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Dossiê Trotski - 76 anos
Lev Davidovich
Jean Van Heijenoort

Tradução de artigo de Jean van Heijenoort sobre a personalidade de Leon Trotsky, de quem foi secretário e segurança em todo seu exílio.

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Quando Engels faleceu tranquilamente em Londres, sob o peso dos anos, como patriarca reverenciado da social-democracia internacional, o século que terminava separava as revoluções burguesas das revoluções proletárias, o jacobinismo do bolchevismo. A transformação do mundo, anunciada por Marx, converter-se-ia na tarefa imediata, e os revolucionários conheceriam inigualáveis vicissitudes.
De fato, os crânios dos três maiores dirigentes revolucionários depois de Engels receberam os golpes da reação. O historiador do futuro não poderá deixar de ver uma dos sinais característicos da nossa época. Também não deverá deixar de notar a origem desses golpes. Lênin teve a cabeça perfurada pela bala da "Socialista Revolucionária" Fanny Kaplan¹. Rosa Luxemburgo teve a cabeça esmagada a golpes de coronhadas de fuzil por soldados do "Social Democrata" Noske². O crânio de Trotski foi aberto pela picareta de um mercenário do "Bolchevique"Stálin.

Nossa época de crise, com seus saltos abruptos e ritmo febril, consome rapidamente aos homens e partidos. Aqueles que ontem ainda representavam a revolução se transformam em instrumentos da mais obscura reação. Esta luta entre a direção do processo histórico e seu pesado e cansativo fardo, assumiu sua forma mais dramática no duelo entre Trotski e Stálin, precisamente porque se desenrolou sob a base de um Estado operário já estabelecido. Trotski – levado ao poder pela explosão revolucionária das massas, foi perseguido e abatido quando ocorreu as derrotas do proletariado- converteu-se na encarnação mesma da revolução.

Trotski servia-se de um físico impressionante. O que surpreendia primeiramente era sua testa, fenomenalmente sublime, vertical, e não acentuada pela calvície. Depois os olhos, azuis e profundos, com um olhar forte e seguro de sua força.
Durante a sua estadia na França, Lev Davidovich precisou viajar incógnito muitas vezes, devido aos problemas de sua segurança. Teve que raspar o cavanhaque e pentear o cabelo de lado. Porém, quando se tratava de sair de casa e se misturar ao público, eu sempre me preocupava: "Não, é realmente impossível, (...) o primeiro transeunte vai reconhecê-lo, ele não pode mudar o seu olhar...”. Logo, quando Lev Davidovich começava a falar, era a sua boca o que chamava atenção. Se falasse em russo ou em uma língua estrangeira, seus lábios se esforçavam por pronunciar claramente as palavras. Lhe irritava ouvir aos outros falarem de forma confusa e precipitada e se impunha sempre a si mesmo uma elocução compreensível e clara. Apenas quando conversava em russo com Natalia Ivanovna que seu modo de falar se tornava menos articulado, chegando a sussurrar. Em conversas com as visitas em seu escritório, as mãos, a princípio apoiadas sobre a mesa de trabalho, logo se agitavam em gestos amplos e fortes, como se auxiliassem os lábios a modelar as expressões do pensamento.

Seu rosto rodeado de cabelos, o porte de sua cabeça, e todo o equilíbrio do corpo era forte e soberbo. Sua estatura estava acima da média, o peito era forte, as costas amplas e robustas e as pernas, em comparação, um pouco frágeis. É, sem dúvida, mais fácil para alguém que lhe visitou por apenas um dia dizer o que viu no rosto de Trotski do que para alguém que viveu vários anos ao seu lado, sob as mais diversas circunstâncias. O que jamais vi nele, foi a mais ligeira expressão de vulgaridade. Tão pouco se podia encontrar nele o que se chama de ingenuidade. Mas não faltava certa gentiliza, vinda sem dúvida da formidável inteligência e disposição de lhe compreender totalmente. O que se via comumente, era um ar juvenil, jovial para todo empreendimento e ao mesmo tempo habilidade para entusiasmar os outros a colaborar com a empreitada. Quando se tratava de enfrentar um adversário esta alegria rapidamente se transformava em ironia, mordaz e maliciosa, alternada com gestos de desprezo, e quando o inimigo era particularmente canalha lhe encarnava, por um momento, um espirito de zombaria. Mas seu ímpeto retornava logo. "Nós os venceremos!", amava repetir isto com orgulho. No isolamento da imigração, as circunstâncias mais dramáticas, onde pude ver Lev Davidovich foram seus conflitos com a polícia, ou incidentes com adversários de má fé. Sua face se endurecia, e seus olhos tornavam-se fumegantes, como se neles, de repente, se concentrasse esta imensa força de vontade que só se podia medir apropriadamente pela obra de toda sua vida. Então era evidente a todos que nada, nada no mundo poderia fazê-lo abandonar sua firmeza.

Na vida cotidiana, esta vontade estava voltada a um trabalho estritamente organizado. Tudo o que lhe interrompia sem razão lhe irritava extremamente, detestava as conversas sem objetivo, as visitas não anunciadas, os contratempos, os atrasos nas reuniões. Tudo isto sem pedantismo. Se uma questão importante se apresentava, não hesitava um instante em discuti-la todos seus ângulos, mas era necessário que valesse a pena. Com algum interesse pelo movimento, usava seu tempo e suas forças sem limite, mas se mostrava igualmente contido quando seu tempo ameaçava se desperdiçado pela indiferença, descuido ou má organização alheia. Economizava a menor parcela do tempo, a matéria mais preciosa da qual a vida está feita. Toda sua vida pessoal estava fortemente organizada por esta qualidade que o ingleses chamam de “singleness of purpose”. Estabelecia uma hierarquia das tarefas e o que começava levava até o final. Normalmente não trabalhava menos do que doze horas por dia, as vezes muito mais, quando necessário. Permanecia o menor tempo possível na mesa depois de haver compartilhado sua comida durante anos, eu não recordo de tê-lo visto prestar alguma atenção especial ao que comia ou bebia. “Comer, vestir-se, todas estas miseráveis pequenas coisas que é necessário repetir cada dia...” me disse uma vez. Sua única distração, somente encontrava em uma grande atividade física. Uma simples caminhada não o acalmava.

Caminhava viva, silenciosamente e se via que seu espirito trabalhava sempre; de tempos em tempos fazia uma pergunta :”Quando respondeu aquela carta?” “Poderia encontrar-me aquele citação?” Seu repouso só podia ser um exercício violento. Na Turquia, este foi a caça e sobretudo a pesca, a pesca no mar, complicada, animada, onde o corpo deve gastar-se sem limite. Quando a pesca havia sido boa, ou seja extenuante, voltava ao trabalho com animo redobrado. No México, onde a pesca era impossível, inventou a colheita de cactos, de peso enorme, sob um sol escaldante.

A segurança tinha naturalmente sua obrigações. Durante os onze anos e meio de sua terceira emigração, somente durante alguns meses, em certos momentos de sua estadia na França e Noruega, Lev Davidovich pode passear livremente, ou seja sem vigilância, no campo, ao redor de sua moradia. Eventualmente, cada uma de suas saídas era uma pequena operação militar. Era necessário de antemão estabelecer todas as posições, fixar cuidadosamente o itinerário. “Vocês me tratam como um objeto”, dizia as vezes, dissimulando em forma de brincadeira, uma certa impaciência que havia por trás deste comentário.

Ele exigia o mesmo espírito metódico no trabalho dos camaradas que o ajudavam. Quanto mais próximos fossem, menos ele se preocupava com formalidades. Exigia precisão em tudo: uma carta sem data, um documento não assinado sempre o irritavam, como em geral qualquer desleixo, negligência ou descuido. Fazer bem o que se está fazendo, e fazê-lo até o final. Essa regra valia tanto para as pequenas tarefas cotidianas como para o trabalho intelectual: levar seus pensamentos até o fim, é uma expressão que, muitas vezes encontramos nos seus escritos. Mostrava-se sempre muito atento com a saúde daqueles que lhe eram próximos. A saúde é um capital revolucionário que não deve ser desperdiçado. Não gostava de ver alguém ler em uma iluminação ruim. É preciso arriscar a vida pela revolução sem hesitar, mas por que estragar seus olhos quando você pode ler confortavelmente e de forma inteligente?

Nas conversas com Lev Davidovich, o que surpreendia principalmente os visitantes, era sua capacidade de envolver-se em uma situação até então desconhecida por ele. Sabia integra-la em sua perspectiva geral, mas por outro lado, podia sempre dar conselhos concretos, imediatos. Durante sua terceira imigração, muitas vezes teve a oportunidade de conversar com imigrantes de países que não conhecia diretamente. Podiam ser países dos Balcãs ou da América Latina, nem sempre sabia a língua, não seguia sua imprensa e não havia se interessado em seus problemas específicos. Primeiro deixava seu interlocutor falar, escrevendo de vez em quando breves anotações sobre uma pequena folha de papel, pedindo algumas vezes precisão: “Quantos membros neste partido?” “Este político não é um advogado?” Logo falava. A massa de informações que havia se apropriado se organizava. Identificava rapidamente os movimentos das diferentes classes e das diferentes camadas no interior destas classes, em seguida, se revelava o mapa dos partidos, grupos e organizações, o lugar e ação dos diversos personagens políticos, até sua profissão e seus traços pessoais, inscrevendo-os logicamente em seu conjunto. O naturalista francês Cuvier³ era capaz, com apenas um osso, reconstruir todo animal³. Com seu enorme conhecimento das realidades sociais e politicas, Trotski podia realizar um trabalho análogo. Seu interlocutor permanecia sempre maravilhado de ver quão profundamente sabia penetrar na realidade do problema particular e deixava o escritório de Trotski conhecendo um pouco melhor seu próprio país.

A todo momento se sentia em Trotski uma enorme experiência, não unicamente inscrita na memória, sim organizada, profunda e longamente meditada. Percebia-se também que a organização desta experiência era feita em torno de principio que ele havia tornado inquebráveis. Se Lev Davidovich detestava a rotina, se estava sempre disposto a abrir caminho a novas tendências, a menor tentativa de inovação no terreno dos princípios lhe fazia prestar atenção. “Cortar a barba de Marx”, era a sua expressão para todas estas tentativas de colar o marxismo à moda do momento, e tinha para ela um desprezo não dissimulado.

O estilo de Trotski era objeto de admiração universal. Sem dúvida é o que melhor pode se comparar com o de Marx. Porém, as sentenças de Trotski são menores que as de Marx, em quem se observa, especialmente nas obras da juventude, uma riqueza de recursos acadêmicos. O estilo de Trotski atinge seus objetivos por meios extremamente simples. Seu vocabulário, especialmente em seus escritos predominantemente políticos, é sempre bastante limitado. As frases são curtas, com poucas orações subordinadas. Sua força reside no fato de estarem solidamente articuladas, na maioria das vezes com oposições fortemente estabelecidas, mas sempre bem ponderadas. Estes métodos sóbrios dão a seu estilo um grande frescor e, poderia se dizer, juventude: Trotski em seus escritos é consideravelmente mais jovem do que Marx. Trotski sabia tirar proveito da sintaxe russa que, graças as declinações, permite mudar a ordem das palavras no interior da frase, dando a expressão do pensamento um relevo e uma força difícil de alcançar com os meios tão reduzido dos idiomas ocidentais modernos. Difíceis de traduzir também. Lev Davidovich exigia uma fidelidade matemáticas de suas traduções e se levantava ao mesmo tempo contra as regras gramaticais que não permitiam, na língua estrangeira, uma expressão de seu pensamento tão direta e tão concisa. Comparado, com o estilo de Lenin, o estilo de Trotski possui alguma vantagem, de longe, por sua claridade e elegância, sem perder nada de sua potência. As sentenças de Lenin as vezes se obstruir, se sobrecarrega, se desorganiza. As vezes, parece que seu pensamento é maior que sua expressão escrita. Trotski disse certa vez que em Lenin podia-se descobrir um mujique russo, mas elevado a um grau de genialidade. Ainda que o pai de Lenin fosse um funcionário provincial e o de Trotski um camponês arrendatário, é em Trotski que se vê um cidadão urbano, ao contrário de Lenin, seguramente devido sua origem. Pode-se notar isto imediatamente na diferença dos estilos, sem buscar qualquer tentativa de estabelecer oposição em outros aspectos destas duas personalidades gigantes.

Quando Trotski foi deportado para a Turquia, o passaporte que as autoridades soviéticas lhe deram discriminava como profissão: escritor. De fato, ele foi um grande escritor. Se a definição dos burocratas provoca risos é porque Trotski foi muito mais do que um escritor. Ele escrevia com facilidade, sendo capaz de ditar várias horas sem interrupção. Mas voltava a ler e corrigir cuidadosamente o manuscrito. Para algumas de suas grandes obras, como a “História da Revolução Russa”, foram escritos antes do texto definitivo dois projetos preliminares, mas, na maioria dos casos, apenas um. Sua enorme produção literária, onde se encontram os livros, panfletos, inúmeros artigos, cartas, ligeiras declarações à imprensa e notas de todos os tipos é, seguramente, desigual. Algumas partes são mais trabalhadas que outras, mas nenhuma frase é descuidada. Nesta formidável acumulação de escritos pode-se tomar aleatoriamente quaisquer cinco linhas e ali se reconhecerá sempre um Trotski inimitável.

O volume também é impressionante e isso só testemunha uma vontade e uma capacidade de trabalho pouco comum. Foram catalogados de Lenin trinta volumes como obras completas, além de 35 outros volumes de correspondências e notas diversas. Trotski viveu sete anos a mais que Lenin, mas seus escritos, de seus grandes livros até suas breves notas pessoais, sem dúvida, compõem um volume três vezes maior. Nos onze anos e meio de sua terceira emigração ele produziu uma obra que honrosamente valeria pelo trabalho de uma vida inteira. Pode-se dizer que a caneta nunca abandonou sua mão, e que mão!

Trotski entregou-se inteiramente em seus livros. O contato pessoal com o homem não modificava, mas sim precisava e aprofundava o retrato que surgia da leitura de suas obras: paixão e razão, inteligência e vontade, levadas uma e outra a um grau extremo, mas ao mesmo tempo misturada uma na outra. Em tudo que fazia Lev Davidovich, colocava tudo de si. Repetia frequentemente as palavras de Hegel: “nada grande se faz neste mundo sem paixão” e tinha somente desprezo para os filisteus que se levantavam contra o “fanatismo” dos revolucionários. Mas a inteligência estava sempre ali, em um equilíbrio maravilhoso com o ímpeto. Não poderia se encontra nisto qualquer sombra de oposição: a vontade era invencível, porque a razão enxergava muito além. Seria necessário citar a Hegel uma vez mais: “A vontade é uma forma particular do pensamento”4

1. Dora, as vezes chamada de Fanny Kaplan, atingiu a cabeça de Lenin com uma bala quando ele saia de uma reunião em um fábrica em 30 de agosto de 1918. É possível que a ferida recebida nesta ocasião seja a origem direta da morte prematura de Lenin.
2. Detida pelos Firecorps “Cuerpos-Francos” sob as ordens do ministro socialista da guerra, Gustavo Noske (1868-1946), Rosa Luxemburgo (1870-1919), dirigente do partido social democrata de Polônia, inspirou a “esquerda” alemã a fundar o grupo Spartacus e depois o Partido Comunista, foi assassinada a golpes de fuzil e seu cadáver foi jogado em um canal, só sendo descoberto meses mais tarde.
3. Se trata de Georges Cuvier (1769-1832)
4. “Der Wille ist eine besondre Weise des Denkens”

 
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