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OPINIÃO
MICHAEL HANEKE OU DO AMOR IMPLACÁVEL. NOTAS
Romero Venâncio
Aracajú (SE)

Pode um ato de violência ser um ato de amor em sua plenitude? Pergunta aparentemente paradoxal, mas que para um diretor como Michael Haneke pode ser afirmativa. E ele nos faz pensar assim ao final de seu mais recente e genial filme.

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No Amor, ao contrário, o amante quer ser o mundo inteiro para o amado:
significa que se coloca do lado do mundo; é ele que resume e simboliza o mundo,
é um isto que encerra todos os outros istos”.

(Jean-Paul Sartre. In: O Ser e o Nada)

Nunca esqueçamos: estamos diante de uma obra de arte e não de um conselho psíquico-religioso. Assim fica mais interessante entender o que pretende o diretor austríaco. O enredo é muito “simples” (como se isso fosse possível nos filmes de Haneke!): Alguns meses na vida de um casal de idosos, George e Anne, dois professores de música aposentados que moram sozinhos em um apartamento confortável em Paris. Mas já saibamos de entrada que o diretor é capaz de nos possibilitar ver uma quantidade impressionante de emoções retiradas de um relacionamento em seu ocaso. Duas vidas aparentemente normais e com pouco significado para alguma coisa grandiosa se tornam singulares diante da câmara de Haneke. E mais (acredito ser o mais importante em Haneke): não há conversa jogada fora, não imagens ornamentais.

Tudo é essencial, concreto, necessário… E cruel. Com diálogos precisos e lacunares, temos o desenrolar do mais importante no filme: a vida é essencialmente violenta quando somos desde o início jogados no mundo e ao mesmo tempo caminhamos para um fim inevitável e onde o amor tem as marcas dessa violência para a sua realização. Haneke destrói essa visão relambida e tola do sentimento amoroso e o coloca no núcleo da crueldade mundana. Só por isso, o filme é assombroso e sublime.

O filme é cruel. Haneke chegou a ser chamado de “cineasta da crueldade” (talvez distante do sentido emprestado por Bazin a esse termo) por filmes duros como “Violência gratuita”, “Professora de piano” e “Fita branca”. Vemos nessas películas o desenrolar de personagens que praticam atos violentos consigo mesmo ou com os outros sem muita explicação ou justificação.

No mais recente “Amor”, não há nem indivíduos claramente cruéis ou mesmos gestos que indiquem tal crueldade (salvo o ato de George para com Anne no “claro” intuito de realizar um amor). Cruel é a vida, com seu ciclo implacável de envelhecimento e morte e num mundo o qual não pedimos para vir. A crueldade já está instalada em nós e qualquer ato posterior, é consequência desse ato primeiro de ser algo jogado no mundo e caminhando inexoravelmente para o fim, trágico, triste e, na maioria das vezes, doloroso e humilhante (como no filme).

O filme é duro. Aqui temos uma metáfora na palavra duro para afirmarmos que somos colocados diante de algo quase insuportável de ver. O duro no filme é termos que ver no seu mais prosaico cotidiano uma vida definhando no seu “ciclo natural” que pode ser o meu, o seu ou de qualquer ser humano. Somos levados e ver (e nos colocar diante daquilo como se fosse conosco) o significado de uma vida quando surgem os primeiros sinais da degenerescência física e mental e a situação de um outro que está completamente só para cuidar e ser levado ao limite de sua resistência e de seus valores.

Não se trata de uma “obrigação moral” (com alguém que me colocou no mundo, como mãe e pai), mas de uma de uma relação contraída gratuita e amorosamente por um percurso de anos a fio. Talvez esteja aqui a explicação para o título: há algo mais que está em jogo, há um grande afeto que fica no final, há um “amor” entre as partes envolvidas e que só pode ser realizado por um ato violento decisivo e radical. Seria, o amor, esse sentimento que suporta o fardo pela gratuidade de como foi contraído/vivido ao longo dos anos? Talvez. Em Haneke devemos saber que esse sentimento amoroso pode se realizar num ato brutal e ainda ser amor (e o que é pior, ser pleno nesse ato).

O filme é bom. Nesse quesito, ser bom enquanto cinema é ser um filme que nos faz pensar e sentir ao mesmo tempo em situações radicais em que a vida coloca e que em nada estaria distante da nossa própria vida. A arte teria uma capacidade antecipatória sem se antecipar a nada. Estaria nessa capacidade (que o cinema encena/mostra) a possibilidade de reflexão e sinceridade com nós mesmos.

Se somos jogados cruelmente no mundo sem explicação (aqui deixo de fora as “piruetas conceituais” das teologias e religiões), temos a possibilidade de encontrarmos artifícios em nós mesmos para resistir e sobreviver sem muito engano. O amor seria um desses artifícios, sendo “fogo que arde sem se ver”, é também ato que se faz por merecer. Por isso o filme de Haneke é tão bom. No mundo da futilidade e do Capital, o amor pode ser violento e generoso, sem máscaras ou pieguismos.

 
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