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O que acontece quando usamos “X” e “E” para não definir o gênero.
Lucia Battisti Lo Bianca, Conselheira Diretiva Maioria Estudantil | Filosofia e Letra/Universidade de Buenos Aires

“A linguagem é fascista” diz Barthes. Alguns dirão que é por esse motivo que a linguagem deve ser questionada. Seria um pecado o reducionismo linguístico? E se o combate não ocorre apenas no campo do idioma?

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Tradução adaptada do espanhol por: Cassius Vinicius
LINK LID - Argentina: http://www.laizquierdadiario.com/Que-pasa-cuando-hablamos-con-X-y-con-E

*[Nota do tradutor]: Esse artigo é uma tradução e adaptação cultural do texto fonte em espanhol publicado por La Izquierda Diario que trata do idioma castelhano (espanhol). Pelo fato do espanhol e do português serem línguas irmãs e com maior grau de afinidade é que optei por substituir a palavra “espanhol” por “português” no texto a seguir, já que os exemplos gramaticais citados podem ser atribuídos tanto para o primeiro quanto para o segundo. Outra adaptação foi a alteração de Real Academia Española pela instituição equivalente no Brasil, a Academia Brasileira de Letras. Boa leitura.

To falando chinês? Veremos que não é assim tão complicado

Com base no pensamento comum de que uma língua é uma convenção social, vamos começar definindo que no português, diferente do inglês, por exemplo, a marca de gênero e número existe em determinada classe de palavras (substantivos, adjetivos e pronomes): masculino-feminino e singular-plural, respectivamente. A vogal temática de “cachorro” é a letra “O” no final da palavra, que indica, neste caso, o gênero e o número: masculino singular. Pois bem, vejamos outros exemplos: bela (adjetivo feminino singular), funcionários (substantivo masculino plural), e assim por diante. Uma vez já introduzido na matéria, o leitor já pode ter ideia para onde estamos sendo direcionados. Bem. Mas façamos um esforço e uma reflexão metatextual.

Isso é, vamos voltar imediatamente a uma das palavras mencionadas acima. Ao escrever a sentença anterior usamos a grafia “direcionados” e não “direcionadXs”, nem “direcionadEs”, nem direcionad@s. Mas, por que? Se o leitor ainda tiver vontade de continuar lendo, a seguir argumentaremos detalhadamente e com alarde o âmago dessa questão.

Discursivamente progressivo, socialmente insuficiente

Vamos por partes, exemplos como os mencionados mais acima abundam na maneira de utilizar a língua e de se comunicar entre as pessoas. Porém, isso não ocorre entre todas as pessoas. Nem todo mundo usa tal forma de se referir a algo, englobando genericamente através do uso da letra “X”, “E” ou do arroba, para evitar a especificação por gêneros (como o fazia a presidente deposta, Dilma Rousseff ao dizer “todos e todas/brasileiros e brasileiras”) ou para simplesmente evitar generalizar através do masculino (que é o gênero não marcado, como dita a norma do português: mas claro, porque a norma é assim, certo? O que se faz então é subvertê-la). Pois bem, não serei eu quem dirá o contrario e não defenderei a unhas e dentes a Academia Brasileira de Letras. Longe disso.

No entanto, temos que lidar com esse fato. E cada vez que nos cospem termos destorcido dessa maneira, conscientemente estamos diante de um problema difícil, uma disjuntiva interessante: a urgente necessidade de se fazer uma escolha. Mas seja qual for a escolha, o individuo será acusado de ser pós-moderno ou pós-moderna ou de ser mais ou menos machista, ou mais ou menos feminista. Ou até dirão que o individuo está tolerando os adjetivos e substantivos no masculino com muita relutância; ou ao contrario, deixando prevalecer a intolerância e inúmeros etcéteras de situações discursiva, social e politicamente incômodas.

A linguista María Victoria Escandell Vidal descreve esse “fenômeno” e diz: “A linguagem ‘politicamente correta’ está se convertendo em uma forma de prescrição linguística, que para muitos falantes vai de contra com seu uso espontâneo da língua, impondo modos de expressão quase sempre forçados por um suposto respeito e uma atitude tolerante [...] pode acabar se convertendo em um tipo de inquisição, pois limitam a liberdade de dizer as coisas”.

Enfim, podemos começar diferenciando algumas pequenas coisas da superfície que nos permitam depois adentrar a origem. Esse tipo de uso da língua não é algo que poderia se considerar “geral”. Para começar, é um fenômeno relativamente recente, muito comum nas redes sociais e está entre o que vou escolher para denominar como “juventude com um relativo grau de “culturizacão” mais ou menos progressista”. Cabe destacar um fato significativo: só se pode “falar” dessa maneira, a medida que a fala é escrita.

Quando se lê “todxs” em voz alta – e você acabou de fazer isso ao ler – significa que, a palavra escrita torna-se oral, e por isso o falante se vê obrigado a tomar uma decisão de como pronunciar aquilo que é impronunciável, se tiver que se ater a escrita. Ainda mais porque a letra “X” em português possui quatro fonemas e tem a particularidade de abarcar dos fonemas (sons) em um mesmo grafema (letra), ou seja, “KS”. Observe o som da letra “X” nas seguintes palavras: exame [z], excesso [s], xícara [ ʃ ], complexo [ks]. E exatamente para evitar que isso aconteça ou para solucionar o problema da pronunciação é que de uns tempos para cá, aqueles que se atrevem a “radicalizar” ainda mais sua posição com respeito a norma linguística, empregam a vogal “E” como “vogal temática” não sexista, ou seja neutra. A priori, se o objetivo é generalizar, o uso citado torna-se algo problemático. Para simplificar: a vogal “E” também corresponde a palavras do gênero masculino em certos casos como, por exemplo, na palavra “governadores”.

Como vemos, a utilização da letras “X” e “E” e do arroba para substituir as vogais temáticas dos substantivos, adjetivos e pronomes que existem em nosso idioma (como marca explícita de gênero) é uma maneira de evitar que a linguagem ou que nossas expressões estejam carregadas de sexismo e, por isso se opta por apresentar uma alternativa à norma dominante do gênero binário masculino-feminino que, além disso se propõe a superar tal dicotomia para incluir outras identidades genéricas. Para exemplificar, se alguém nos diz “houve muitos convidados”, dificilmente pensaríamos que os convidados eram apenas homens, mas entende-se que o masculino poder valer para contemplar também as mulheres que foram convidadas.

Nessas circunstâncias, de um modo ou de outro haveria que enfatizar um ponto sobre a questão das vogais temáticas. Elas existem no português e em outras línguas românicas como no espanhol, precisamente porque derivam do latim. O mesmo não acontece com as línguas saxônicas, como é o caso do inglês, mas não é por isso que podemos concluir que se trata de um idioma não-sexista. Embora exista a falta de obrigatoriedade em atribuir gênero aos substantivos, adjetivos e pronomes, diante dessas disjuntivas sócio-discursivas torna-se um ponto de apoio (por exemplo, o adjetivo “Nice” em inglês pode significar “simpático/simpática” de maneira indistinta).

Mas não podemos esquecer o plano da semântica, isto é, do sentido (significado), onde se abarcam realmente as cargas mais ou menos axiológicas (valorativas) da língua, independente da existência de vogais temáticas – que podem ou não complicar ainda mais as coisas –. Por exemplo, é uma convenção generalizada dizer genericamente “o homem” para se referir ao gênero humano ou a humanidade, tanto em inglês como em português ou espanhol.

Resumindo, seria incorreto dizer que o problema da língua sexista limita-se apenas ao português por possuir vogais temáticas que designam o gênero das palavras, enquanto para o inglês isso não se aplicaria, pois não possui essas vogais temáticas. Para isso então, bastaria mudar a letra “A” e a letra “O” por um “X” e pronto. Precisamente, em nosso idioma também existem palavras que carecem de vogais temáticas e ainda assim possuem marca de gênero.

Então, o sexismo nas línguas não é exclusiva das vogais temáticas, pois se baseia na utilização e apropriação dos falantes e das instituições sociais através das quais circulam.

Não haverá outra língua, se não houver primeiro outra sociedade

Não obstante, continuamos diante de um caso complexo que é necessário problematizar. De acordo com o lingüista russo Mijaíl Bajtín, podemos vislumbrar algum tipo de explicação mais ou menos bem sucedida sobre o porquê de existir um “gênero dominante” sobre o outro e que está incluído necessariamente e implicitamente. É esse lingüista russo que discorre em sua teoria marxista sobre a linguagem elevando o signo lingüístico (como definiu Ferdinand de Saussure). Isto é, a palavra como expressão ideológica, carregada de ideologia. Em outros termos, como expressão cultural (superestrutural) da sociedade da qual se desprende e que a utiliza. E por isso, não é “neutra” no que diz respeito aos valores que circulam na lama social, mas que é atravessada por esses mesmo valores. Em um texto assinado por Valentin Voloshinov, um de seus discípulos, Bajtín formula a frase bem conhecida “o signo lingüístico será a arena da luta de classes”.

O que o autor quis dizer com isso? Primeiro, a língua é política e por isso configura uma disputa. E é por essa razão que a língua está cheia de contradições que coexistem e convivem, sendo milhões de falantes proferindo um idioma. Ao mesmo tempo que – seguindo o pensamento de Bajtín – a classe social dominante, procura impor uma língua, ou seja, os valores dos quais a palavra está carregada e se aproveita de instituições como a Academia Brasileira de Letras que desprezam certas formas e legitimam outras, etc. Nesse caso a dominação linguística é um subproduto da dominação social.

É justamente por isso que podemos reconhecer corretamente a língua que hoje em dia se apresenta como sexista – seja o idioma que for, não é exclusivo do português –, sendo o gênero masculino o que se pretende impor como “dominante” ou generalizador. A língua se desprende e cria uma cosmovisão de uma sociedade que é patriarcal desde suas primeiras e mais profundas bases, porém nela também convivem usos e gestos que politicamente questionam a norma e o consenso geral; procuram discutir e almejam superar esse sexismo. Mas há um risco, cabe nos perguntarmos então: pretende-se convertê-la em norma? Não seria isso a expressão própria de uma contradição? Ser legitimados e amplamente aceitados não iria de contra o fundamento de seu surgimento, com sua essência disruptiva? Até que ponto se pode chegar ao radicalizar o questionamento no campo da língua?

Mas existe algo muito mais interessante e produtivo que podemos tirar proveito do aforismo bajtiniano. É precisamente o que responde ao problema das letras “X” e “E” e o arroba. O que Bajtín destaca é a ligação necessária e originaria que a linguagem tem com as bases sociais das quais se desprende e através das quais circula. É por essa razão que, se essas bases não forem modificadas, jamais poderia haver um efeito duradouro e nem seria radical qualquer mudança que se pretenda fazer no campo estritamente lingüístico.

Aí reside o perigo de mudar o campo de batalha, que foi aquela mudança que se pretendia fazer a partir do que se chamou de giro lingüístico na década de 1980 e 1990. Hipoteticamente, podemos apostar numa mudança radical da língua, mas isso não necessariamente mudará a vida nem as condições materiais das pessoas que a falam.

Não é a língua que transformará a vida e emancipará os sujeitos, mas o contrario, é primeiro a mudança da organização social que despojará e libertará a língua de seus sentidos reacionários.

 
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