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CULTURA
Pintas
Gabriel Góes
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Ela acordou e imediatamente julgou que acordar seria um péssimo jeito de começar o dia num texto. Ela despertou e junto dela todas as suas manias de palavra certa. Todas as suas poesias guardadas na cabeceira do não-feito estavam coçando na gaveta das suas ideias ridículas. Ridiculamente complexas pra serem escritas numa manhã despertada de forma tão banal, mas também muito enluaradas para serem simplesmente desamanhecidas.

Sentia um frio na barriga, mas achou que não era nada especial já que essa sensação se estendia por quase todo o corpo. Sentia que tinham várias janelas abertas ao longo dos seus ossos e através delas ventava tanto, mas tanto, que trazia tudo que estava fora pra dentro da menina.

Depois disso ela se cobriu de perguntas e se aqueceu nas respostas sem respostas. A pergunta mais quentinha, aquela que foi capaz até de aquecer seu pé, era assim: Será que cabe eu inteira dentro de alguém que eu amo e nunca vi? Ficou animada em pensar no espaço dessa pessoa que precisaria ter um contorno todo meio quebrado pra ter o formato das nuvens que ela carregava no olho.

Ela estava decididamente acordada e pronta para encontrar essa pessoa que seria facilmente reconhecida. De um lado ela seria meio de aquarela e as bochechas todas pintadas de pintas amarelas. Do outro seria de água que chove pra cima e uns barcos navegariam cada gota. O horizonte seria sua boca e o peito seria de travesseiro. Suas pernas seriam de ponteiro de relógio capazes de fazer o tempo passar mais lento e seus pés seriam de curiosidade, sempre encontrando bons lugares.

"Não se vê alguém assim todo dia" ela pensou em voz alta.

Se equipou de tudo que era pertinente para procurá-lo: calçou acaso nos pés; colocou o passado dentro de um envelope e guardou no peito; colocou uma blusa invisível porque sabia que a pessoa a ser encontrada teria um estoque de blusas infinitas; botou um óculos de escuridão máxima e vestiu seu cheiro de encontro aberto. Deixou suas expectativas saírem de sua casa antes dela e depois, logo em seguida, ela que saiu.

Na calçada viu rastros de tinta amarela, mas era só a parede da casa vizinha que estava chorando sua cor nova. Mais pra dentro da cidade, no quintal de uma outra casa, viu águas caindo pra cima. Quando se aproximou, olhou pelo portão: era só uma senhora com uma mangueira tirando um chiclete grudado no céu. Andou mais um pouco e ouviu barulho de relógio rápido, como se a tal pessoa estivesse correndo, mas era só uma britadeira reclamando do chão duro que não cedia.

Cansada já de procurar tanto, sentou no lugar mais alto que conhecia pra ver o sol se pôr mais de perto.

Admirava triste e feliz por ser exatamente como era. Feliz e triste por não saber se aquela pessoa, exatamente como pensara, existia. Triste por não tê-la encontrado, feliz por não tê-la perdido.

Restou contemplar o céu.

O horizonte avistou a menina feliz e a menina triste. Deu um beijo em cada uma e guardou o sol dentro dela. O frio dela passou. Do lado dela tinha um bosque cheio de girassóis como pintas num rosto. Do outro lado tinha uma cachoeira que, se olhada de cabeça pra baixo, a água caía pra cima. Lá em baixo, num lago, um pássaro de pernas longas era o maestro do tempo que conduzia o passar num compasso mais calmo. As nuvens do olho dela dançaram no céu daquele instante e o chão tinha textura de almofada.

A menina fez aquela paisagem inteira se apaixonar por ela e ela se aquece até hoje com outra pergunta: Como eu tenho certeza se estou apaixonada? A paisagem ria com a dúvida da menina e sempre a respondia com a silhueta de suas montanhas.

 
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