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MULHERES NA CIÊNCIA
Porque não tiro meu batom vermelho na Física
Nathalia Aprile - doutoranda em Física Teórica na USP

Ser feminina é característica que a sociedade dirigida pelo patriarcado espera e define pra uma mulher. Mas não para a mulher que faz física, não se define isso lá, porque não se define e nem se espera, ainda hoje, que uma mulher faça física.

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Outro dia gravei um vídeo sobre física e estava maquiada, usando batom vermelho, um cara entrou no meu canal, disse que gostou do vídeo, mas reclamou por eu estar maquiada. Certamente pra ele o meu intelecto está inversamente ligado à quantidade de base em meu rosto... O fato é que não é só pra ele, mas pra maioria das pessoas existe (e resiste) uma cultura que separa ainda o que nós mulheres podemos ser, fazer, dizer e usar. Nessa cultura tem uma série de padrões com os quais você mulher deve lidar e caso você decida ir na contramão, então, espera, que têm mais um monte de pode e não pode pra você! Essa cultura chama machismo e é preciso falar sobre ela muito, em muitos aspectos distintos inclusive, mas hoje vamos falar sobre essa cultura num ambiente pouco comentado, o curso de física.

Ser feminina é característica que a sociedade dirigida pelo patriarcado espera e define pra uma mulher. Mas não para a mulher que faz física, não se define isso lá, porque não se define e nem se espera, ainda hoje, que uma mulher faça física. Segundo SANDRA MARIA CARLOS CARTAXO defensora da dissertação GÊNERO E CIÊNCIA: UM ESTUDO SOBRE AS MULHERES NA FÍSICA - UNICAMP-2012: "O estereótipo de um cientista na área da Física é associado predominantemente à imagem masculina. Esse estereótipo transmitido de geração em geração pela sociedade acaba por afastar as mulheres desta área. Nesta visão, os físicos (quase sempre homens) passam grande parte de suas vidas estudando em laboratórios, sem tempo para a família, o que seria entendido culturalmente como uma carreira imprópria para as mulheres, que deveriam se dedicar à família, ter filhos, etc. Essa imagem pouco atraente da Física é alimentada entre as mulheres por seus familiares e pela sociedade logo que elas começam a se interessar pela área."

Quando eu estava no meu primeiro ano de física, logo no comecinho, ouvia piadinhas do tipo: “Você veio pra cá pra arrumar marido, neh”?! - A maioria vai dizer: “Nossa Marissol, isso é brincadeira, como você é dramática”! – Mas,vejamos, eu nunca vi ninguém brincando com um cara que decidiu fazer física, que ele foi pra lá pra arrumar uma esposa?! Eu adolescente insegura de mim mesma, toda vez que me arrumava, passava maquiagem, esmaltes, brincos, tinha de ouvir piadinhas do tipo da acima. A ideia formada era que não estava ali pra estudar e não bastasse quanto me esforçasse isso nunca seria visto.

Uma vez fiz um exercício de cálculo sozinha, uma integral cabulosa e fui discutir com um grupo de meninos da sala. Eles simplesmente, num consenso geral, decidiram que o exercício estava errado, já que a resposta não era igual a deles e eu uma mulher não ia dar conta de ter feito melhor que cinco cara, neh?! Mal tive como argumentar... O fato é que eles não tinham se antenado ao que eu já tinha percebido, de que ambas as respostas eram equivalentes, já que as funções inversas hiperbólicas e os logaritmos neperianos são unha e carne em representações. Eu fiz questão de mostrar meu argumento assim que o professor adentrou a sala, que não só mostrou que eu sabia da equivalência naquela situação como também havia acertado a questão. .. Eu sempre argumentei, porque se calar nessas situações nunca foi visão que achei correta. Não era pra me mostrar, não era disputa, eu queria só ter tido a chance de explicar, ter tido o espaço pra discussão, mas eu mulher contra cinco homens não tinha valor. Eu percebi isso rápido. Eu sempre pensava: se fosse um homem ia ser diferente, uma infinidade de situações.

A questão aqui é: como lutar por uma imagem da mulher no curso de física se ainda não somos número expressivo que consegue de fato ser representado? Agora a pouco é que começamos a ganhar espaço e esse espaço ainda é pouco. Agora a pouco é que conseguimos coletivos, organizações e sermos ouvidas, agora a pouco é que passou a preocupar alguns; agora a pouco.

Ainda na dissertação da SANDRA M. C. CARTAXO acima, ela afirma: "Dresselhaus, Franz e Clark (1994) apresentaram dados da participação feminina na Física em vários países com o objetivo de chamar atenção para essa realidade e suscitar a discussão para ações que permitam um aumento da participação das mulheres na área. Nesses encontros, as principais razões apontadas estão relacionadas às dificuldades em conciliar a carreira profissional com a vida pessoal (principalmente familiar, quando se tornam mães), à discriminação no ambiente de trabalho, ao isolamento profissional e à pequena representatividade das mulheres em todos os níveis de decisão (FEDER, 2002; CECI, WILLIAMS, 2010; VELHO, LEON, 1998)." Aqui, não é ser feminina ou não, usar batom vermelho ou não, que importa. Importa o tipo de mulher que se deve ser pra ser aceita no curso de física: nenhum tipo. Lá você precisa ser homem! Quanto mais máscula você for mais será: "Ok, essa mina é a mais foda da minas!" Eu não querer ser a mais foda, eu quero ser respeitada como qualquer um disposto a aprender e a buscar por tal. Não quero um bilhete de "te deixamos fazer física, garota". Eu quero fazer física e pronto, porque é meu direito e de uma infinidade de outras mulheres.

Isso é desconcertante, porque quando se entra nessa questão da estética ninguém para pra pensar sua relação com, por exemplo, usar maquiagem. Eu fui uma adolescente com baixa autoestima, me sentia um patinho feio, a maquiagem foi uma das coisas mais empoderadoras que encontrei. Antes queria fazer plásticas no nariz gordinho, escondia o cabelo encaracolado, e não sorria por causa dos dentes tortos. A maquiagem veio como catalisador para me mostrar o quanto sou bela e o quanto os padrões são bobagens, foi usando ela que percebi o machismo por de trás das minha inseguranças de autoestima, usar batom vermelho com meus dentes tortinhos é total libertação e eu adoro!

Meu intelecto não tem ligação alguma com qualquer adereço ou a ausência dele em mim e nem em qualquer mulher. Sabe quanto usar make ou não, esmalte ou não, seguir tendências e moda ou não, arrotar ou não, cuspir ou não, falar palavrão ou não, ser bela, recatada e do lar ou não, influencia no quanto uma mulher saber física???? Zero! Lê aí de novo: Zero!! Ela sabe o quanto ela estuda e, cara, pode apostar, ela estuda!

E não é nada fácil pra ela estudar, tem uma série de fatores que não tem preparo ainda pra ela enfrentar. Dizer que vai fazer física pra família é ver todo mundo decepcionado com você, o curso já tem tabus por si só (tema pra outros debates), mas ser mulher e querer seguir isso é causar um mini-infarto no seu pai, que não sonhou isso pra você, é se achar diferente de todas as meninas da sua idade e não entender o porquê, é entrar no curso e se achar constantemente fora da caixa. É chegar perto dos trinta e ter pânico de pensar em conciliar filhos, família e carreira. É querer que seus tios te perguntem daquele congresso mara que você foi, ou do seu projeto e andamento, mas ao invés ouvir : "Quando é que vai casar? E o namorado?? Tá solteira?"..

Segundo o texto, (...) "As dificuldades [enfrentadas pelas mulheres na carreira de física] estão normalmente relacionadas e são consequência do esforço feminino em desenvolver uma carreira seguindo um “modelo masculino”. A esse respeito Löwy (2000) salientou como essa busca se reflete: Assim, uma mulher que quer tornar-se “um homem de ciências” deve fazer um esforço suplementar de assimilação e de autotransformação. Em consequência disso, e mesmo na ausência de discriminação direta, para atingir o mesmo nível de desempenho que um homem, uma mulher deve possuir de início “um excesso” de capacidades. Ao mesmo tempo, o processo de entrada das mulheres no papel de “homens honoríficos” afasta-as da vivência de mulheres “comuns” e, portanto, dos ganhos que podem estar ligados a essa vivência. (LÖWY, 2000, p.27–28)."

O machismo no curso é ensurdecedor, emudece e corrói..não está só nos colegas, está nas colegas, está nos professores, as professoras, está na sociedade a volta. Lugar de mulher é aonde ela quiser, eu e muitos queremos física, merecemos física, vivemos física, sonhamos física, todo dia, porque é nossa também, porque devia ser de todos.

A história está cheia de fatos injustos, nobel roubados, salários não pagos, espaços esquecidos. Organizemo-nos, debatemos, mudemos!

Espero que se você mulher que lê esse texto e se sente motivada a buscar a física, que se inspire mais e mais a este caminho, tenho certeza que seremos muitas chefiando pesquisas, laboratórios, conselhos, bolsas e cargos importantes. E, se tiver vontade use, fique..não tire seu batom vermelho!

Para quem quiser ter mais informação e ler a dissertação discutida acima, é só clicar aqui

Marissol

Publicado originalmente aqui

 
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