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SEMANÁRIO

133 anos da abolição: a luta negra entre as balas da polícia e o “antirracismo” capitalista

Flávia Telles

Renato Shakur

133 anos da abolição: a luta negra entre as balas da polícia e o “antirracismo” capitalista

Flávia Telles

Renato Shakur

A chacina policial mais letal da história do Brasil aconteceu há 10 dias, a maioria dos mortos são negros. Não é escandaloso que 133 anos depois da abolição da escravidão o racismo esteja em pleno vigor? O presidente do país é um boçal que odeia os negros, o vice é um militar que traz consigo todo o racismo da caserna, ambos falam que não existe racismo no Brasil. As outras forças do regime atuam para nossa repressão e precarização da vida, mas fazem isso sob uma cara “democrática” e as vezes até “antirracista”. Por onde ir contra os escravocratas bolsonaristas e as mentiras do capitalismo que buscam tornar inofensivas e limitar nossa luta por emancipação?

“Tudo bandido” foi o que ouvimos do vice-presidente Mourão sobre a chacina do Jacarezinho, acompanhada de “roubam, matam e destroem famílias” de Bolsonaro. Expressões de como as relações raciais andaram à direita no nosso país, no marco do aprofundamento do regime do golpe combinado com a paralisia das centrais sindicais dirigidas pelo PT e PCdoB, podemos observar um aumento da violência policial e do racismo estrutural. Claramente se mostra um novo momento do choque à direita nas relações raciais, onde não só Bolsonaro e o bolsonarismo atacam a identidade negra, mas também é acompanhado por outros setores do regime.

Atravessado pela pandemia que mata mais os negros, o aumento ostensivo da violência policial em todo o país tem sua expressão mais aguda no Rio de Janeiro de Claudio Castro, governo que já assumiu dando continuidade a política assassina do racista Witzel nas favelas, estabelecendo um novo patamar de opressão e violência. Isso se expressa no aumento em 161% do número de mortos pela polícia quando comparado com os dois últimos meses do ano passado, levando ao número de 10 chacinas no estado, um recorde histórico de chacinas.

O aumento da violência policial também veio acompanhada do aumento da brutalidade racista das torturas e mortes em supermercados. O Ricoy, Carrefour e o caso mais recente do tio e sobrinho torturados e mortos pelo tráfico por roubar carne no supermercado Atakarejo na Bahia, mostram por um lado a miséria do capitalismo em crise: mortos por roubar comida. E por outro, que no Brasil de Bolsonaro e do “tudo bandido” de Mourão, está permitido o sadismo escravocrata que sufoca, tortura e mata os negros.

São expressões de uma mesma ideologia que determina quem merece viver e quem pode ser exterminado da sociedade. Quem merece viver que siga um padrão do que eles determinam que seja o “povo brasileiro”, como diria o já esquecido Weintraub. Isso também é expressão desse “choque à direita nas relações raciais”, porque reafirma a tese da democracia racial, de que “no Brasil não existe racismo” como disse Mourão, mas ao mesmo tempo atacam a identidade negra e suas manifestações culturais, a luta por direitos dos trabalhadores, o movimento negro e quilombola e tentam os submeter a um “novo normal” de mortes pela polícia, covid, fome e desemprego.

Mas o sadismo escravocrata dessa extrema direita está atravessada por mais de uma década de crise capitalista que se coloca num mundo pandêmico e onde se aceleram todas as crises. E assim como há 133 anos a abolição da escravidão no Brasil foi obra das revoltas e levantes negros, hoje também o enfrentamento ao racismo e as consequências da crise econômica se fez representada pela luta negra do “Black Lives Matter” (BLM) por justiça a George Floyd, vítima da brutal violência policial nos EUA.

O BLM estremeceu tudo, abalou a estrutura racial do EUA e do mundo, vimos com ele mobilizações históricas que unificaram negros e brancos contra o racismo, que chegaram a questionar a existência da polícia enquanto instituição racista, levantar a demanda pela sua abolição e exigir a expulsão dos policiais dos sindicatos. O BLM chegou até os bastiões da classe trabalhadora, fazendo os motoristas de ônibus em Nova York não transportar os manifestantes detidos pela polícia, trabalhadores paralisarem em empresas e fábricas por 8 minutos e 46 segundos em que Floyd ficou sufocado, e abriu espaço a lutas e organizações de trabalhadores pela sua sindicalização, como na Amazon e nas greves dos mineiros, atingindo o mundo inteiro.

Foi um grande alerta à burguesia internacional de que com os negros é preciso ter cuidado, porque assim como as mulheres, quando se levantam atingem fortemente a classe trabalhadora, que em países como o Brasil é majoritariamente negra. Por isso, assim como em outros momentos de luta mais aguda dos negros, - como na luta por direitos civis nos EUA, e nos momentos de mais ofensiva capitalista, como em todo período da restauração burguesa pós fim da URSS - foi preciso que o capitalismo aumentasse o tom das expressões “antirracistas” no seu interior, ou seja, a burguesia precisou forjar suas formas de cooptação da identidade negra como forma de tornar inofensiva nossa luta e retirar seu potencial explosivo de se ligar a classe trabalhadora, Kamala Harris é a expressão disso. Esse processo está a todo vapor e ainda não foi decidido.

Isso é o que explica o “Blackout” das empresas, em que grandes multinacionais colocaram um quadrado preto nas suas redes sociais para se ligar ao Black Lives Matter, fazendo existir uma certa ofensiva empresarial internacional em relação à questão racial. É o que explica no Brasil o que vem promovendo a Globo, Uber, Magazine Luiza, Ifood, Nubank, com seus programas de captação de negros para cargos de chefia e com programas como o BBB que pauta fortemente a questão racial. Além disso, vemos discursos contra o racismo até mesmo em setores que se colocam como “oposição” a Bolsonaro, que na realidade expressam ser contra os “excessos” da opressão contra os negros, mas no fundo atuam para que se perpetue e aprofunde o racismo no país levando à frente a “guerra às drogas”, o encarceramento em massa da população negra e as operações policiais, como o STF, a própria Globo e governadores como Doria e Rui Costa.

Parecem mundos opostos, de um lado a sanha escravocrata, alimentada pela própria burguesia mundialmente e onde os negros são os que mais sentem a crise econômica e sanitária, de outro empresas colocando máscaras de antirracista e a mídia tradicional tentando “representar” os negros. Mas não é, é um mesmo mundo capitalista, que precisa existir sob forte repressão aos negros, utilizando a polícia e todas forças repressivas para calar os gritos de revolta, como vimos em Jacarezinho, mas também sob forte cooptação para tentar tornar inofensivo as demandas negras. Portanto, ao mesmo tempo que esse antirracismo de mercado é uma expressão direta da nossa luta, porque não existiria se não fosse por levantes como o BLM, por outro é uma expressão completamente invertida, porque existe para dizer: “é possível ser antirracista e não ir contra o capitalismo, acalmem-se”.

Mas não é assim. Enquanto empresas como a Uber hoje está promovendo por aí propagandas com seu “manifesto contra o racismo”, dizendo que se você é racista a Uber não é para você, a verdade é que essa empresa é a que fez inaugurar o termo “uberização” do trabalho, como uma expressão de um novo nível de exploração do trabalho baseado numa expropriação profunda de qualquer regulamentação de direitos e numa “autogestão” do trabalho aliado a tecnologia, que esconde os patrões e amplia a exploração, sobretudo dos negros.

Pesquisa do Observatório do trabalho precário e da reestruturação produtiva sobre os entregadores de app, incluindo ai o UberEats e os demais, que participaram da maior paralisação de entregadores no ano passado, mostrou que a esmagadora maioria é de negros, representando 67% dos entrevistados, 59% ganhava em torno de 2 salários mínimos e 77% dos entrevistados trabalhavam mais de 10 horas por dia, isso tudo sem nenhum direito trabalhista e nem mesmo equipamentos básicos de segurança sanitária em meio a pandemia.

A Uber pode fazer seus manifestos antirracistas, mas nunca vai conseguir esconder que é sobre a brutal exploração do trabalho dos negros que ela se mantém. A essa separação com conteúdo de classe, podemos somar também o papel das direções dos sindicatos de trabalhadores, como o próprio PT, que não levantam demandas mínimas, como a igualdade salarial entre negros e brancos e homens e mulheres, e não chamam os trabalhadores a se unificar ao movimento negro e suas demandas, como vimos nos atos recentes por justiça as famílias do Jacarezinho, além de ter cumprido, quando era governo, o papel de ampliar as forças repressivas com as UPP’s e a ocupação militar no Haiti. Uma separação que muitas vezes conta com aval das direções do próprio movimento negro.

No seu manifesto da Uber ela também diz que reuniu especialistas sobre o racismo, no nosso país também é possível ver a expressão dessa tentativa de esvaziamento e separação da luta negra com a luta de classes do ponto de vista da produção intelectual, esse é um dos debates que fazemos com o livro “Mulheres Negras e Marxismo” das Edições Iskra. Em meio a força da luta negra, que está mais viva do que nunca, existem armadilhas no caminho para desviá-la da classe trabalhadora, um exemplo é a própria Djamila Ribeiro, reconhecida intelectual negra no Brasil, que além de não ver nenhum problema em fazer propagandas desses aplicativos, ainda diretamente produz “dicas” de como as empresas serem antirracistas, como é a expressão do seu “Pequeno Manual Antirracista”.

Por isso, não são dois mundos separados o do sadismo escravocrata bolsonarista e esse outro da tentativa de cooptação capitalista. Ambos fazem parte desse mesmo mundo capitalista, que foi erguido com sangue negro escravizado, que hoje se encontra em crise e que precisa se sustentar com o nível de exploração que o racismo pode proporcionar, naturalizando condições miseráveis de trabalho e de vida dos negros e negras. Nossa resposta não pode ser outra senão a unificação da luta negra e da luta de classes, desde já e não esperando 2022, levantar fortemente as demandas negras com uma fronteira de classe que nos separe de todas essas tentativas empresariais e capitalistas de nos controlar.

É por isso que nós do Quilombo Vermelho buscamos promover diversas iniciativas nesse sentido. Nossa intervenção nos recentes atos por justiça ao Jacarezinho levou a ideia de que a classe trabalhadora e a juventude precisavam levar essa luta em suas mãos, por isso exigimos que as centrais organizem os trabalhadores nos locais de trabalho e defendam as demandas negras. Também defendemos que não é possível ter nenhuma ilusão de que a polícia, como órgão repressor do Estado capitalista, possa ser reformada, fazendo esse debate com setores da esquerda como o PSOL que insistem em levantar a ideia de uma polícia mais humanizada e assim mostrando suas ilusões no próprio Estado. Também não achamos que essa mesma polícia possa ser controlada pela sociedade como defende setores do movimento negro, ela atende exclusivamente os interesses do capital, quem a controla é a burguesia.

Abrimos o nosso diário às mães que lutam por justiça, como Mirtes, mãe do menino Miguel, e para amplificar todas as denúncias de racismo. No curso “Mulheres Negras e Marxismo” com Letícia Parkse no livro de mesmo nome, em nossas elaborações do Esquerda Diário, como o Dossiê 13 de maio, nessa edição do Suplemento Teórico Ideias de Esquerda, e no podcast “Feminismo e Marxismo” também buscamos mostrar que o marxismo é uma ferramenta imprescindível para unificar o conteúdo de raça e classe e servir para nossa ação. Chamamos todos que também compartilham dessas ideias a conhecer e ampliar essa perspectiva se somando a nós nessa batalha imprescindível para a luta anticapitalista e antirracista.

Há 133 anos de abolição da escravidão no Brasil se faz presente Jacarezinho e o luto de tantas mães negras, se faz presente as mentiras demagógicas do capitalismo e da conciliação de classes. Mas também se faz presente mais uma vez o fato de que, assim como mostrou o BLM, os negros estão de cabeça erguida e podem ser, junto a classe trabalhadora, decisivos no enfrentamento a Bolsonaro, Mourão, o regime golpista e todo o sistema capitalista. Como disse C.L.R. James em 1939 quando se referia as greves de trabalhadores da General Motors, “em uma escala nacional e internacional, os milhões de negros erguerão suas cabeças, deixarão de estar ajoelhados, e escreverão alguns dos mais massivos e brilhantes capítulos da história do socialismo revolucionário.”


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Flávia Telles

Renato Shakur

Estudante de ciências sociais da UFPE e doutorando em história da UFF
Estudante de ciências sociais da UFPE e doutorando em história da UFF
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