frente a vida’".

A enorme simpatia que despertam estas manifestações evidenciam que os protestos não expressam só uma reivindicação por demandas próprias das mulheres, mas também que servem como via de expressão do descontentamento de milhões de trabalhadores e estudantes com as políticas de austeridade, ajuste e precarização da vida que a classe capitalista e seus governos estão descarregando sobre nossos ombros, para manter seus lucros. É a semente de uma aliança que será fundamental na hora de golpear uma derrota ao capitalismo patriarcal.

Fora da luta, nada

Nenhuma das análises que já circularam sobre este novo fenômeno protagonizado pelas mulheres passa pelo alto caráter político das manifestações e seu particular internacionalismo. Dois elementos distintivos que contrastam com as longas décadas de hegemonia do feminismo liberal, nas quais se impôs a ideia da “livre eleição” [1] como único horizonte emancipatório, sem questionar a degradação das democracias onde apenas algumas mulheres têm acesso a alguns direitos.

Segundo essa concepção despolitizada e despolitizante, de que a emancipação das mulheres consiste simplesmente na conquista gradual de direitos dentro do regime político, e uma vez alcançados, as mulheres seriam responsáveis, individualmente, da vida que escolheram ter. O feminismo liberal que defendeu apenas as reformas legais, retirou do movimento pela liberação de mulheres sua crítica social mais aguda, abriu as portas para que mulheres da direita – com essa mesma lógica – sustentem atualmente um “feminismo” de novo cunho onde adiar a carreira profissional para dedicar-se à criação dos filhos e os cuidados do lar ou “realizar-se” através dos êxitos profissionais do marido, se embandeiram como “direitos” individuais tão válidos como aqueles outros que apontam a redução da desigualdade entre os gêneros. Que Ivanka Trump, filha do presidente estado-unidense, seja apresentada como representante de um “feminismo conservador” é uma confirmação deste atoleiro em que ficou preso o feminismo liberal.

A linha de falha desse feminismo reformista se encontra na separação que fazem entre a busca de direitos democráticos para as mulheres e a crítica (e a luta) contra o sistema social em que se origina, legitima e reproduz sua subordinação e discriminação (e que estão inscritos, circunstancial, temporária e limitadamente esses direitos). Não é o lobby parlamentar, que terminou em cooptar alguns setores do movimento (2), o que dá um caráter político às demandas das mulheres, mas a revelação desta relação intrínseca entre os direitos básicos que ainda são negados (incluindo o direito de não ser morta por ser mulher!) e a perspectiva de ter nossas vidas precarizadas por um sistema social baseado na exploração e opressão de milhões de seres humanos por uma classe minoritária, parasitária e capitalista.

O discurso liberal transformou o feminismo, assim como outros movimentos sociais dos setores oprimidos, em algo tão inofensivo que foi incorporada sem grandes problemas pela direita, como bem aponta Nina Power em seu ensaio A mulher unidimensional, mostrando que setores das classes dominante não tem nenhum problema em argumentar a favor de que mulheres, minorias étnicas e homossexuais também ocupam "altos cargos" na sociedade capitalista. Assim se apresentou Hillary Clinton na eleição americana, tornando-se o exemplo por excelência do feminismo neoliberal ou imperialista, como Nancy Fraser e Zillah Eisenstein afirmam. Mas ele falhou miseravelmente em somar a maioria das mulheres a sua epopeia para quebrar o "teto de vidro" e mostrar-se como uma alternativa ao candidato republicano que é a cara da misoginia moderna (3). Seu "feminismo corporativista" estava longe de ser os problemas que afligem a vida de milhões de americanas assalariadas, desempregadas, negras ou imigrantes.

Hoje, através do ressurgimento do movimento de mulheres no mundo todo, estes grupos políticos reformistas tentar se recompor das derrotas impostas por diferentes variantes da direita. Não é por acaso que as ativistas que impulsionaram de forma mais decisiva o envolvimento dos EUA na Paralisação Internacional de Mulheres são as mesmas que alertaram para o perigo do Partido Democrata tentar capitalizar esse ressurgimento deste grande movimento de mulheres a fim de reverter sua derrota eleitoral e, ao mesmo tempo, aparar as restas mais revolucionárias e questionadoras. A ativista e jornalista Ella Mahony, da revista Jacobin, explica que se tornou evidente no espaços feministas de esquerda que existe um feminismo "neoliberal" contra o qual novas formas de feminismo deve ser desenvolvidas. O que está menos articulado é a natureza política e origens deste feminismo corporativista. O elemento chave do feminismo neoliberal foi a lenta asfixia de alternativas políticas dos anos 80 em diante. Mas por trás dessas forças gerais estão decisões estratégicas que lentamente estreitaram a visão política de organizações feministas (4).

Veja também: Nancy Fraser: um feminismo para abolir as hierarquias

A luta antipatriarcal deve ser também anticapitalista

O feminismo liberal começou a mostrar sua própria incapacidade de enfrentar as investidas do governo Trump. E, como estamos vendo com a recente mobilização das mulheres em todo o mundo – que disputam o mito de que "a igualdade é aqui" – e as discussões que se abriram com a derrota de Hillary Clinton e o triunfo de Trump, esse feminismo liberal está cada vez mais questionado. Nesse sentido, é sintomático o surgimento, nos Estados Unidos, do chamado para construir um novo "feminismo para 99%", que identifica no binômio "patriarcado-capitalismo" a fonte dos problemas que afetam a maioria das mulheres. Esse grupo de feministas, principalmente da academia, chama para a construção de "um feminismo de base, anti-capitalista, em solidariedade às mulheres trabalhadoras, suas famílias e aliados em todo o mundo " (5).

São esses mesmos setores que apontam com maior determinação o caráter necessariamente internacionalista do movimento das mulheres, retomando a ideia de ações coordenadas internacionalmente como as que protagonizou em seu momento o movimento anti-globalização ou como aconteceu com marchas contra guerra do Iraque em 2003, e retomam a ideia da greve como a melhor ação para se fazer ouvir as reivindicações. Essa ideia ainda mostra uma série de limitações na prática, como foi visto na forma das paralisações nos diferentes países, mas também abre muitos debates sobre a forma de torná-lo eficaz.

"O que nos une é o desejo de dar voz e poder às mulheres que tem sido ignoradas pelo feminismo corporativista e que sofrem as consequências de décadas de neoliberalismo e guerras: as pobres, as trabalhadoras, as mulheres negras e imigrantes ... "(6), escreveram as impulsionadoras da Paralisação Internacional de Mulheres nos Estados Unidos, poucos dias antes do 8M. O instinto para recuperar a tradição da aliança entre o movimento de mulheres e a classe trabalhadora em um país como os Estados Unidos (que soube exportar o feminismo liberal por todo o mundo) diz sobre as possibilidades de fortalecer uma ala anti-capitalista dentro deste novo movimento mulheres. Também na Argentina, Chile e outros países, a linguagem anticapitalista reconstitui as reuniões do movimento das mulheres, seus manifestos e mobilizações.

Como colocamos dias antes do 8 de março, as socialistas revolucionárias (7), esse chamado não é inconsequente. Acreditamos que abre a porta para um debate promissor e inevitável sobre a estratégia e programa político deve assumir a luta das mulheres contra o capitalismo patriarcal, no marco desta nova situação mundial marcada pela crise capitalista, por governos populistas de direita e outros fenômenos políticos que querem levantar a bandeira das reformas do mesmo sistema em que somos oprimidas e exploradas. Nos obriga a pensar quais são as alianças que devemos priorizar, nós as mulheres na luta por nossa emancipação, e de que maneira tentaremos ser de milhões de trabalhadores e trabalhadoras – a imensa maioria da população do mundo que tome em suas mãos estas bandeiras (8).

Imaginar hoje um movimento feminista anticapitalista obriga a reconsiderar o sujeito político: sem as mulheres assalariadas que compõem metade da classe majoritária da sociedade, não há destino. Além disso, se não é a classe trabalhadora - suas mulheres, mas também os homens - a agitar as bandeiras da emancipação dos oprimidos em sua luta contra o capital, o anticapitalismo não passará de uma expressão de desejos apenas.

Esta aliança entre a classe trabalhadora e as mulheres organizadas por seus direitos, que remonta ao século XIX e no início do século XX foi fundamental para a conquista do voto feminino, para abordar as políticas belicistas das burguesias nacionais europeias e conquistar direitos inimagináveis – e ainda pendentes em muitos países capitalistas – com a revolução socialista que levou ao poder a classe operária na Rússia, foi impiedosamente destruída pelas classes dominantes, pela traição das direções sindicais que afundaram a classe trabalhadora na economicismo corporativista e sua fragmentação despolitizante em ONGs. Recompor a aliança histórica é uma tarefa imprescindível na reconstrução de um feminismo anticapitalista sério sobre si mesmo. Só quando realmente paralisar os a produção e circulação de bens, serviços e comunicações, as mais precarizadas que são marginalizadas pelo sistema, as donas de casa, as mulheres em situação de prostituição, como todas e todos marginalizados por esse sistema vergonhoso, podem fazer sua voz ressoar no silêncio. Essa aliança se constrói. Mas não pode ser construída ou se transformar a luta antipatriarcal em uma luta anti-homens, nem ignorar que entre as classes exploradas há também a opressão de uns sobre outras.

Infelizmente, parte da esquerda oscila entre essas duas posições: se curvam acriticamente para ações contra os homens setores do feminismo radical "vingativo" (portanto individualista), carentes de uma estratégia política anticapitalista e antipatriarcal, ou, por outro lado, se recusam a enfrentar o preconceito de gênero da classe trabalhadora, fomentado pelas classes dominantes através das instituições sob seu domínio, bem como recusam a se colocar na vanguarda da luta pelos direitos democráticos básicos. E assim vai sugerindo que o "assédio verbal" de um jovem na rua, merece a mesma punição e condenação que o terrorismo de Estado, ou defendem que as ofensas são parte do sistema exploração capitalista, absolvendo o ato ao mais consciente da classe trabalhadora (e por que não da própria militância masculina) de qualquer responsabilidade na reprodução do machismo.

O debate está agora na ordem do dia, pois o movimento de massa de mulheres nas ruas ao redor do mundo, faz atual a disputa sobre o qual o caminho vai seguir para não acabar como na onda feminista anterior, da década de 70, aceitando vitórias parciais de ampliação dos direitos enquanto enterrava a perspectiva de uma transformação radical do sistema capitalista na consciência de massas. O movimento atual traz para a mesa este debate: nosso horizonte vai se limitar a resistência ocasional contra a direita ou teremos uma estratégia para finalmente vencer?

A agrupação internacional de mulheres Pão e Rosas, presente na Argentina, Brasil, Bolívia, Chile, Uruguai, México, Venezuela, o Estado Espanhol, França, Alemanha e Estados Unidos intervém neste debate aberto, sendo parte do movimento de mulheres desses países; mas também, com as nossas ideias, programa e estratégia, concentrando a experiência herdada de gerações de revolucionárias e revolucionários marxistas. Nós argumentamos que apenas um feminismo que busca transformar-se em um movimento político de massa, onde a luta por maiores direitos e liberdades democráticas está ligada à denúncia do sistema social de exploração e miséria da imensa maioria da população, com o objetivo de derrubar esse sistema, pode ser verdadeiramente emancipador. E as escravas da história gritam através das vozes do presente, o seu desejo de vencer, de uma vez por todas.

Veja também: Manifesto Internacional do Pão e Rosas

Notas
1. Ver C. Murillo, “Feminismo cool, vitórias que são de outras”, publicado no Esquerda Diário em 08/01/2016
2. Exemplo do que foi na Argentina a cooptação de setores do feminismo e do movimento de mulheres por parte do kirchnerismo. No Brasil se sucedeu algo similar com o PT.
3. C. Murillo, “Hillary Clinton y su techo de cristal”, Revista Ideas de Izquierda 35, novembro-dezembro de 2016.
4. E. Mahony, “A Feminism That Takes to the Streets”, Jacobin, 08/03/2017.
5. Declaração “Por um feminismo de 99% e uma paralisação internacional de mulheres ativa no 8M” traduzido em português (Chamado internacional para uma paralisação de mulheres no 8 de março), publicado no Esquerda Diário em 09/02/2017.
6. “A luta das mulheres na era Trump: lutar pelo Pão e pelas Rosas” publicado no Esquerda Diário em 23/02/2017.
7. Se refere as militantes do grupo internacional de mulheres Pão e Rosas.
8. A. D’Atri, “8 de marzo: Que a terra trema !”, publicado no Esquerda Diário em 06/03/2017.

Tradução: Patrícia Galvão e Tassia Arcenio




Comentários

Deixar Comentário


Destacados del día

Últimas noticias