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SEMANÁRIO

50 anos da vitória da UP e o caráter do Estado no Chile

Camilo Jofré

Gabriel Muñoz

50 anos da vitória da UP e o caráter do Estado no Chile

Camilo Jofré

Gabriel Muñoz

Este ano se comemora o 50º aniversário do triunfo da Unidade Popular, quando Salvador Allende é eleito, o primeiro presidente socialista da história a vencer por via eleitoral. A burguesia chilena juntamente com o imperialismo estadunidense conspiravam desde o primeiro momento a queda do governo, o que concretizaram em 1973. Qual é o balanço que há da “via chilena ao socialismo”? Que cenário se viveu no Chile entre os anos 1960-70? Que concepção marxista de Estado tinham as correntes da UP? Estas são algumas das questões que tentaremos responder.

O “humanismo marxista” de adesão geral mas sem balanço particular

No final de junho a acadêmica Paula Vidal Molina, professora de Serviço Social da Universidade do Chile, publicou um artigo na Rádio UChile intitulado “A validade de Salvador Allende, 50 anos após o triunfo da Unidade Popular”. Nele, ela desenvolve muito claramente o pano de fundo da visão política da coalizão eleitoral de esquerda que conseguiu trazer à presidência o primeiro socialista da história da democracia burguesa. Sobre a revolta popular de outubro e novembro de 2019, talvez a maior e mais profunda revolta da história do Chile, a acadêmica se localiza dizendo que a experiência da UP nos permite pensar sobre que tipo de sociedade merece ser construída, por quais princípios lutar, que estratégias e táticas políticas implementar. Foi uma tentativa de encontrar um país “livre e soberano”. Recorre, primeiro, à história de Allende e suas concepções.

“Neste horizonte [de servir os ‘interesses do povo’, Allende] atribui um papel estratégico central ao controle do Estado sobre as indústrias fundamentais, meio necessário para o ‘desenvolvimento industrial e a libertação econômica’ dos povos do Chile e da América Latina. A democracia política burguesa não está excluída de seu olhar crítico a partir dos anos 1940, reconhecendo desde cedo que isso não é suficiente para defender as liberdades individuais e sociais, que efetivamente requerem uma ‘democracia econômica e social’” [1].

No Allende daqueles anos, a concepção principal consistia em alcançar a “democracia econômica” por meio do papel central do Estado na economia e do reconhecimento formal de que a política burguesa por si só não é capaz de cumprir essa tarefa. Desse modo, seguindo os argumentos de Paula, Allende completou o esquema tirando certas conclusões de Marx a respeito de uma necessidade:

“A supressão das classes sociais, a socialização dos meios e instrumentos de produção e o direito à propriedade privada quanto aos ‘bens de uso e consumo’. Economicamente, a produção planejada caracteriza uma sociedade socialista, capaz de fabricar ativos fixos que devem ser distribuídos de acordo com a quantidade de trabalho realizado e aportado por cada homem” [2].

O que Paula destaca não é extravagante. O Chile vive hoje um processo de crise terminal de regime político desde a revolta de outubro, e agora devemos somar os fatores de crise econômica e de saúde desses meses de pandemia. Há um processo constitucional em andamento, que abre as ilusões na transformação social e política do país. Porém, por que o pensamento de Allende e os partidos da Unidade Popular não levaram os trabalhadores e o povo à vitória? Por que seu pensamento se reduziu ao de um “lutador social” suicidado sitiado no Palácio de La Moneda? Parece que o “humanismo marxista” que a autora resgata é uma adesão sem críticas ou equilíbrios sobre o pântano que significou o 11 de setembro. Será este século XXI um caminho que nos leva a outro UP 2.0?

O Golpe Militar foi a maior derrota infligida à classe trabalhadora e ao povo chileno. Foi vivido como um castigo dos poderosos contra aqueles que se levantaram pela transformação social. Apenas por esse acontecimento, a história particular do processo merece ser revista. Em seguida, queremos abordar essa questão usando os balanços e as concepções do Partido Comunista no processo dos anos 70.

O “socialismo” da Unidade Popular e sua concepção de Estado

Tem razão quando se destaca que a questão se tratava do socialismo. Mas que tipo de socialismo e que estratégia o Partido Comunista e o Partido Socialista realmente testaram? Naqueles anos, Allende e o Partido Comunista sintetizaram sua concepção de socialismo na fórmula “via chilena, pacífica, para o socialismo”. Isso se baseou em um suposto nível de sociedade e regime alcançado pelo Chile na década de 1970, que Ricardo Ffrench-Davis sintetiza muito bem:

“Era um Chile democrático, com um parlamento em funcionamento, onde todos os setores políticos estavam representados, com poder judicial, com independência do parlamentar e do executivo; com uma mídia visivelmente mais pluralista. Um país com muitas formalidades, mais sistêmico, com menos corrupção, com mais componentes de participação; com todos os defeitos característicos do subdesenvolvimento. Um país com reforma agrária em curso e com uma característica muito decisiva: três terços políticos” [3].

A história do Chile no século XX foi muito convulsionada e cheia de eventos de lutas de classes. Em 120 anos de história, o que menos houve foi um país pacífico apegado à institucionalidade. Como veremos a seguir, o Chile foi um país bastante turbulento e abrupto.

Para Allende, o PC e a maioria do PS, tratava-se justamente de utilizar a atual rota eleitoral institucional para as transformações sociais. Supondo que o Chile fosse uma exceção à regra. Uma vez como presidente, Allende é entrevistado por um canal de televisão europeu. Lá ele disse:

“Pela via legal, vamos fazer uma revolução (...) dissemos que vamos mudar o regime capitalista para abrir o caminho ao socialismo, porque sabemos muito bem que o socialismo não se impõe por decreto. Daí segundo a realidade chilena, num país por força e tradição que possui, a consciência pública, pelo sentido profissional das Forças Armadas, por ser um país onde a institucionalidade tem peso e conteúdo muito definido. O Congresso está em funcionamento há 120 anos, que outro país existente na América Latina, e mesmo na Europa, que pode dizer isso? Diante dessa realidade, o único caminho possível é o canal eleitoral. Ora, nesta causa podemos, como disse, dentro das leis da democracia burguesa ou da República Liberal, podemos mudar as instituições, e isso está estabelecido pela própria Constituição”.

Esta concepção do socialismo se assentava em duas máximas: o caminho é o uso do Estado capitalista pré-existente e que a democracia burguesa pode criar novas instituições socialistas para a substituir. Os socialistas e comunistas chilenos da época foram guiados por um esquema errado da história chilena. A concepção do regime burguês e, portanto, do caráter do Estado se distanciava da concepção marxista.

Na verdade, o pensamento de Allende é um reflexo bastante pacífico da teoria da democracia de Karl Kautsky, aquela que dizia no início do século XX que havia uma “democracia neutra” na Alemanha e que, portanto, os trabalhadores podiam avançar para seus objetivos socialistas por meio de eleições e sindicalismo[No início do século XX o crescimento econômico e o aumento de direitos políticos para a classe trabalhadora na Alemanha havia confundido os socialistas. Bernstein imaginava um capitalismo capaz de conceder melhoras progressivas na condição de vida dos trabalhadores. E Kautsky coroou esta ideia ao dizer que a democracia iria perdendo seu carácter de classe. Estas concepções derivam em uma prática eleitoral e sindical do partido social-democrata alemão.]. Para Allende, o centro de gravidade, ou seja, onde a estratégia, e portanto o programa, acumulam força, é o Estado e suas instituições. Para Marx, era o oposto.

Deixando isso bem claro. Outra coisa que é interessante esclarecer é a natureza do programa que deveria ser executado dentro do Estado. Existe todo um mito sobre o programa da UP, ele realmente incluiu tendências ou caminhos para o socialismo? O programa de Allende era de conjunto nacionalista burguês. Em que sentido? No fato de que ele queria reordenar a economia considerando a existência do empresariado, talvez buscando sua persuasão ou sua rendição à vontade popular. Previa a nacionalização do cobre, mas com o pagamento de indenizações, a transferência para o Estado de um reduzido número de empresas consideradas monopolistas, mas paralelamente à área da propriedade privada, um aumento geral dos salários no quadro de um mercado liberalizado, e a extensão da reforma agrária sob a ideia de formar um pequeno empresariado rural que nunca prosperou [4].

O balanço que o Partido Comunista faz

Paula Vidal, como descrevemos acima, representa a visão de “ignorar” a derrota. Em outras palavras, o fator da contrarrevolução que esmagou o processo revolucionário em curso. Nesse sentido, a experiência da Unidade Popular se transforma em algo abstrato, capaz de ser trazido ao presente apenas por sua vocação de transformação. Mas essas ideias não resistem ao teste dos fatos que envolveram seu fracasso.

Este dirigente, o de maior destaque do PC nos anos da UP, sintetizou em entrevista o seu balanço da UP. 1) Foi uma tentativa de busca de um país livre e soberano, 2) Foi derrubado pela reação imperialista, oligárquica e burguesa em defesa de seus privilégios, e 3) O PC pecou de “sectarismo” e isso favoreceu a derrota [5].

Em primeiro lugar, o referido balanço reivindica a UP pelo seu compromisso com a mudança, assim como Paula Vidal resgata. Mas o interessante de Corvalán é que adiciona dois novos elementos. A derrota é causada pela reação das classes dominantes e do imperialismo. Por muito tempo esse foi o balanço mais estendido pelo PC e os partidos da UP. Nesse sentido, isso explica a morte literal da tese allendista de um país supostamente excepcional e apegado ao funcionamento legal. Nas conclusões que se fazem com a interrupção do golpe, repetem este argumento. Resultando em uma espécie de inevitabilidade reacionária. Uma visão que superestima as forças do inimigo ao não rever os passos que o governo e seus partidos seguiram para impedir o golpe. Esta “inevitabilidade” da luta violenta transformou-se em uma batalha dentro do próprio PC que resultou nas teses denominadas “rebelião popular de massas”, que entre outras questões, considerou necessária a criação de um aparelho armado, mantendo a sua estratégia e teoria no fundamental [6].

Mas voltando a Corvalán, o que mais se destaca neste dirigente é que acaba fechando o balanço com a autocrítica que trata do “sectarismo”. Em que sentido? Que existiam “posições extremistas”, que o PS começou a agitar “para dissolver o Congresso” em 1973. Faltava uma “maioria nacional”, nas suas palavras: “No Partido Socialista e em alguns outros partidos da UP, haviam posições contrárias a nos entender com a DC [Democracia Cristã]. O Presidente Allende, o Partido Comunista, o Mapu Obrero Campesino, o Partido Radical e a Ação Popular Independente, API, se destacaram por terem uma posição mais ampla em termos de unidade. Mas não se jogaram o suficiente nessa direção”. O esquema a que esse dirigente chega é que uma linha maior de alianças com a DC teria evitado o golpe. O estranho é que a política oficial de Allende e do PC era hegemônica dentro da coalizão e todas as suas soluções políticas para todas as crises abertas dentro do processo foram aplicadas, como veremos a seguir.

A luta de classes antes e durante a Unidade Popular: o papel do Estado chileno

A tese de que o Chile era uma “exceção” na história social mundial não coincidiu com os acontecimentos e processos históricos de todo o século XX vividos no país. Pela direita, guerra civil, golpes militares, ditaduras militares, instabilidade política, massacres sangrentos do Estado contra o movimento operário e camponês. Pela esquerda houve greves gerais no início do século, também revoltas operárias e populares, houve outras greves gerais nos anos 1950 e nos anos 1960 o campesinato fez levantes no campo [7].

A ascensão da luta de classes na década de 1960 no Chile esteve ligada a fenômenos internacionais como o Maio Francês e a Revolução Cubana. O campo se transformou, junto com a greve operária, durante o governo de Eduardo Frei Montalva, em um acelerador da luta de classes e na rápida impopularidade do projeto de reforma sob a asa do imperialismo estadunidense.

Essa unidade do social e do político a partir dessa “ascensão das massas” gerou grandes expectativas no processo eleitoral. Antes das eleições, eram formados Comitês da Unidade Popular em todo o país, onde estavam as bases dos principais partidos do bloco. Ali foi criado o programa e ficou acertado que esses órgãos seriam os organismos de base de um poder popular. Antes das eleições, os partidos da UP decidiram dissolvê-los [8]. Como já explicamos, no socialismo de Allende não existe uma visão de um povo trabalhador auto-organizado, mas sim uma concepção de atenuação da luta de classes através da institucionalização das reformas do Estado.

Embora a eleição de Allende tenha mostrado o desejo de impor a vontade popular por meio de eleições e do uso da política e do Estado capitalista, as águas por baixo não adormeceram. Pelo contrário. O relato de Corvalán ignora que dentro da UP havia ondas de lutas de classes. E que os confrontos não começaram com o mesmo golpe de setembro de 1973. Na verdade, começaram a poucos dias da eleição de Allende. Em novembro de 1970, logo após a tentativa fracassada de golpe de Viaux, os camponeses e trabalhadores em Panguipulli iniciaram a apreensão de 24 propriedades, cobrindo mais de 36.000 hectares. Sua demanda foi a expropriação imediata. Devido à força dos fatos, a grande propriedade naquela área acabou, após vários meses de intervenção. Em outubro de 1971 foi criado o Complexo Florestal Estatal. Em 1971, as fábricas Yarur e Progreso foram tomadas. Eles denunciaram o acúmulo e o boicote de seus proprietários ansiosos por estrangular a economia para acabar com o governo. Em junho de 1972, uma série de lutas locais em Cerrillos Maipú permitiu a criação de um “cordão industrial”. Exigiam a transferência para a Área de Propriedade Social porque suas empresas cumpriam as condições de monopólio e também porque seus respectivos empresários estavam deliberadamente acumulando e gerando baixa produtividade. Mais tarde, em 1972, os Cordões Industriais surgiram ao nível de Santiago e outras regiões como uma organização territorial dos trabalhadores, várias fábricas ocupadas como resultado da greve patronal de outubro, conseguindo coordenação direta com as Juntas de Abastecimento e Preços que requisitaram locais fechados e monitoraram o preço em várias cidades da capital.

Em todos esses eventos de confronto de classes, a intenção golpista da direita e do imperialismo era clara. Tentaram um golpe fracassado, organizaram um setor de mulheres na marcha que convocou o fim do governo, financiaram a greve patronal, organizaram grupos de choque para realizar ataques impunemente. E finalmente eles irromperam no golpe coordenando o alto comando das Forças Armadas. De todo modo, a classe operária e o povo resistiram a esta sucessão de “golpes” e multiplicaram sua organização para solucionar as tarefas de escassez e gestão da produção nas áreas agrícolas e manufatureiras. E ao longo dessa caminhada o papel do governo e do PC foi querer amenizar os confrontos entre as classes e fortalecer o papel do Estado. Para chegar a um acordo com a DC, foi assinado o Estatuto de Garantias, para respeitar a Constituição, para sair do problema das ocupações de fábricas, tentou-se devolver as empresas por lei aos seus antigos proprietários com o famoso plano de Prats-Millas (este último, militante do PC no governo), para demonstrar o “controle” da ordem pública, o governo promoveu a lei de controle de armas que resultou em invasões, e também foram convocados estados de sítio onde as forças repressivas controlavam o processo com autoridade. Com base em sua teoria e em seus programas, a prática política da UP e de Allende foi antes de tudo contar com o Exército e os poderes do Estado. E com isso a contrarrevolução estava escalando. Em março de 1973, o confronto entre as bases do governo e o próprio governo era claro. Uma multidão em torno do La Moneda exige que Allende feche o Congresso e imponha o poder popular [9].

1973. O ano mais revolucionário do século XX?

O tanquetaço de 29 de junho foi o ensaio de um golpe militar. Ele procurou medir as forças de resistência que o governo e suas bases poderiam ter. Foi organizado em um regimento blindado e teve apoio direto e público da direita. 400 homens com uma dúzia de veículos blindados correram para o centro de Santiago e cercaram o Ministério da Defesa. A resposta de Allende foi recorrer ao Comandante-em-Chefe do Exército, Carlos Prats. A partir desse ato, em junho, Prats perdeu o apoio de seus pares no Exército, renunciando em agosto sabendo do golpe iminente. Após a derrota do golpe de junho, o PC faz outra leitura: “os planos da direita de envolver as Forças Armadas em uma aventura partidária falharam” [10]. De acordo com sua visão de um caminho pacífico, sufocando a tentativa de demonstrar “a solidez de ‘nossas’ instituições armadas que cumpriram com patriotismo e intransigência a missão que a Constituição lhes confere”, continuaram afirmando: “os trabalhadores devem ter plena confiança nos seus soldados da pátria e respeito pela sobriedade, disciplina, honestidade e patriotismo. Aqueles que atacam as Forças Armadas são aventureiros reacionários e fascistas”.

No entanto, os trabalhadores não mostraram total confiança nas Forças Armadas, tanto é que organizaram sua resistência. Durante os primeiros dias de julho, ocorreu o movimento mais massivo de ocupações de empresas [11]. São mais de 500 ocupações em poucos dias. Em muitas assembleias, o controle da produção pelos trabalhadores é decidido pela expulsão dos controladores indicados pelo Poder Executivo. Os caminhões eram requisitados e serviam para transportar colunas de operários e adeptos do movimento. No cordão de San Joaquín, os trabalhadores de Sumar exigiram armas: “não queremos ir ao centro com o peito nu” [12]. Os Cordões foram reativados em todo o país. “Estávamos atentos e aguardando instruções” [13]. Cada fábrica tinha seu próprio comitê de vigilância que conseguia reunir escudos, capacetes, materiais, combustíveis e pedras para as barricadas. É talvez o momento mais revolucionário da história do Chile. Ou seja, onde as classes dominadas mais invadem com seus métodos de luta, desafiando o poder dos capitalistas. Durante o mês de julho, a lei de controle de armas foi a forma de dar cobertura legal a uma série de ações contrarrevolucionárias. Os locais de trabalho foram invadidos, as instalações da CUT e as instalações da esquerda foram atacadas. A população e os trabalhadores foram intimidados pela imposição das armas do Exército. Isso levou a outra greve de caminhões no final de julho. E a dinâmica da resposta dos trabalhadores foi a mesma novamente. Aumento das ocupações e maior controle da distribuição e do comércio.

O papel das Forças Armadas estava se tornando cada vez mais evidente. Como instrumento a serviço da contrarrevolução. Todos esses eventos mostram que o golpe não aconteceu de uma vez. As etapas preparatórias foram realizadas durante todo o mês de julho. A reação de Allende em agosto foi nomear mais generais como ministros de Estado, posicionando cada vez mais as Forças Armadas como fiadora da ordem. E enquanto isso, a conspiração golpista avançava por baixo. Armandio Cruces, dirigente do Cordão Industrial Vicuña Mackena, declarou com grande consciência: “Os militares no governo, como em outubro, são uma garantia para os patrões” [14]. Desde julho de 1973, a DC declarou que o governo da UP era inconstitucional por não reprimir com as Forças Armadas a auto-organização gerada a partir da ocupação de fábricas e da extensão de organizações populares como os Cordões.

No dia 4 de setembro, por ocasião do terceiro aniversário do triunfo eleitoral da UP, realizou-se na capital Santiago a maior marcha da história do século XX. Segundo registros, mais de um milhão de trabalhadores foram mobilizados. Esse impulso de lutar não teve representação política na UP. Naquele 11 de setembro, a sorte já estava lançada. No entanto, também houve vontade de resistir, como ocorre nos confrontos armados contra o Exército nas fábricas de Sumar e na população de La Legua. Havia um plano dos Cordões para abrir caminho para o centro da cidade. Apesar desta resistência heroica, não houve apelo da UP ou do PC para resistir ao golpe.

A instalação de uma Ditadura Militar sob o comando dos quatro ramos das Forças Armadas significou a repressão sangrenta contra o movimento operário e, sobretudo, sua vanguarda organizada nos cordões, sindicatos e partidos. E ela construiu um modelo econômico, político e social em benefício dos novos monopólios capitalistas. Vivemos suas consequências até hoje.

O caráter do Estado na experiência revolucionária chilena

A questão é como o caminho chileno para o socialismo proposto por Allende e a UP resistiu ao teste dos acontecimentos. Foi provada a tese de que os militares respeitariam a Constituição? As respostas a essas perguntas podem ser vistas à luz dos fatos. A oposição da DC e da direita prepararam o golpe de Estado abrindo caminho para a Ditadura Militar. Poderia ter surgido outra forma de realizar as transformações revolucionárias exigidas pelas maiorias? O que faltava para a vanguarda operária organizada nos Cordões Industriais avançar para se tornar um organismo de poder? Outra teoria, outro programa e outra estratégia era possível? Ainda não temos as respostas mais concretas sobre este assunto.

Mas as descobertas na historiografia e nas ciências sociais mostram que o caráter do Estado é alheio ao avanço das massas trabalhadoras, que corresponde a um caráter contrário às suas reivindicações. Foi confirmado o “caráter burguês” do Estado e de suas instituições, e como as Forças Armadas, sua principal instituição, e os demais Poderes Legislativo, Judiciário e até Executivo, atuam a serviço da proteção da classe dominante por meios formais e violentos [15].

Em segundo lugar, podemos afirmar formalmente que a teoria correta para o Chile, um caminho para o socialismo, deveria ser a antítese “allendista”: a estrita necessidade de destruir esse aparato estatal. A existência de organizações da classe trabalhadora com tarefas de controle local, coordenação produtiva e distribuição, permite-nos ver organismos potenciais que poderiam ter substituído aquela máquina estatal pré-existente.

Os latifundiários, os industriais, os grupos monopolistas, o imperialismo na mineração, a burguesia de Santiago ligada à política, todos eles se uniram em uma aliança de classes, devido à estagnação econômica e ao temor de que suas riquezas fossem socializadas. Para resistir ao avanço das massas. E a Ditadura reconstruiu esta classe dominante permitindo o desenvolvimento de outro ciclo capitalista, que foi finalmente completado pela Concertación e pela Direita durante os “30 anos” [os últimos 30 anos, pós Ditadura]. A experiência da Unidade Popular e os acontecimentos sociais e políticos daqueles conturbados três anos mostram antes que a burguesia não vai ceder o poder pacificamente.

O processo da classe trabalhadora mais consciente da América Latina foi interrompido. A classe trabalhadora chilena resistiu tudo o que pôde com seu instinto de classe. Somente uma leitura totalmente honesta e consciente dessa experiência revolucionária permitirá que um processo revolucionário subsequente conduza ao triunfo.


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FOOTNOTES

[1Paula Vidal Molina “La vigencia de Salvador Allende, a 50 años del triunfo de la Unidad Popular”. Em: http://www.facso.uchile.cl/pregrado/carreras/105473/paula-vidal-molina, también publicado en: https://elsiglo.cl/2020/06/26/la-vigencia-de-salvador-allende-a-50-anos-del-triunfo-de-la-unidad-popular/

[2Idem.

[3Ffrench Davis citado por: Arnaldo Pérez, “El nacimiento de la Unidad Popular”, América Latina en Movimiento, 3 de setembro de 2003 em: https://www.alainet.org/es/active/4483

[4Programa da Unidade Popular aprovado pelos partidos: comunista, socialista, radical e social-democrata, o movimento de ação popular unificado (MAPU), e a ação popular independente (API), 17 de dezembro de 1969 em Santiago de Chile. http://www.abacq.net/imagineria/frame5.htm

[5“Luis Corvalán: Las FF.AA y los comunistas deben conocerse”, Punto Final sem data: http://www.puntofinal.cl/548/luiscorvalan.htm

[6Viviana Bravo Vargas, ¡Con la razón y la fuerza, venceremos! Capítulo I: De la crisis de la política al debate teórico: el PC chileno y el difícil camino de la “rebelión popular” (1973-1986)

[7Em 1967 foram registradas 693 greves, subindo a 1127 em 1969 e a 1580 em 1970: Meller, Patricio. “Un siglo de economía política chilena (1890-1990).” Editorial Andrés Bello, Santiago, Chile, 1996, p. 111.

[8Humberto Valenzuela destaca isso em seu ensaio ‘História do movimento operário chileno’, Serie Papel Lustre Quimantu, 2008.

[9Não se tratou somente do plano econômico nacional, mas também na política externa o governo de Allende buscou negociar e atenuar o conflito com o imperialismo norte-americano: originalmente o projeto de nacionalização conseguido em 1971 era sem indenizações. Isso gerou um agravamento nas medidas de coerção e estrangulamento econômico que os Estados Unidos já impunham sobre o Chile após o triunfo da UP nas eleições, levando o governo chileno a buscar um acordo que aliviasse o bloqueio econômico do qual era alvo. Ofereceu negociar as indenizações. Houve reuniões até 1973 sem chegar a nenhum acordo. O imperialismo desde cedo havia declarado sua intenção golpista, em: ‘Las rerservadas Pascale Bonnefoy, Las reservadas negociaciones de los gobiernos de Allende y Nixon sobre la nacionalización del cobre, Estudios internacionales, Santiago’, 2013: https://scielo.conicyt.cl/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0719-37692013000200004

[10‘El Siglo’, 29 de junho de 1973.

[11Mais extenso que o de outubro de 1972 e março de 1973

[12Rigoberto Quezada, dirigente operário do PS da fábrica Sumar Poliester.

[13Assim recorda Luis Ahumada, dirigente do Cordão Vicuña Mackenna, entrevista por Frank Gaudichaurd, “Poder popular y Cordones Industriales, LOM 2004.

[14Armando Cruces, Chile Hoy, 17 agosto de 1973.

[15Juan Carlos Gómez Leyton,La frontera de la democracia: o direito de propriedade privada no Chile, 1967-1973, |julho 15, 202
Este autor a partir de outras premissas chega a mesma resolução a partir da mecânica que se seguiu o processo, mas dando muito eixo nas áreas de propriedade econômica que contraditoriamente existiram durante um curto período de tempo https://www.elclarin.cl/2020/07/15/la-frontera-de-la-democracia-el-derecho-de-propiedad-privada-en-chile-1967-1973/.
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